A lenda do Doutor Fausto
A lenda do Doutor Fausto apareceu na Europa por volta do século XVI, mas o facto de ser relativamente recente não a torna menos interessante, bem pelo contrário. Na verdade, ainda hoje se debate a identidade deste "Fausto", se ele terá sido baseado numa figura real ou se é apenas uma mera lenda fantasiosa, com tantas outras histórias do sobrenatural que nos foram chegando ao longo dos séculos. Não sabemos. Por isso, recorde-se aqui a sua história, e que seja o leitor a decidir o que pensa de tudo isto.
O homem que ficou conhecido sob este nome estudou muito. Uma das versões da sua história que lemos diz que ele tinha "16 mestrados", num possível erro de tradução do alemão original, antes de se doutorar em Teologia. Porém, por muito que estudasse sempre sentiu que esse seu conhecimento lhe servia de pouco. Queria mais, queria o tipo de conhecimento que normalmente está vedado aos seres humanos. Então, recorrendo às artes mágicas e a uma renegação do Cristianismo, fez um pacto com uma entidade demoníaca, Mefistófeles, entregando-lhe a sua vida e vendendo-lhe a sua alma se este fizesse tudo o que lhe pedia durante alguns anos (24, segundo algumas versões). Até aqui a trama é relativamente estável, com algumas ligeiras diferenças, mas depois surgem dois possíveis caminhos.
Nas versões mais antigas, de que a Trágica História do Doutor Fausto será provavelmente a mais famosa nos nossos dias, os poderes concedidos por Mefistófeles parecem agradar ao Doutor Fausto, que se mostra repetidamente satisfeito ou temente do seu pacto, que no início até o conduz ao conhecimento que ambicionava, mas que depois o parece levar a diversas mesquinhices menores. Há momentos em que parece querer voltar atrás, e outros em que se sente impotente para alterar o seu destino. Por exemplo, quando diz que gostava de casar, o seu ajudante demoníaco diz que tal não é possível, porque o casamento é um acto divino e ele tinha renegado a tudo o que diz respeito a Deus; em vez disso, envolve-se sexualmente com Helena de Tróia e tem um filho dela, numa sequência com quase nenhuma importância na trama. No final, completamente incapaz de alterar o destino que já antevê há muito, é morto de uma forma horrenda, indo para o Inferno.
É igualmente notável a versão da famosa tragédia de Johann Wolfgang von Goethe, que possivelmente terá inspirado autores como Thomas Mann. Aqui, todo o conflito interno do Doutor Fausto é quase posto de parte, com Mefistófeles a tornar-se uma espécie de companheiro ajudante que vai permitindo e colaborando em tudo aquilo que o herói deseja. Há uma trama amorosa mais marcada, com a paixão do herói pela jovem virgem Gretchen, que acaba mal (e dificilmente não suscitará alguma tristeza no leitor). Porém, na segunda parte da obra o herói também se apaixona por Helena de Tróia, no meio de uma sequência - criada totalmente pelo autor - em que entram as mais diversas personagens mitológicas da Antiguidade. No final, a personagem principal morre e vai para o Céu, mas as razões para tal pouco lhe pertencem. Acaba por ser desapontante, porque esta figura - por oposição à da versão anterior - é que parece merecer ir para o Inferno...
O que retirar de toda esta lenda? Apesar de estas duas versões serem significativamente diferentes (seria uma delas católica, e a outra protestante, como um dia se perguntou Teófilo Braga?), apresentam um cerne comum, uma espécie de advertência face aos pactos com o Diabo, de que cá falámos recentemente. Nunca correm bem, levando (pelo menos) à horrenda destruição do Doutor Fausto na primeira versão, e ao doloroso final de Gretchen na segunda. Portanto, se alguém até estava a considerar tomar uma decisão como essa na sua vida, fica o aviso de que tende sempre a correr muito mal para todos os envolvidos; mas, com um sorriso difícil de negar, também convém admitir que são já muito poucos aqueles que ainda acreditam nestas coisas... estará, nos dias de hoje, Mefistófeles desempregado?