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Mitologia em Português

31 de Maio, 2020

A origem do Tarot - verdades e falsidades

Há algumas semanas fizeram-nos uma pergunta relacionada com a origem do Tarot. Isso levou-nos a uma busca maior por respostas, mas também pela evolução e significado das suas cartas. Apesar de termos encontrado mais perguntas do que respostas, achámos que podíamos fazer aqui um breve resumo da sua origem, ou da história essencial do tarot, em sete pontos muito significativos:

 

1-- Até meados do século XV não temos qualquer prova real de que estas cartas existissem. Nenhuma!

A carta Tarocchi de Saturno

2-- Em meados do século XV sabemos que existiam em Itália um conjunto de cartas hoje chamadas Tarocchi. Eram constituídas por uma imagem, um nome, e uma numeração que as identificava numa determinada sequência, num total de 50 cartas separadas em cinco temas diferentes. Nenhuma obra literária da altura nos parece contar precisamente como eram utilizadas, mas são diversos os estudiosos que argumentam que eram usadas para ajudar a ensinar as crianças de famílias mais abastadas, como se fossem as flash cards dos nossos dias. No exemplo acima pode ser visto o deus Saturno a devorar um dos seus filhos, numa evidente referência ao cerne do mito latino.

A carta Tarocchi da Justiça

3-- Juntamente com estas cartas existiam várias outras chamadas Tarocco, que eram usadas para jogos. Entre as que compunham os baralhos para esses jogos incluíam-se algumas das representações também presentes nas anteriores, como a imagem da "Justiça", mostrada acima, permite compreender. O que é importante frisar sobre estas cartas, independentemente da composição do baralho, é que eram usadas exclusivamente para jogos lúdicos, não tendo qualquer relação com a cartomancia ou alguma tentativa de previsão do futuro.

A carta XVI do Tarot

4-- Nenhum autor nos parece ter preservado o verdadeiro significado por detrás das imagens presentes nessas cartas. Na verdade, algumas delas até mudavam frequentemente de nome e de imagem; por exemplo, na carta XVI "A Torre" podia ser substituída por "O Relâmpago"... mas quem olhar para a primeira das duas poderá ainda encontrar frequentemente o segundo elemento lá, podendo fazer crer que o elemento pictórico original era mesmo esse, mais do que algum edifício.

 

5-- Na segunda metade do século XVIII - ou seja, quase 300 anos depois da sua primeira aparição atestável - é que nos aparecem provas de que essas cartas eram usadas para cartomancia, uma prática que foi popularizada por Jean-Baptiste Alliette, i.e. "Etteilla". A ideia parece ter originado com Antoine Court, cuja obra Le Monde primitif argumentava, sem quaisquer provas reais, que estas cartas vinham do tempo dos Egípcios. A origem do Tarot, no sentido moderno da ideia e na sua função de prever o futuro, é indisputavelmente desta altura!

 

6-- Porquê os Egípcios, e não os Gregos ou os Romanos? Esse autor, também conhecido como Court de Gébelin, vivia numa altura em que existia uma espécie de pandemia de amor por tudo o que viesse do Egipto; sem quaisquer provas reais, repita-se essa ideia crucial, levantou então a "certeza" de que as cartas em questão escondiam um conhecimento secreto dos Egípcios.

 

7-- Voltando a "Etteilla", parece ter sido o primeiro autor famoso que popularizou e ensinou como usar estas cartas para prever o futuro, associando a elas um conjunto de ideias místicas. Outros autores seguiram-se, atribuindo diferentes ideias místicas às mesmas cartas ou a baralhos muito semelhantes. Daí, a ideia foi chegando aos nossos dias.

 

Face a estas provas, que são fáceis de comprovar, uma questão tem de ser posta - será o tarot digno de algum crédito? Mesmo que queiramos acreditar, de forma completamente imparcial, nas ideias de autores como Jean-Baptiste Alliette, há que reconhecer que elas têm uma falha fatal, que é o facto de se basearem em cartas cuja composição e significados originais são completamente desconhecidos, e que até foram sendo alteradas ao longo dos séculos.

