O "Romance de Tróia", de Benoît de Sainte-Maure
O que se pode dizer sobre este Romance de Tróia, de Benoît de Sainte-Maure? É talvez um dos mais importantes poemas da Idade Média, abordando a matière de Troie e que muita influência acabará por ter em obras posteriores. Como o autor não se cansa de referir no decurso da obra, esta foi escrita baseando-se nos relatos de Díctis e de Dares, mas também tem a influência de pelo menos mais uma fonte.
Quem conhecer os relatos de Díctis e Dares bem saberá o quanto se afastam dos relatos de Homero, mas essa não é a única alteração feita a toda a trama. Este texto de Benoît de Sainte-Maure está repleto de alterações à trama mais conhecida, a de Homero, muitas vezes em situações e momentos de uma extrema importância. Se continua a ser Aquiles a figura que mata Heitor, vários outros episódios mudam de ordem ou sofrem alterações bastante significativas, com o filho de Aquiles a matar Pentesileia, Mémnon a surgir muito mais cedo no campo de batalha (mas como uma figura menor), Páris a sofrer uma morte muito diferente, e assim por diante.
Além dessas alterações, o autor também adicionou diversos episódios à trama, alguns de cariz amoroso - Jasão e Medeia (nos momentos introdutórios), Páris e Helena, Troilo e Briseida, Aquiles e Políxena, e, até certo ponto, Heitor e Pentesileia - outros para dar uma maior ênfase ao combate (a obra tem mais de 15 secções de combate, intervaladas com períodos de tréguas para enterrar os mortos), e ainda vários de fartas descrições de personagens ou locais.
De uma forma geral, mais do que uma adaptação da Ilíada, da Odisseia, ou até dos vários textos em que o autor admite basear-se, este é um texto em que Benoît de Sainte-Maure parece ter pegado em personagens e situações da Guerra de Tróia e, de uma forma que nem sempre é a mais correcta ou fiel, feito delas algo um pouco diferente da sua função nos textos originais, gerando algumas situações de conflicto que, ou não existiam nas versões anteriores, ou estavam um pouco mais ocultas. Isto é muito visível, por exemplo, no caso de Aquiles e Políxena, com o surgimento de toda um jogo amoroso/psicológico e político que daria a mão de Políxena a Aquiles, mas que também deveria levar ao final da guerra; quando isso não vem a acontecer, é nessa sequência que o herói acaba por morrer, mas em que Políxena também parece estar quase totalmente livre de culpas, acabando, contudo, ainda assim por ser sacrificada no túmulo do herói.
Outro aspecto curioso é o facto da obra juntar nas suas linhas elementos da Antiguidade com figuras e situações cristãs. Em pelo menos um momento, o autor faz alusões à História Natural de Plínio; muitas vezes, na sua narração menciona os (aqui poucos) deuses envolvidos na trama, mas da boca das personagens não deixam de sair referências a Deus; figuras como Júlio César confrontam-se com Salomão, e a descrição de diversas estátuas e locais, a que já aludi acima, tende a juntar elementos antigos a referências e símbolos muito medievais, mais conhecidos e usados em obras como o Romance da Rosa.
Em suma, mais que um texto de e sobre Tróia, esta é uma obra que parece pegar nos elementos que estavam disponiveis para o seu autor e tenta uma reinvenção das personagens e situações, levando-as a um novo público que, agora, esperava não só um resquício da Antiguidade, mas uma adaptação das histórias que já existiam ao seu tempo e lugar, ao seu gosto. E é precisamente isso que Benoît de Sainte-Maure aqui tenta trazer de volta, um poema que preserva alguns dos elementos originais, mas que também tem muita matéria nova para ser explorada, fundindo a matéria que Homero mais popularizou com a forma em voga na altura em que este seu reinventor viveu. Não deixa de ser um livro interessante, mas também não é para todos...