Enomau de Gadara podia ser só mais um autor, ou um Cínico, como tantos outros que já passaram por aqui. Podia-se apontar que a Suda lhe atribui pelo menos quatro livros, todos eles hoje perdidos, e que Eusébio de Cesareia cita algumas sequências de um quinto na sua Preparação para o Evangelho, mas a história de Enomau é tão curiosa que merece mais do que essa breve referência.
Nas linhas citadas por Eusébio de Cesareia, Enomau conta-nos que num dado dia da sua vida sentiu alguns problemas e decidiu consultar um oráculo. O deus local, que pensamos ter sido Apolo, deu-lhe uma resposta que o satisfez bastante e o fez sonhar com o bom futuro que o aguardava. Tudo estaria bem, não fosse o facto de alguém ter ouvido a resposta oracular e lhe ter revelado que o deus já tinha dado essa mesmíssima resposta a outra pessoa!
Enomau, enfurecido com a situação e com a inesperada aldrabice, decidiu escrever um livro com um título como Detecção dos Enganadores, em que critica satiricamente a ideia do Destino e das previsões oraculares. Se infelizmente, já não nos chegou de uma forma mais completa, o quinto e sexto livros da Preparação para o Evangelho apresentam algumas citações bastante prolongadas da obra original, em que se consegue perceber bem o carácter muito jocoso das linhas de Enomau, e que não poderão deixar de fazer sorrir todos aqueles que têm interesse na religião e mitos da Antiguidade - fica o convite!
Muitos são os topónimos portugueses cuja verdadeira origem se encontra envolta em mistérios. Hoje iremos falar de outro local problemático, a Cruz Quebrada. De onde vem esse nome? Existem pelo menos duas lendas associadas a ele:
Numa delas, um moleiro local sofreu várias desilusões de amores. Procurando uma solução para os seus males do coração, aproximou-se de um herético que lhe disse que deveria fazer um dado ritual, no qual um dos passos passava por mutilar uma cruz que estava exposta em público. Imprudentemente, fê-lo mas foi apanhado; em seguida foi julgado e queimado numa fogueira, mas o acto que tinha cometido pareceu tão horrendo entre os fiéis que acabou por dar nome à povoação em que teve lugar.
Uma outra lenda diz algo significativamente diferente. Conta-nos que no tempo das invasões francesas alguns soldados estrangeiros decidiram derreter símbolos religiosos para reaproveitarem os materiais. Com vista a esse objectivo, numa dada altura foram a uma ponte em que existiam duas cruzes e removeram uma delas. Por milagre, a sua companheira começou a gritar, a pedir socorro, e só se calou quando a outra foi reposta no seu local. Tal milagre levou ao nome da "Cruz Que Brada" (i.e. que solta gritos), que mais tarde se tornou "Quebrada".
Porque tem, então, a povoação de Cruz Quebrada esse nome? O elemento miraculoso da segunda lenda é potencialmente problemático, mas não sabemos até que ponto a primeira será digna de maior crédito. Poderá, realmente, preservar a origem do nome da povoação, mas... terá sido verdade, a história que nos conta?
Hoje, enquanto vinha da universidade para casa, encontrei um quadro próximo do lixo, à chuva. Trouxe-o para casa e ainda tentei salvar o que pude (vejam os maiores danos na parte superior). É um quadro com os bustos e cronologia dos Reis de Portugal, terminando (no topo) com as figuras de D. Fernando e D. Luiz I. Este quadro foi aparentemente impresso por António Joaquim Alves em 1878, ou seja, tem aproximadamente 141 anos.
Não sei se terá qualquer valor monetário, mas provavelmente tem valor histórico. E, ainda assim, alguém decidiu deitá-lo fora, à chuva, como se fosse algo sem qualquer valor. A sério, por favor, tenham cuidado com o que deitam fora!
[Editado, em Fevereiro de 2024:]
Muitas outras coisas foram sendo encontradas no mesmo local ao longo dos anos. Porém, mais recentemente foram dignos de nota dois quadros relativos à série Fox Wood Tales. Estão ambos assinados pelos autores, e têm uma dedicatória a uma Rita e a uma Sofia. Não foi possível apurar as suas identidades, mesmo após contactar os autores da série (que podiam lembrar-se de os ter assinado em Portugal), pelo que serão doados a uma biblioteca nacional.
