Jesus Cristo era casado?
Há cerca de um mês pediram-me que escrevesse sobre a possibilidade de Jesus Cristo ser casado, já que o assunto veio à baila através de notícias como esta. Por isso pergunte-se, Jesus Cristo era casado?
Deixemos, para começar, de lado a hipótese desse fragmento poder ser uma falsificação. Não é relevante. Para mim, e tendo em conta o contexto literário da época, pouco interessa que esse fragmento, ainda para mais provindo de uma obra desconhecida, apresente Jesus como podendo ter uma esposa, já que o contexto dessa afirmação seria muito mais importante que a própria afirmação. Porquê? Por uma razão muito simples, e que não escapa a qualquer pessoa que conheça minimamente os textos gnósticos - por volta dessa altura ainda existiam todo um conjunto de textos derivados das mais variadas heresias (uso aqui esta palavra sem qualquer carácter pejorativo), que construíam, adaptavam, alteravam, ou omitiam elementos nas histórias bíblicas de forma a enfatizar ou diminuir a preponderância de alguns pontos.
Por exemplo, alguns defendiam que Jesus, enquanto filho de Deus, não poderia ter sido crucificado, e então teria sido Simão de Cireno (o homem que levou a cruz, durante algum tempo, nos evangelhos sinópticos) a ser crucificado em seu lugar, enquanto Jesus se ri (o riso de Jesus, nos textos gnósticos, é um tema muito interessante, mas para não me alongar irei apenas dizer que esse riso não se devia à cena a ter lugar, como alguns leitores poderiam supor).
Outros, que consideravam o deus do Antigo Testamento como um impostor, apresentavam a ideia de que a cobra do jardim do Éden tinha sido uma salvadora da Humanidade, já que lhes teria trazido um conhecimento da verdade, de que esse deus não era o criador de tudo o que existia. O famoso Evangelho de Judas apresenta um Jesus conivente com Judas, e esta segunda figura é vista como o mais importante dos apóstolos, por ir sacrificar o corpo de Jesus. Um texto, sem dúvida, de uma heresia em que o corpo terreno era visto como negativo.
Vários evangelhos da infância apresentam Jesus a usar os seus poderes miraculosos em situações do dia-a-dia, como dar vida a animais de barro, ressuscitar amigos que mata (mais ou menos) sem querer, ou acertar o tamanho das pernas de uma peça de mobiliário feita por José. Provavelmente destinavam-se a remediar a curiosidade despertada pelos textos sinópticos, que pouco falavam da infância de Jesus, mas também poderiam ter tido vários outras funções.
Textos muito mais tardios, como o Toledot Yeshu, de origem judaica e destinados a gozar a religião cristã, apresentam Jesus como obtendo os seus poderes mágicos através de um conhecimento do verdadeiro nome de Deus, e até o põem a combater, nos ares e a um estilo de Dragon Ball, contra um heróico Judas.
Em todo este contexto era muitíssimo provável que algum heresia que considerasse o casamento como positivo tivesse, em seu poder e para apoiar as suas crenças, algum texto que dissesse que Jesus era casado. Isso não quer, evidentemente, dizer que Jesus tivesse mesmo casado, mas sim que, por alguma razão, uma seita gnóstica, vários séculos após o tempo de Jesus e dos seus apóstolos, considerou útil dizer que Jesus era casado, já que essa seria uma união que servia os seus propósitos individuais. As fontes mais antigas, como os evangelhos sinópticos, o Evangelho dos Hebreus, ou os textos (agora perdidos) de Pápias, nada referiam em relação à possibilidade de Jesus ter casado. Nenhum autor, seja ele pagão ou cristão, confirma ou desmente essa possibilidade, o que demonstra que essa era uma não-questão para a época, e esse é um silêncio muito esclarecedor. Assim, a mais pura verdade é que não temos, nem nunca poderemos ter, informação certa relativa a esse possível casamento, ou ausência dele. Não é por um dado texto, muito mais tardio, dizer que Jesus tinha esposa que isso se torna um facto totalmente real. Essa frase, ainda para mais num fragmento que "provavelmente remonta a uma data entre os séculos VI e IX, mas poderia ter sido escrito até mesmo no século II", pouco ou nada nos diz.