Por exemplo, a carta XVI, já mostrada acima, pode ser chamada "A Torre" mas mostra é frequentemente a destruição desse edifício. Seria, originalmente, uma alusão à Torre de Babel bíblica, que não parece ter vindo das cartas do Tarocco mas de outro baralho? É possível que sim, até o afirma a "Dra." Maria Helena da televisão, mas então o que dizer da carta XII, que tem representada um homem pendurado pelos pés, como eram punidos alguns criminosos na Itália do século XV? Ou como fazer sentido da ideia de que a carta IX, "O Eremita", representava originalmente o Tempo, i.e. o conceito grego, com uma ampulheta na mão? Ou como explicar a presença de apenas três das quatro virtudes cardeais - o que aconteceu à Prudência, que até aparecia nas cartas Tarocchi e em outros baralhos do mesmo género?

A carta Tarocchi da Prudência

É estranhíssima, esta ausência em particular, dado todo o contexto em que se insere, mas também nos permite provar algo - mesmo que até preservassem um qualquer conhecimento secreto, esse seu significado original já se perdeu há muitos séculos atrás. Se as cartas conhecidas como Tarocchi eram compostas por cinco ciclos de dez constituintes cada, cujos significados contextuais são fáceis de compreender, nas cartas do Tarocco, que viriam dar lugar aos Arcanos Maiores do Tarot, essa relação já não existe, nem sabemos se algum dia terá existido. Nem sabemos verdadeiramente de onde surgiram cartas como "A Torre" ou "A Papisa", apenas para dar dois exemplos.

 

O que sabemos, isso sim, é que a origem do Tarot não está ligada à Antiguidade, e dizer que as suas cartas constituintes preservam, por exemplo, algum conhecimento secreto de um tal Livro de Thoth (sim, o deus egípcio do conhecimento), como o quis dizer Jean-Baptiste Alliette, é puramente falso. Querer prever o futuro com cartas de Tarot - ou com quaisquer outras - deve sempre ter em conta esta sua falsa herança... porque, na verdade, utilizá-las a elas, seja porque método for, não faz qualquer sentido real, só nos podendo dar as respostas que os "leitores" de cartas já sabem que queremos ouvir. E nenhuma Maya, Maria Helena, ou outro dos tantos "astrólogos" que existem pode mudar isso...

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31 de Maio, 2020

O mito de Hermafrodito e Salmacis, a ninfa violadora

Não é Salmacis, mas até podia ser...

São virtualmente incontáveis os mitos gregos e latinos em que uma personagem do sexo masculino não sabe aceitar o desinteresse do sexo oposto. Porém, o mito comum de Hermafrodito e Salmacis prima por apresentar uma situação oposta, mostrando-nos o caso de uma ninfa - ou, para sermos mais precisos, uma naíade - que, pura e simplesmente, não sabia aceitar um "não" alheio.

 

Hermafrodito era um jovem de 15 anos que, um dado dia, decidiu passear pela floresta. Enquanto habitava a sua pequena fonte, Salmacis viu-o e sentiu um enorme amor à primeira vista. Tentou insinuar-se perante ele, tentou beijá-lo, tentou mil outros estratagemas, mas o jovem pura e simplesmente não tinha qualquer interesse nela. Então, irritada, decidiu enganar Hermafrodito, para que este tomasse um pequeno banho na fonte. Quando, ingenuamente, ele acabou por o fazer, Salmacis puxou-o para seu lado, abraçou-o com força, cobriu-o de beijos e disse que nunca mais o iria largar, pedindo aos deuses que a fizessem cumprir essa promesa. Eles, inesperadamente, e sem nunca ouvirem os horrendos gritos de desespero do jovem, fundiram então Salmacis e Hermafrodito num só corpo, que ambos depois viriam a ocupar para o resto do tempo...

