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Mitologia em Português

30 de Agosto, 2014

O "Romance de Tróia", de Benoît de Sainte-Maure

O que se pode dizer sobre este Romance de Tróia, de Benoît de Sainte-Maure? É talvez um dos mais importantes poemas da Idade Média, abordando a matière de Troie e que muita influência acabará por ter em obras posteriores. Como o autor não se cansa de referir no decurso da obra, esta foi escrita baseando-se nos relatos de Díctis e de Dares, mas também tem a influência de pelo menos mais uma fonte.

 

Quem conhecer os relatos de Díctis e Dares bem saberá o quanto se afastam dos relatos de Homero, mas essa não é a única alteração feita a toda a trama. Este texto de Benoît de Sainte-Maure está repleto de alterações à trama mais conhecida, a de Homero, muitas vezes em situações e momentos de uma extrema importância. Se continua a ser Aquiles a figura que mata Heitor, vários outros episódios mudam de ordem ou sofrem alterações bastante significativas, com o filho de Aquiles a matar Pentesileia, Mémnon a surgir muito mais cedo no campo de batalha (mas como uma figura menor), Páris a sofrer uma morte muito diferente, e assim por diante.

 

Além dessas alterações, o autor também adicionou diversos episódios à trama, alguns de cariz amoroso - Jasão e Medeia (nos momentos introdutórios), Páris e Helena, Troilo e Briseida, Aquiles e Políxena, e, até certo ponto, Heitor e Pentesileia - outros para dar uma maior ênfase ao combate (a obra tem mais de 15 secções de combate, intervaladas com períodos de tréguas para enterrar os mortos), e ainda vários de fartas descrições de personagens ou locais.

 

De uma forma geral, mais do que uma adaptação da Ilíada, da Odisseia, ou até dos vários textos em que o autor admite basear-se, este é um texto em que Benoît de Sainte-Maure parece ter pegado em personagens e situações da Guerra de Tróia e, de uma forma que nem sempre é a mais correcta ou fiel, feito delas algo um pouco diferente da sua função nos textos originais, gerando algumas situações de conflicto que, ou não existiam nas versões anteriores, ou estavam um pouco mais ocultas. Isto é muito visível, por exemplo, no caso de Aquiles e Políxena, com o surgimento de toda um jogo amoroso/psicológico e político que daria a mão de Políxena a Aquiles, mas que também deveria levar ao final da guerra; quando isso não vem a acontecer, é nessa sequência que o herói acaba por morrer, mas em que Políxena também parece estar quase totalmente livre de culpas, acabando, contudo, ainda assim por ser sacrificada no túmulo do herói.

 

Outro aspecto curioso é o facto da obra juntar nas suas linhas elementos da Antiguidade com figuras e situações cristãs. Em pelo menos um momento, o autor faz alusões à História Natural de Plínio; muitas vezes, na sua narração menciona os (aqui poucos) deuses envolvidos na trama, mas da boca das personagens não deixam de sair referências a Deus; figuras como Júlio César confrontam-se com Salomão, e a descrição de diversas estátuas e locais, a que já aludi acima, tende a juntar elementos antigos a referências e símbolos muito medievais, mais conhecidos e usados em obras como o Romance da Rosa.

 

Em suma, mais que um texto de e sobre Tróia, esta é uma obra que parece pegar nos elementos que estavam disponiveis para o seu autor e tenta uma reinvenção das personagens e situações, levando-as a um novo público que, agora, esperava não só um resquício da Antiguidade, mas uma adaptação das histórias que já existiam ao seu tempo e lugar, ao seu gosto. E é precisamente isso que Benoît de Sainte-Maure aqui tenta trazer de volta, um poema que preserva alguns dos elementos originais, mas que também tem muita matéria nova para ser explorada, fundindo a matéria que Homero mais popularizou com a forma em voga na altura em que este seu reinventor viveu. Não deixa de ser um livro interessante, mas também não é para todos...