Este livro merece ser referido por cá dado o seu estranho papel na história da literatura ocidental. Quanto Cervantes escreveu o primeiro tomo do seu Dom Quixote, a obra tornou-se tão popular e famosa que os leitores pareciam suspirar por mais aventuras do seu herói. E elas até surgiram algum tempo depois, não pela mão do autor original, mas pela de um tal "Alonso Fernández de Avellaneda". Essa prática não era proíbida na altura, mas, pelo menos, parecia ser um pouco mal vista, dado que Cervantes ainda estava vivo. Como tal, o autor original depressa escreveu um segundo tomo "oficial", que ainda hoje é incluído nas edições dos nossos dias e em que também critica as falsas aventuras do "outro" Quixote, o de Avellaneda.
Nesse contexto, a versão de Avellaneda foi sendo esquecida - não parece sequer existir em tradução portuguesa - e é hoje vagamente criticada como sendo inferior à de Cervantes. Mas será que o é? É uma questão um tanto ou quanto discutível; essa versão apresenta uma ligação muito maior aos antigos romances de cavalaria, fazendo bastantes referências a aventuras como as de Orlando, Amadis, Palmeirim e outros tantos heróis medievais, enquanto que a do autor original abandona um pouco essa ideia no segundo tomo. Ao mesmo tempo, também é uma espécie de desfilar de desapontamentos, com uma oferta de aventuras em que o leitor é repetidamente levado a pensar uma coisa e depois lhe é dado algo completamente diferente - desde se atrasar para torneios, até defrontar gigantes que depressa se tornam donzelas, ou acabar preso numa espécie de clínica psiquiátrica, este é um Quixote bastante desapontante, apesar de ter alguns momentos reluzentes, que poderão agradar a quem ainda gosta de romances de cavalaria.
Um dado clube português, o Benfica, tem no seu emblema uma expressão latina - "E Pluribus Unum". Mas qual a sua origem, e o que significa?
A sua aparição mais famosa na Antiguidade é no verso 102 de um poema chamado Moretum, atribuído (falsamente?) a um jovem Virgílio. Nesse poema gastronómico, enquanto é preparada a refeição que lhe dá o título, é dito que color est e pluribus unus, algo como "a cor é uma de entre muitas". Ou seja, enquanto misturava os ingredientes, o sujeito poético vê as cores de cada um deles a se irem dissipando, acabando por formar uma só tonalidade final.
E, na verdade, essa ideia da mistura dos ingredientes, que se vão assimilando para formar uma só refeição, capta perfeitamente o significado de toda a expressão - também dos constituintes se espera que se unam como um só, "de muitos, um", sob a égide de quem decide adoptar este lema.
Nos próximas dias 16 e 17 vai ter lugar em Lisboa o "Festival de contadores de histórias - Festa das Palavras". Podem saber mais carregando na imagem acima.
Não nos foi fácil encontrar uma cópia desta obra, mas é uma produção literária muito interessante. De uma forma sucinta, o autor apresenta bastante informação sobre tradições culturais e locais físicos por todo o mundo da Antiguidade. Num momento conta-nos como Valério Sorano foi executado por divulgar o nome secreto da cidade de Roma; momentos depois, refere como uma dada Fausta deu à luz dois pares de gémeos ao mesmo tempo; mais à frente, revela que as cigarras da Lócrida não cantavam porque Hércules um dia lhes pediu que fizessem menos barulho; e que o túmulo de Zeus, em Creta, estava localizado no Monte Ida; ou até que no 800º ano após a fundação de Roma [i.e. 48 d.C.] uma Fénix foi capturada e posta em exibição em Roma.
Mas, a título de curiosidade, deixe-se por cá um exemplo mais concreto e prolongado. Ao longo da sua obra Solino vai descrevendo vários locais, até que chega à "nossa" Lusitânia. Primeiro refere o promontório Artabrum, "que divide terra, céus e mares", e que é hoje o Cabo Finisterra.