 

Muito podíamos escrever sobre este mito em específico, desde a origem do nome de Hermafrodito até ao possível facto de toda esta história poder ter sido uma invenção ovidiana, mas se o contamos hoje é por uma necessidade especial. Raramente nos metemos em certo tipo de questões, mas... hoje, abrimos uma pequena excepção. A violência, no contexto de qualquer espécie de relação, nunca é aceitável. Nunca. Há pouco mais de uma semana uma amiga pessoal sofreu algo completamente bárbaro por causa de um homem, numa situação com contornos como os acima, e... se gostam de uma pessoa, tenham a decência de a respeitar sempre. Para vosso bem e deles.

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30 de Maio, 2020

As quatro figuras místicas dos quatro evangelistas - e seu significado

Há já alguns anos sentámo-nos com uma amiga na Igreja de São Roque, em Lisboa. Quem explorar bem o local poderá encontrar, nas colunas laterais dos dois lados deste templo, quatro figuras humanas, estando elas acompanhadas por uma águia, um anjo (ou homem), um touro e um leão.

Que as quatro figuras humanas são os quatro evangelistas - Mateus, Marcos, Lucas e João - é relativamente fácil de inferir por todo o contexto, mas a questão da nossa amiga era um pouco mais difícil - porquê estes animais, e como foram eles associados a cada um dos evangelistas?

Um Querubim

A primeira resposta não é muito difícil - quando o profeta Ezequiel viu os Querubins, definiu-os como tendo quatro asas e quatro caras distintas - águia, homem, touro e, finalmente, leão. Por isso, se estas eram as quatro formas que compunham a totalidade de um ser divino, faz algum sentido que a totalidade do cânone bíblico fosse associada ás mesmas quatro figuras.

 

A segunda resposta, no entanto, é bastante mais complexa, porque a associação dos quatro animais aos quatro evangelistas foi variando ao longo dos séculos e entre os diversos autores. Por exemplo, para Santo Ireneu a figura do "leão" era João, para Hipólito de Roma era Mateus e para São Jerónimo já era Marcos. Agora, mais do que dar aqui as suas justificações individuais, importa frisar o que todas elas tinham em comum - associavam uma característica metafórica de cada uma das quatro figuras a uma característica que os autores atribuíam aos próprios evangelistas, e.g. "Marcos é representado com o homem porque no seu evangelho Jesus nasce como um". Por isso, na verdade não há uma associação que se possa dizer que é a correcta, todas elas está abertas a debate.

 

Portanto, os quatro evangelistas estão associadas a quatro figuras místicas - águia, anjo (ou homem), touro e leão - porque essas mesmas quatro figuras constavam no Querubim de Ezequiel, mas os seus significados e associações variam bastante. Será que estes argumentos, que não foram apresentados na altura, teriam convencido a nossa amiga?!

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30 de Maio, 2020

Cyrano de Bergerac e as visitas à lua e ao sol

A figura de Cyrano de Bergerac é-nos hoje famosa de uma peça de teatro e alguns filmes em que é representado como um bom espadachim, um belíssimo poeta, e igualmente possuidor de uma cara com um proeminente nariz. A tragédia, da autoria de Edmond Rostand, é de finais do século XIX, mas parece ter-se baseado na vida de uma figura bem real, um Cyrano de Bergerac que viveu na primeira metade do século XVII. Relatar os eventos (reais) da sua vida ultrapassam o nosso objectivo de hoje, mas bastará dizer que entre os livros que ele escreveu se contam duas obras, publicadas postumamente, que são muito curiosas.