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29 de Agosto, 2014

"Homérica", de Tzetzes

Esta Homérica é outro daqueles textos que até há poucos dias não existia traduzido, mas que pode, agora, ser encontrado em tradução inglesa, e de forma totalmente gratuita, neste endereço.

 

Em relação a ele, posso dizer que, como o próprio nome facilmente dá a entender, este é um texto em que Tzetzes resume a trama de um dos poemas homéricos, a Ilíada. De uma forma geral, o resumo é consistente com o texto atribuído a Homero, divergindo em dois pontos essenciais, com a cólera de Aquiles a ser atribuída também a um episódio com Palamedes (um elemento que, supostamente, Homero teria omitido para não criticar os Aqueus), e o episódio em que Príamo pede o retorno do corpo de Heitor a receber um tratamento mais prolongado e, pelo menos a meu ver, mais interessante, em que algumas figuras troianas também insistem nesse pedido. Se mais nenhuma razão existisse, pelo menos esse segundo ponto já justifica a leitura da obra, nessa sua apresentação de uma outra versão de um famoso episódio da Ilíada.

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23 de Agosto, 2014

A teoria das ideias, e das formas, de Platão

Falar da teoria das ideias, e das formas, de Platão não é fácil, mas podemos apresentar aqui um resumo interessante. Os textos deste autor são, demasiadas vezes, tão crípticos que se torna difícil compreender as muitas teorias que o autor, através da voz de Sócrates, tenta transmitir, e disso são um perfeito exemplo a teoria das ideias e das formas. Porém, nas suas Epístolas Morais a Lucílio, Séneca o Jovem dá uma pequena ajuda, que aqui cito em tradução inglesa:

 

This "idea", or rather, Plato's conception of it, is as follows: "The 'idea' is the everlasting pattern of those things which are created by nature." I shall explain this definition, in order to set the subject before you in a clearer light: Suppose that I wish to make a likeness of you; I possess in your own person the pattern of this picture, wherefrom my mind receives a certain outline, which it is to embody in its own handiwork.  That outward appearance, then, which gives me instruction and guidance, this pattern for me to imitate, is the "idea." Such patterns, therefore, nature possesses in infinite number - of men, fish, trees, according to whose model everything that nature has to create is worked out.

(...)

If you would [like to] know what "form" means, you must pay close attention, calling Plato, and not me, to account for the difficulty of the subject. However, we cannot make fine distinctions without encountering difficulties. A moment ago I made use of the artist as an illustration.  When the artist desired to reproduce Vergil in colours he would gaze upon Vergil himself. The "idea" was Vergil's outward appearance, and this was the pattern of the intended work.  That which the artist draws from this "idea" and has embodied in his own work, is the "form." Do you ask me where the difference lies?  The former is the pattern; while the latter is the shape taken from the pattern and embodied in the work.  Our artist follows the one, but the other he creates.  A statue has a certain external appearance; this external appearance of the statue is the "form." And the pattern itself has a certain external appearance, by gazing upon which the sculptor has fashioned his statue; this is the "idea." If you desire a further distinction, I will say that the "form" is in the artist's work, the "idea" outside his work, and not only outside it, but prior to it.

fonte

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23 de Agosto, 2014

"Sir Orfeu", de autoria desconhecida

Sir Orfeu é um texto medieval que nos faz chegar uma versão do mito de Orfeu e Eurídice um pouco diferente da habitual. O mito, na sua versão mais conhecida, já aqui foi falado. Em linhas muito gerais (a trama da obra não se esgota nestes elementos essenciais, mas são os suficientes para frisar a relação da mesma com o famoso mito grego), posso dizer que nesta versão Orfeu é rei, e casa com uma bela Eurídice, fazendo dela sua rainha. Depois, ela é raptada por seres mágicos. Após uma longa e mística viagem, é com o poder da sua música que Orfeu recupera a amada, e trá-la de volta ao reino.

