Falando das famosas Obras de Santa Engrácia, há alguns dias podia ser visto um pequeno anúncio nesta página, criado por uma companhia de seguros, que dizia que "encontrar um seguro para a casa não tem de ser uma..." Infelizmente não fomos pagos para lhes fazer esta publicidade adicional, nem sabemos de que companhia se tratava, mas o seu uso da expressão não poderia senão inspirar-nos a escrever estas linhas. Portanto explique-se, em que consistiram essas famosas obras? Qual a origem e significado dessa conhecida expressão? Tratando-se de uma das mais famosas expressões e lendas portuguesas, achámos que poderíamos contar a sua origem e significado, bem como a sua história essencial:
Entre as muitas freguesias da cidade de Lisboa contava-se, anteriormente, uma chamada "Santa Engrácia". Tinha esse nome porque aí estava localizada uma pequena igreja à mártir do mesmo nome, onde supostamente estavam alojadas as suas relíquias. Depois, ao longo dos anos esse espaço religioso foi caindo no esquecimento, até que em 1681 já estava muito degradado. Por isso, no ano seguinte decidiu-se construir uma nova igreja para a santa, e a sua primeira pedra foi lançada logo em 1682. Porém, naquele que será talvez o mais clássico de todos os exemplos do "adiar, adiar, adiar" sempre tão presente no povo português, a sua construção só foi terminada em 1966, ou seja, quase 300 anos depois!
Porque demorou tanto tempo? Como é comum no povo português, existiram desculpas de todo o tamanho e feitio. Desde maldições lendárias* até ao terramoto de 1755, passando por mudanças políticas, foram surgindo sucessivamente um conjunto de razões que pura e simplesmente levaram ao adiamento da sua conclusão. E então, tudo foi sendo adiado, adiado e adiado, uma e outra vez...
Hoje, a Igreja de Santa Engrácia já pode ser visitada em Lisboa, mas é mais conhecida sob outro nome, o de Panteão Nacional. Não é, na nossa opinião (fomos visitá-la há já uns anos), um local muito interessante para visita - o Mosteiro de São Vicente de Fora, localizado relativamente perto, é muito melhor, apesar de ser, hoje, muito menos conhecido. Mas estamos a escapar um pouco ao tema - quem nunca tiver visto esta igreja pode agora visitá-la, de uma forma completamente virtual, abaixo (o 4º piso, por exemplo, permite uma bela panorâmica sobre parte da cidade):
Mas volte-se é ao tema principal de hoje. A expressão "Obras de Santa Engrácia" teve a sua origem, naturalmente, no tempo quase infindável que levou à sua conclusão. E o seu significado parte da mesma razão, sendo a expressão normalmente utilizada quando nos queremos referir a algo que ou é muito difícil de terminar, ou demora muito tempo (como no anúncio que referimos acima). Esperemos, no entanto, que já ninguém a utilize com o significado de se demorar os literais 300 anos a concluir algo...
*- Para quem tiver essa curiosidade, podemos também contar aqui essa pequena lenda, outrora famosa, através da inesperada voz da mãe do mitologista Consiglieri Pedroso:
No século passado [i.e. XVII] existia uma freira - de nome Violante - no convento que ficava junto ao edifício então em construção para a igreja matriz de Santa Engrácia. Namorou-se essa freira de um rapaz - de nome Simão Pires Solis - e conseguiu que ele lhe fosse falar ao convento, deitando para isso todas as noites uma corda de seda pelo muro da cerca, por onde ele às escondidas subia. Vinha o mancebo a cavalo e para não ser pressentido envolvia as patas do animal em algodão em rama. Aconteceu que por essa ocasião houve na igreja do convento um desacato. Foi roubado o sacrário com as sagradas partículas, e ao outro dia um carro ia a passar pelo Campo de Santa Clara, os bois recusaram-se a andar num certo sítio, chegando mesmo a ajoelhar. Descoberta a causa disto viu-se que eram as hóstias, que os ladrões tinham roubado, que estavam ali enterradas. Foram novamente recolhidas à igreja, e houve uma procissão de desagravo, (nome que depois ficou ao convento) e outras cerimónias expiatórias. Os vizinhos, porém, que tinham descoberto os amores do mancebo com a freira, foram denunciá-lo ao Santo Ofício, e uma noite, quando vinha segundo o seu costume a descer pelo muro da cerca, foi preso e conduzido ao cárcere, tendo-se-lhe encontrado as patas do cavalo forradas de algodão. A freira apenas soube da prisão do seu namorado, e aflita com medo de alguma indiscrição que causaria a sua perda, mandou-lhe dois melões, um inteiro e outro «calado» (com uma pequena abertura que se costuma fazer para a prova) dizendo-lhe ao mesmo tempo que "o calado era o melhor". O mancebo compreendeu a advertência e guardou um silêncio absoluto a todos os interrogatórios. Foi por isso condenado a morrer pelo crime do desacato e profanação da igreja. No momento porém de ir para o suplício, voltando-se para a igreja então em construção, disse: «Morro inocente! E é tão certa a minha inocência como é certo que nunca se hão-de acabar aquelas obras por mais que façam!» Dito isto foi a morrer sem proferir mais uma palavra. Desde então nunca mais foi possível acabar as ditas obras. Sempre um incidente imprevisto as tem vindo suspender. A igreja não se fez, e hoje as obras de Santa Engrácia, ainda por acabar, são um depósito de material de guerra [ou eram, no século XVIII]. Cumpriu-se a maldição do inocente!
Mas... falta ainda aqui uma pequena curiosidade sobre estas "Obras de Santa Engrácia" - uns anos mais tarde foi apanhado um homem por roubo, e se o tempo já parece ter esquecido o seu nome, crê-se que terá sido ele o verdadeiro ladrão das tais hóstias, isentando postumamente este Simão Pires Solis, cristão-novo, das culpas que outrora lhe tinham sido imputadas!