Uma viagem pelos céus

A primeira dessas duas obras de Cyrano de Bergerac chama-se História Cómica dos Estados e Impérios da Lua. É uma novela em que o herói viaja de Paris para a Lua, onde encontra toda uma civilização de estranhas criaturas. Também visita o Jardim do Paraíso (uma sequência parcialmente censurada em algumas versões), tem alguns diálogos com o Daemon de Sócrates, entre outras aventuras, mas o seu elemento mais proeminente são algumas sequências (jocosas) de debates filosóficos, em que num dado momento até é defendido, com argumentos completamente lógicos, que cortar uma couve é um crime maior do que matar uma pessoa.

 

A segunda é conhecida como Os Estados e Impérios do Sol, e é uma sequela da anterior. Após ter voltando à Terra, pouco depois a personagem principal vai parar ao Sol, onde encontra várias outras aventuras. Apesar de alguns momentos filosóficos (por exemplo, até é explicado o porquê do herói não ficar queimado...), esta é uma sequela mais focada na aventura, em que vão surgindo personagens e situações completamente inesperadas umas após as outras. A mais interessante de todas elas é a do mito da Árvore de Orestes e Pílades, uma reinterpretação sequencial de diversos mitos da Antiguidade, que até poderemos contar aqui um dia destes.

 

O final da segunda obra até faz uma breve menção a uma possível sequela, que aparentemente não existe, o que nos faz pensar... será que o autor estava familiarizado com as obras de Luciano da Samósata, em particular a História Verdadeira, em que eventos semelhantes a estes têm lugar? Será essa ausência de uma terceira sequela uma tentativa de homenagear a obra de Luciano, em que uma sequela também é prometida mas não existe? Não sabemos, mas tanto nestas duas obras como nas do seu predecessor da Grécia Antiga não seria incorrecto chamá-las de ficção científica, que até inspiraram autores posteriores.

 

Enfim... merecem ser lidas, estas duas obras de Cyrano de Bergerac? São obras leves, que podem ser lidas com um notável prazer lúdico, mas também não são muito fáceis de encontrar. Assim, se as virem a ambas numa qualquer livraria e a um preço convidativo, não hesitem!

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29 de Maio, 2020

Porque são os santos sempre representados de forma igual?

Ontem vieram fazer-nos uma questão muito pouco vulgar - porque é que Santo António (de Lisboa ou de Pádua) é representado sempre da mesma forma? Pense-se no tema por um breve instante - quando imaginamos figuras como Jesus Cristo, Santo António, São Pedro, Santa Isabel, etc., tendemos a imaginá-las de uma forma muito específica e consistente. Por exemplo, Santo António costuma ser visto assim:

Santo António

Porque acontece isto? Porque é que raramente vemos um Santo António de barba, um Jesus Cristo negro, uma Nossa Senhora com a pele tingida pelo sol, ou um Judas Iscariote sem os seus dinheiros?

 

De uma forma simplificada, podemos dizer que isto acontece porque quem tende a pintar essas representações recorre a manuais iconográficos, em que é dito como determinadas figuras e cenas devem ser representadas, até para que possam ser facilmente reconhecidas pelo público. Agora, se existem vários manuais desta natureza, tanto para iconografia do paganismo como já da era cristã, os exemplos de hoje provêm de uma obra de meados do século XIX chamada Manuel D'Iconographie Chretienne, Grecque Et Latine, que se foca na pintura. Ironicamente, não nos recordamos de ter visto o nosso Santo António por lá, mas podemos deixar aqui alguns exemplos de como essa sugestão é feita.

 

Imagine-se que alguém queria pintar o confronto do Rei Herodes com os chamados três Reis Magos. É dito que o deveria fazer assim:

Um palácio. O rei Herodes senta-se sobre o seu trono numa sala. Em frente dele, os três reis magos estendem as suas mãos em direcção a ele. Do lado de fora, os judeus, os escribas e os fariseus falam entre eles.