 

Um primeiro aspecto a aqui ter em conta é a identidade do(s) raptor(es) de Eurídice. Existe, na obra, uma alusão a esses raptores, e ao local de onde vêm, que pode tanto ser uma referência aos mitos celtas (como ocorre em muitas lais de Marie de France), como uma referência dissimulada aos antigos deuses. Esse é um elemento que, talvez propositadamente, não está claro. Um outro aspecto relevante é o facto de Orfeu aqui ficar com Eurídice, algo que não acontecia no original. Em último lugar, nesta versão do mito a música do herói tem tanto relevo como no original, já que é com ela que recupera a amada, mas que, num último instante da trama, Orfeu também acaba por recuperar o seu reino.

 

Este é, portanto, um texto que nos permite constatar a prevalência de alguns mitos gregos na cultura medieval, se bem que de uma forma que vai sendo adaptada. Os deuses, e muitas das figuras míticas, vão sendo substituídas por figuras sobrenaturais, "fadas" e seus semelhantes, à medida que existe uma dessacralização das suas funções originais. Também, Orfeu torna-se rei, um cavaleiro errante em busca da amada, e é filho de descendentes de Plutão e Juno (figuras de quem é dito que, nessa altura, eram consideradas divindades), mas ainda retém o poder da sua música, ainda hoje um dos seus mais famosos elementos. Os deuses do submundo, contudo, tornam-se meros rei e rainha, e nem um nome agora têm. Até o local onde grande parte da trama toma lugar é adaptado - é a Trácia, mas uma Trácia aqui considerada como um antigo nome de Winchester. Muitas outras adaptações são feitas à trama original, e dada a parca extensão da obra, fica o convite para a exploração desses elementos, aqui adaptados como em muitas outras obras da altura; seria a famosa história do Rei Artur mais uma delas, baseando-se num qualquer mito hoje perdido? Fica, como muitas vezes, também essa questão final...

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13 de Agosto, 2014

Existiam dinossauros na Antiguidade?

A resposta à questão Existiam dinossauros na Antiguidade? poderia parecer muitíssimo óbvia, mas, não obstante, parecem existir autores que parecem querer fazer coexistir humanos e dinossauros. Como evidência, usam imagens como a seguinte:

Parte do Mosaico do Nilo

Provinda do chamado "Mosaico do Nilo", de Palestrina (em Itália), alguns parecem argumentar que a criatura aqui representada nas margens do Nilo é um dinossauro, enquanto que outros escritores dizem tratar-se de uma lontra. Quem terá razão?

 

Mais do que responder a essa difícil questão sobre a possibilidade de dinossauros na Antiguidade, parece-me é importante constatar um aspecto muito importante da iconografia dessa altura; visto já não termos um acesso total ao ambiente cultural em que este mosaico foi produzido, um observador dos nossos tempos pode aí ver tudo o que queira ver, mesmo face a enormes evidências em contrário. Veja-se outro exemplo:

Um dinossauro na Antiguidade?

Hércules pode ser aqui visto a combater o Monstro de Tróia e a salvar Hesíone. A criatura mitológica está do lado esquerdo, mas quem olhar com atenção poderá ver que a sua face se assemelha muitíssimo a um fossíl de dinossauro carnívoro. Seria deliberado, ou será outro desses exemplos em que até podemos estar a ver na imagem algo que, originalmente, não era suposto? Não sabemos, mas é certamente possível que o facto de se encontrarem esqueletos de dinossauros na Antiguidade possa ter inspirado a ideia de que monstros gigantes já tinham existido em outros tempos...

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07 de Agosto, 2014

"Posthoméricas", de Tzetzes

As Posthoméricas, de Tzetzes, podem ser definidas como um resumo dos vários episódios que tomam lugar entre os dois Poemas Homéricos. Porém, este é um resumo muito desigual, em que o autor se foca demasiado em alguns episódios, como o de Pentesileia, mas em que, ao mesmo tempo, também se ocupa pouquíssimo com alguns outros. Poderia parecer-nos um pouco estranha, essa dissonância de tratamentos, mas torna-se bem mais compreensível com uma análise directa do texto, já que, em dados momentos, o próprio autor se mostra inseguro em relação ao conteúdo e organização de vários episódios.