Depois, refere que Olissipo foi fundado por Ulisses. Continua, acrescentando que o Rio Tejo é na Lusitânia e é famoso pelas suas areias douradas. É curioso o facto de ele não relacionar as duas afirmações, ou seja, nunca diz que Olissipo é banhado pelo Tejo, o que nos leva de volta ás linhas de Estrabão sobre o mesmo tema.
Para terminar, conta a já-famosa história dos cavalos lusitanos, que diz ter lugar "numa área próxima de Olisipo". E assim é a Lusitânia, para este autor.
No seu geral, esta obra de Solino está repleta de informação antiquária, preservando até a referência a muitos mitos que não parecemos conhecer de nenhum outro lado. Infelizmente, o autor também nem sempre nos conta a totalidade dessas tramas, limitando-se a fazer-lhes breves alusões, o que acaba por ser tanto tantalizante como frustrante para o leitor.
Na zona de Cascais, tomando a estrada na direcção da praia do Guincho pode-se encontrar uma zona que tem o nome de Boca do Inferno. Uma designação tão singular certamente que tem uma razão de ser... por isso, qual é a verdadeira lenda da Boca do Inferno?
Conta-nos então a lenda que próximo do local já existiu um castelo mágico. Nele vivia um horrendo feiticeiro que desejava casar com a mais bela jovem da região. Mas, uma e outra vez, esta recusou amá-lo. Então, procurando amolecer o coração da jovem, o feiticeiro prendeu-a numa torre e colocou um cavaleiro a guardar a entrada. Um dia, movido pela curiosidade, este guarda espreitou para o interior da cela, por uma primeira vez, apaixonando-se pela donzela. Também esta parece ter caído de amores por aquele que então a observava. Juntos, decidiram fugir da torre e viver o seu amor. Porém, o feiticeiro depressa soube desta intenção comum e usando a sua magia maléfica fez brotar um enorme buraco no chão, onde os dois amantes viriam a cair (para o Inferno?); nesse momento, o cavalo de ambos deu até um enormíssimo guincho, acção pela qual foi dado esse nome a uma praia relativamente próxima - a Praia do Guincho - até onde chegou esse derradeiro grito animalesco.
Agora, se esta é a mais famosa lenda da Boca do Inferno (uma pesquisa pela internet até revela, uma e outra vez, outras versões de esta mesma história), tem o problema de pouco ou nada explicar. Na verdade, até levanta mais perguntas do que aquelas a que responde! De onde vem, então, o nome deste local? Face à ausência de outros mitos ou lendas que o expliquem, propomos aqui uma solução para o problema.
Um pequeno filme, datado de 1896 e dirigido por Henry Short, supostamente foi filmado neste local, e chama-lhe simplesmente uma sea cavern, uma caverna próxima do mar.
Fontes literárias do século XIX referem-se igualmente a uma "Boca ou Gruta do Inferno". No entanto, o que hoje podemos ver no local não é uma caverna ou uma gruta, mas pouco mais que um arco de pedra. Se o tecto dessa (suposta) caverna tiver caído ao longo dos anos - e vimos fotografias datas indisputavelmente de 1916 em que ele já não existia - a famosa lenda faz um pouco mais de sentido, mas continua sem explicar o nome do local. Porém, uma versão oral da mesma (ver aqui) dá uma pista preciosa, na medida que parece indicar que o nome era dado à entrada do local, à "boca" da caverna vista no vídeo, mais do que ao local interior em si mesmo. E isto, de facto, faz algum sentido. Quem, como tentámos há alguns dias, for a este famoso local numa manhã de tempestade, pode facilmente ouvir o barulho aí produzido pelas ondas. Soa a uma espécie de rugido, de grito infernal. Se o acesso ao interior da caverna era difícil (e tratando-se, nessa altura, Cascais de uma vila piscatória, era quase certamente feito por barco) é possível que daí tenha surgido a ideia de que esta era uma entrada, uma metafórica "boca", para o Inferno.
Mas, então, onde ficam o feiticeiro, o cavaleiro e a donzela? Essa lenda da Boca do Inferno certamente que não é medieval, nem faria sentido existindo ainda no local uma caverna. Terá nascido já em pleno século XX, numa altura posterior ao abatimento do tecto, não existindo por isso uma relação directa entre a lenda tal como a conhecemos e o nome do local? É muito provável que sim...