Três Reis Magos e Herodes

 

Na mesma obra também estão contemplados alguns exemplos menos comuns. Por exemplo, o confronto mortal de São Pedro com Simão Mago deveria ser representado assim:

Casas; o templo. No ar, dois demónios alados. Simão o Mago caído por terra, com o crânio partido. Pedro estende a mão e ameaça os demónios. Próximo dele, uma multidão de homens.

Pedro e Simão Mago

Como as duas imagens acima permitem compreender, estes esquemas não eram totalmente fixos, e até permitiam alguma imaginação pessoal do artista - Simão Mago é aqui visto ainda em pleno ar, antes de cair, mas com São Pedro já a fazer as suas ameaças, enquanto uma multidão assiste a toda esta cena do confronto mágico.

 

Manuais como estes permitem identificar muitas cenas cristãs e as personagens que nelas intervêm, mas desenganem-se aqueles que têm o sonho secreto de ir a igrejas e, de uma vez por todas, saber a identidade de todos os santos nos altares. O manual que consultámos nem sempre é tão específico como nestes exemplos. Assim, sobre Hipólito de Roma é apenas dito que ele deveria ser representado "jovem, com pouca barba", enquanto que São Cipriano deve ser "jovem, [de] cabelos frisados, [com] barba grande e separada em duas". Será que outros manuais, mais específicos, são usados para a estatuária, de forma a representar um santo não pelos seus episódios conhecidos mas por um conjunto de elementos que transporta consigo? Faria todo o sentido que sim, mas esse elemento apenas surge em alguns dos santos desta compilação - por exemplo, de um deles é dito que deve transportar a cabeça nas mãos.

 

De toda esta forma se explica o porquê de existir uma grande horizontalidade na forma como são representados os santos cristãos, ou o porquê de certas cenas mitológicas serem sempre apresentadas de uma forma muito semelhante no Renascimento. Isso acontecia, e acontece, porque essas representações seguem um determinado modelo, que diz ao artista como ele se pode assegurar que a sua representação da personagem X ou cena Y bate certo com a de outros artistas, permitindo ao mesmo tempo evitar que ele tenha de aprender um conjunto infindável de temas somente para precaver o caso de, um dia, alguém querer representar a morte de Maria Madalena.

Alguma dúvida?

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29 de Maio, 2020

A lenda do Boto Cor-de-rosa, e o "filho de boto"

A lenda deste Boto Cor-de-rosa, e a expressão que dela deriva (i.e. filho de boto), deve começar com uma breve explicação para os Portugueses - um boto não é senão um golfinho, apesar do seu nome menos vulgar. O vocábulo é mais frequente no Brasil, apesar do dicionário português da Priberam nos informar que ambas as palavras significam uma e a mesma coisa.

Agora, passando ao que interessa, em certas zonas do Rio Amazonas vive uma espécie de boto que é cor-de-rosa, distinguindo-se facilmente do "tucuxi" cinzento. Mas ele não parece ser muito frequente, o que poderá ter gerado a seguinte lenda:

Um boto cor-de-rosa

Segundo ela, nas noites de lua cheia - ou nas de Santo António, São João e São Pedro, segundo outra versão - este boto cor-de-rosa tem a capacidade de se transformar num homem belíssimo. É uma metamorfose quase total, com a excepção da narina que ele tem - como os golfinhos que tão bem conhecemos - no topo da sua cabeça. Para suprir essa falha, ele usa sempre um chapéu durante as suas aventuras noturnas.

Com essa sua beleza em forma humana, este boto cor-de-rosa, introduz-se em algumas aldeias e finge ser nada mais que um homem vulgar, apesar de lindíssimo. Depois, seduz alguma jovem e engravida-a na beira de um curso de água, antes de desaparecer de uma forma tão misteriosa como surgiu. E a jovem, essa, confrontada com uma gravidez não planeada e misteriosa, fica sem saber o que fazer...