 

Esse problema deve-se, sem dúvida, ao facto de Tzetzes já não ter acesso aos textos originais, aqueles que melhor o poderiam informar em relação a essas várias aventuras. De facto, ao longo da sua obra Tzetzes até faz referência aos autores em que se apoia para as suas linhas, com especial ênfase no texto de um dado Quinto (poderia pensar-se que era Quinto de Esmirna, de que já aqui falei, mas a trama é um pouco diferente), pelo que é bastante provável que essas diversas fontes apresentassem descrições diferentes dos acontecimentos, o que não poderia deixar de causar alguma confusão na compilação de uma obra desta natureza.

 

Em termos da conteúdo da obra, existem três momentos que me ficaram na memória. O primeiro deles é toda a sequência que envolve Pentesileia, pela sua extensão, com alguns momentos muitíssimo belos. No segundo momento, que se encontra disperso por toda a obra, o autor descreve os vários intervenientes da trama, falando de Pentesileia, de Príamo, de Cassandra, de Aquiles e Antíloco, entre muitas outras personagens, o que não é muito comum. Já o terceiro prende-se com a morte e funeral de Aquiles; ele é aqui morto com um punhal e à traição, num templo em que esperava encontrar Políxena, e o seu funeral é descrito de forma muito única, fazendo do evento algo muito mais notável do que em outras versões do episódio, com as deusas marinhas a saírem das águas e prestarem uma digna homenagem ao filho de Tétis.

 

Em suma, esta é uma obra que me parece muito importante para o estudo da trama que separa os dois poemas homéricos, já que preserva parte de relatos que já não nos chegaram na sua forma completa. Para que mais facilmente pudesse ser lida (até porque não existia em tradução), foi então feita uma tradução da obra (a primeira a ser oferecida por este espaço!), que pode agora ser encontrada aqui.

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07 de Agosto, 2014

Traduções de novos textos, uma iniciativa que agora principia!

Como prenunciado o mês passado, este espaço vai agora começar a ter uma nova iniciativa, que passará pela disponibilização, em primeira mão, de textos com conteúdo mitológico relevante, mas que ainda não existam traduzidos na maior parte das línguas modernas. O objectivo da iniciativa passa, essencialmente, por dois pontos:

 

- Disponibilizar a tradução de novos textos, que de outra forma estariam inacessíveis a um público geral.

 

- O de patrocinar, na medida do possível, todos aqueles que estejam interessados em fazer traduções desses novos textos.

 

 

Agora, se, idealmente, as traduções seriam feitas dos originais para Português (sempre foi esse o objectivo deste espaço, a disponibilização de conteúdos nessa língua), é com alguma pena que devo dizer que, em Portugal e ao longo de vários anos, não consegui encontrar quem estivesse interessado em participar no projecto. As pessoas com quem tentei falar, ou se mostraram incapazes de cumprir prazos, ou não queriam participar, ou exigiam valores absurdos (com um dado licenciado a pedir 30€ por página A5). Portanto, foi tomada a opção da tradução dos textos ser feita para Inglês, não só para possibilitar que tanta gente quanto possível tivesse acesso a essas traduções, mas também porque foi mais fácil encontrar quem estivesse interessado em fazer esse trabalho, não pelos valores monetários oferecidos no patrocínio mas porque, acima de tudo, apoiavam as ideias que pretendem reger esta iniciativa, o que é, para mim, muitíssimo importante.

 

Então, supondo que alguém lê estas linhas e quer participar na iniciativa, o que tem de fazer? Muito simplesmente, basta-lhe sugerir uma obra que não esteja traduzida (e por traduzida, quero dizer "não exista em qualquer língua moderna"), e caso exista interesse real na tradução da mesma, tudo será tratado para que venha a existir, sendo o texto em questão depois aqui disponibilizado de forma totalmente gratuita.

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