Uma pseudo-sequela da "Epopeia de Gilgamesh", ou o verdadeiro final da história do herói
O Épico (ou Epopeia) de Gilgamesh é, como já cá foi contado antes, um dos mais antigos textos ficcionais contínuos que chegaram aos nossos dias. Mas quem já o tiver lido certamente que se deparou com um problema - a trama sequencial termina no 11º capítulo/livro, em que Gilgamesh perde, em favor de uma serpente, o seu possível acesso à imortalidade. Se isso nos faz subentender que o herói teria, um dia, de vir mesmo a morrer, a mesma fonte já nada nos diz sobre o que viria a acontecer na continuação da história.
Caso encerrado? Não tanto - existem textos da Suméria, com cerca de 4000 anos, que hoje são conhecidos sob o nome A Morte de Gilgamesh. São muito fragmentários, mas permitem-nos saber que pelo menos três episódios ainda tomavam lugar após o término da trama do épico:
- Existia um momento em que o herói era levado a contemplar a sua própria mortalidade. Parafraseando uma sequência que sempre nos pareceu bela:
Deve ter-te sido dito que a morte é a essência de ser humano. Deve ter-te sido dito que isto seria o resultado de cortarem o teu cordão umbilical. O mais negro dia dos seres humanos agora aguarda por ti. O local solitário agora aguarda por ti. A imparável torrente agora aguarda por ti. A batalha inevitável agora aguarda por ti. A batalha desigual agora aguarda por ti. O conflito de que não podes escapar agora aguarda por ti. Mas não deves ir para o submundo com o coração zangado (...)
- Como é natural, o herói acaba por morrer. A sua morte era, aparentemente, tratada com relação aos feitos passados, numa espécie de fórmula repetida - "Aquele que fez X caiu e não mais se irá levantar".
- O herói era tornado um juiz entre os mortos, talvez pela eminência que tinha tido entre os vivos.
Claro que esta informação é muito limitada, mas é também particularmente significativa se tivermos em conta que a mortalidade do próprio herói é um dos temas centrais do épico. Ele - como o próprio leitor - está condenado a morrer, por muitos e grandes que sejam os feitos que atingiu. Esta sequência adicional parece insistir nessa ideia - a morte é inevitável, sim, mas nem por isso deve ser temida. E, por essa ideia contemplativa, a história de Gilgamesh continua tão actual hoje como no dia em que primeiro foi posta por escrito...