 

A origem desta lenda do Boto Cor-de-rosa é muito fácil de compreender, mas é também desta mesma história que surge a expressão "filho de boto", desconhecida em Portugal, que é dada a um filho de pai incógnito, ou até potencialmente de uma violação. Desconhece-se se alguém ainda diz mesmo que foi engravidada por um boto com poderes mágicos (quem estiver no Brasil e souber responder a isto, por favor deixe um comentário abaixo!), ou se alguém ainda acredita nisso, mas esta expressão chegou aos nossos dias no sentido mais geral de apresentar alguém que tem um filho cujo pai é desconhecido.

E, se ficaram curiosos sobre a origem e significado de outras expressões mitológicas que ainda são usadas em Portugal e no Brasil nos nossos dias, podem encontrar mais na nossa secção de expressões.

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28 de Maio, 2020

A origem dos Gnomos, Silfos, Salamandras e Ondinas

A origem e por detrás destas quatro criaturas - Gnomos, Silfos, Salamandras e Ondinas - é tão semelhante que nos pareceria absurdo tentar separá-las, razão pela qual temos de unir as suas quatro histórias neste breve relato.

Gnomos, Silfos, Salamandras e Ondinas e os Quatro Elementos

A ideia ocidental de que existem quatro elementos no nosso mundo, de que tudo o que existe é originário e composto, vem dos tempos da Antiguidade, como já cá foi apontado antes. Da mesma altura também vem uma ideia de que existiam vários seres semidivinos que habitavam na natureza, como as Dríades e as Ninfas. Face a estas duas ideias, no século XVI - e já num contexto da Alquimia - o suíço Paracelso parece ter inferido um passo adicional... e dizemos que "parece" porque, na verdade, esta informação surge em uma das suas obras, Ex Libro de Nymphis, Sylvanis, Pygmaeis, Salamandris et Gigantibus, etc, de uma forma muito misteriosa, em que o autor nos diz que toda a ideia já o precedia, que os quatro nomes tinham sido (mal) escolhidos por terceiros, mas depois, quem for tentar investigar todo o tema, apercebe-se que não parece existir qualquer fonte escrita sobre estes temas que o preceda.

 

O que são, então, estas quatro classes de criaturas? Essencialmente, e segundo o autor, elas são uma espécie de espíritos que habitam em cada um dos quatros elementos. Se, por exemplo, os seres humanos conseguem respirar o ar mas se afogam na água e se queimam no fogo, as ideias deste autor postulam que existem classes existenciais que reagem de uma forma semelhante nos seus respectivos elementos, i.e. os Gnomos vivem na terra, os Silfos ou Sílfides no ar, as Salamandras no fogo e as Ondinas na água. É uma ideia que pode levantar um conjunto enorme de questões, até porque em alternativa o autor também lhes chama Pigmeus, Silvestres, Vulcanos e Ninfas, pelo que convém falar um pouco mais sobre aquela tal obra em que o autor os refere a todos pelo que parece ser a primeira vez literária.

 

Sobre o Ex Libro de Nymphis, Sylvanis, Pygmaeis, Salamandris et Gigantibus

 

De que fala, portanto, o Ex Libro de Nymphis, Sylvanis, Pygmaeis, Salamandris et Gigantibus? Ele não foi fácil de obter nos dias de hoje (já cá falámos brevemente do problema), mas ao longo de seis capítulos Paracelso explica que estas criaturas foram criadas por Deus mas não têm alma, necessitando de casar com seres humanos para a obter - mas, curiosamente, isso só parece acontecer no caso das Ondinas! Continua explicando que cada uma destas quatro criaturas vive no seu próprio elemento, em que circunstâncias elas aparecem aos seres humanos, e dedica um capítulo exclusivo aos Gigantes, aqui definidos como seres nascidos da terra, antes de terminar com um capítulo em que explica as suas causas e consequências. Então, explicando-se tudo isto de forma breve, cada uma das quatro espécies vive num determinado elemento e Deus utiliza-as para determinadas tarefas em cada um deles, como por exemplo, no caso dos Gnomos, garantir que os seres humanos não encontram os tesouros no interior da terra demasiado depressa.