Conta-nos uma breve história que, numa dada altura, os impérios de Minos e de Niso se encontraram no campo de batalha. A sua batalha durou vários meses, até porque Niso tinha no seu cabelo uma madeixa de cabelo de cor púrpura que garantia a completa invulnerabilidade do reino.
Um dia, a filha de Niso, Cila, viu Minos ao de longe e apaixonou-se por ele. Pretendendo agradar ao seu amado, cortou a madeixa púrpura do pai e entregou-a a esse rei de Creta, mas ele, enojado com o acto inglório da jovem, rejeitou-a sumariamente e abandonou a sua campanha bélica (é esse momento da trama que pode ser visto na pintura acima, com o gesto de Minos a pretender o afastamento de Cila).
O que aconteceu em seguida já depende da versão do mito, mas o que sabemos é que tanto Niso como Cila sofreram uma transformação em pássaros, com o primeiro a perseguir perpetuamente a segunda, procurando vingar o ultraje de que foi alvo.
Também aqui deve ser acrescentado que a personagem desta história era uma das duas Cilas conhecidas nos mitos gregos. A outra, bem mais conhecida até da Odisseia de Homero, pode ser vista na imagem abaixo:
Esta outra Cila, quase sempre associada a Caribdis, já tem uma história mais complicada, cujos contornos variam bastante mediante a versão lida. O que se mantém, quase sempre, é o seguinte - Cila era uma ninfa bela e muito amada por um deus, mas igualmente invejada por outra figura divina que também o amava. Fruto dessa inveja, Cila foi de alguma forma envenenada e transformada numa criatura hedionda (conta-se que tinha, pelo menos, seis cabeças de cão, parcialmente visíveis na imagem), que juntamente com outro monstro mitológico atormentava os navegadores que se atreviam a passar nas redondezas, como bem ilustrado no XII livro da Odisseia. O seu destino final é um pouco obscuro, mas pelo menos dois autores referem que ela foi derrotada por algum herói e trazida de volta à vida, possivelmente na sua forma original, pela compaixão do seu próprio pai.
Hoje, mais do que mitos e lendas, trazemos cá um pouco de cultura geral. O Tratado de Tordesilhas, como é que provável que os leitores se recordem dos seus tempos de escola, foi uma convenção celebrada entre Portugal e Espanha, segundo a qual os locais por descobrir pelo mundo fora se repartiriam entre os dois países, independentemente de qual dos dois o descobriu.
Mas, visto que foram certamente poucos aqueles que o leram, pensámos que podíamos revelar três pequenas curiosidades sobre o seu conteúdo:
Como bem se sabe, a principal divisória do Tratado de Tordesilhas foi colocada 370 léguas a oeste das ilhas de Cabo Verde. Contudo, o tratado também dá algumas indicações adicionais sobre como deveriam ser traçados esses limites na prática, para que se pudesse apurar se um determinado local iria pertencer a Espanha ou a Portugal;
Também é estabelecido neste tratado uma espécie de período de carência, dizendo o que deveria acontecer aos territórios descobertos antes da sua entrada em vigor.
Mas, finalmente e talvez muito mais interessante, é o facto de nunca se propor uma divisão do globo em duas metades, como se somente Portugal e Espanha fossem merecedores de possuir tudo o que existe*. O que é dito no Tratado de Tordesilhas, isso sim, é que se um dos dois países encontrar um novo território, esse poderá vir a ser pertença do outro mediante a sua localização. Na prática, é uma espécie de pacto de não-agressão entre os territórios ibéricos, mas sem que seja estipulado o que deverá acontecer a potenciais descobertas feitas por outros países.
Se, na prática, a ideia por detrás do Tratado de Tordesilhas nos poderá parecer hoje um tanto absurda, poderá ter sido a melhor forma que os dois países encontraram para gerir aquele que poderia ser um conflito constante. Se, de um ponto de vista literário ou mitológico, este documento não tem muito interesse, o seu valor histórico é completamente inegável.
*- Parece ter até existido uma pequena piada relativamente a esta ideia. Nela, diz-se que um rei da França, anos mais tarde, pediu para ver o testamento em que Adão deixou o mundo aos Portugueses e Espanhóis...