Mas... se já se falou de duas das espécies, o que dizer sobre os Silfos e as Salamandras? O autor até dedica alguns parágrafos à primeira destas duas, definindo-as como os "seres da floresta", mas sobre as segundas nunca parece dizer nada de muito significativo, o que não pode deixar de intrigar o leitor. Será que nada se sabia sobre elas? Será que eram apenas as criaturas que viviam nos vulcões, nas chamas, e nos fogos fátuos, que nos chegavam para anunciar mortes vindouras? Se, alguns dos casos, parece já existir uma mitologia bem definida por detrás destas classes de seres, em outros isso não acontece, levando a que este livro dê, de uma forma quase constante, a ideia de que o autor sabia, ou tinha ouvido, muito mais do que aquilo que nos deixa por escrito.

 

Ainda assim, as ideias aqui sugeridas acabaram por ter uma certa importância não só na cultura ocidental, como também em jogos de computador, em que estas criaturas aparecem frequentemente. A título de exemplo, sabiam que, na versão original da história de Hans Christian Andersen, a Pequena Sereia era na verdade uma Ondina, o que até pode justificar o estranho final da sua história, em que a jovem queria casar com um ser humano? O Gnomo já nos parece, hoje, muito mais frequente em histórias ficcionais, enquanto que os Silfos e as Salamandras (enquanto seres místicos, não nos referimos ao animal!), parecem estar muito mais esquecidos que os outros seus companheiros...

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28 de Maio, 2020

A lenda do Basilisco de Viena - e os outros basiliscos!

Um ataque ao basilisco de Viena

Quem for a Viena, capital da Áustria, poderá sem grande dificuldade encontrar um local a que os nativos chamam Basiliskenhaus, ou casa do basilisco. Situada em Schönlaterngasse nº 7, a fachada do edifício contém uma antiga estátua do monstro, uma pintura alusiva à lenda e um relato de toda a ocorrência (em alemão). Não valerá a pena traduzir as palavras precisas da lenda, mas podemos recapitulá-la, tal como nos foi contada há alguns anos.

Em 1212 existia uma padaria nesta mesma localização. Dado dia, quando um aprendiz de padeiro necessitou de ir buscar água a um poço próximo, pelo horrendo cheiro que vinha do interior apercebeu-se da presença de uma estranhíssima criatura. Por razões que não são totalmente claras conseguiu reconhecê-la como um basilisco, e sabendo que a criatura transformava em pedra todos aqueles para quem olhava, depressa formulou um plano para a destruir.

Voltando a sua casa, foi buscar um pequeno espelho e usando uma corda desceu ao interior do poço. Movendo-se rapidamente, apontou logo o espelho à criatura, que acabou por usar o seu enorme poder destruidor contra si mesma, explodindo. Depois, tal foi a fama de todo este episódio [histórico?] que os habitantes da cidade decidiram construir no local um memorial.

 

Mas, para nós, o que toda esta lenda do Basilisco de Viena tem de mais especial é o facto de nos preservar no tempo um momento muito concreto da crença nesta criatura. Quem a for procurar em fontes da Antiguidade saberá que se tratava de um animal metade-galo, metade-serpente, por vezes nascido da estranha paixão entre esses dois animais ovíparos, e que matava quem se cruzava com ele de alguma forma muito pouco comum.

Que forma era essa... depende da versão do mito! Em algumas é o cheiro do animal que é mortal; noutras, é o seu olhar, como se de uma nova Medusa se tratasse; uma terceira versão atribiu esses poderes ao próprio aspecto da criatura, que matava - por magia? - quem se atrevia a olhar para ela; ainda outras falavam do próprio toque do estranho animal. E assim por diante, com inconsistências que são fáceis de explicar pela notória impossibilidade de alguém ter visto (verdadeiramente) um basilisco, seja em Viena ou em algum outro local.

 

O Basilisco de Viena é, para quem prestar muita atenção, uma confluência de crenças sobre algumas das várias versões do basilisco. Por exemplo, ele cheira mal - mas já não mata pelo cheiro; ele tem um olhar mortal, mas que apenas afecta aqueles para quem olha - ou seja, o aprendiz de padeiro pode vê-lo sem se transformar em pedra; mais do que ser transformada em pedra pelo seu próprio poder, a criatura explodiu - impedindo que alguém a capturasse. É, por isso, um perfeito exemplo de como as crenças sobre determinadas criaturas lendárias foram evoluindo ao longo dos séculos, sendo em plena Idade Média já muito diferentes de como eram conhecidas na Antiguidade.

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27 de Maio, 2020

A lenda do Buraque

A lenda do Buraque procura resolver um problema milagroso - quando, nos textos bíblicos ou religiosos, ouvimos que uma determinada personagem foi transportada do local A para o local B muito rapidamente, é fácil descartar essa viagem com um simples "foi milagre". E quem diz "milagre", pode sempre substitui-lo pela presença de um qualquer anjo ou figura divina. A lenda do Buraque (ou, no original, الْبُرَاق), apesenta-nos uma alternativa curiosa.

Um Buraque

Segundo a tradição islâmica, numa dada altura da sua vida o profeta Maomé viajou de Meca a Jerusalém - uma viagem de aproximadamente 1400 Km - numa só noite. Segundo algumas versões, essa viagem foi feita com a intervenção de um anjo, mas noutras o arcanjo Gabriel apareceu a Maomé e trouxe-lhe um Buraque, capaz de fazer essa enorme distância muito rapidamente. Depois, se até existem outras menções a esta criatura na literatura islâmica, esta é a sua lenda mais essencial.

 

Mas... e então, o que é um Buraque? Essencialmente é um animal branco, "maior que um burro mas mais pequeno que uma mula" (assim o dizem diversas fontes), com uma cara bonita. As fontes que consultámos nunca referem uma cara com forma humana, mas o animal é sempre representado como na imagem acima, talvez por se supor que uma "cara bonita" equivale a uma que seria considerada atraente pelos seres humanos.

Nesse mesmo contexto, é possível que esta estranha ideia tenha vindo de séculos anteriores, baseando-se em criaturas divinas como o Lamassu da Babilónia:

Lamassu

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27 de Maio, 2020

"O Livro dos Seres Imaginários", de Jorge Luis Borges

Capa do livro

O Livro dos Seres Imaginários, de Jorge Luis Borges, pode ser sucintamente resumido como um bestiário dos nossos dias. Contém informação breve - desde um parágrafo até duas ou três páginas - sobre mais de uma centena de criaturas. Em comum, e como nem poderia deixar de ser em virtude do título da obra, têm o facto de serem imaginárias, que ocorreram na literatura e ficção desde os tempos do Épico de Gilgamesh até quase aos nossos dias.

 

Agora, a grande questão terá de ser... será que este Livro dos Seres Imaginários é uma obra literária recomendável? Aí é que a proverbial porca já torce o rabo - quem já conhece as criaturas que aparecem no livro pouco de novo aprenderá aqui; quem ainda não as conhece, e salvo raras excepções, só em muito poucos casos é que são dadas informações bibliográficas suficientes para que se possa desenvolver essa exploração adicional. Nesse sentido, é um livro um tanto ou quanto inconsistente, que num momento chega a dizer em que verso de Orlando Furioso primeiro surgem os hipogrifos,  e momentos depois menciona criaturas chinesas que poucos ocidentais conhecerão sem que nos seja informado onde podemos vir a saber mais sobre elas. Por razões como essas, esta é uma obra digna de nota, mas não tanto uma obra que recomendemos.

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