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Mitologia em Português

11 de Dezembro, 2020

O mito de Ak Molot e Bulat

O mito de Ak Molot e Bulat vem-nos das terras dos Tártaros e tem um elemento muito curioso, que também ocorre igualmente em outros mitos da mesma cultura, em que a destruição directa da alma de um opositor leva à sua morte indirecta. Por isso, e até porque toda a história não é muito famosa nos nossos dias, podemos recordá-la aqui.

Os pássaros da alma

Conta-se que Ak Molot e Bulat estiveram envolvidos num longo combate, mas que como ambos eram essencialmente indestrutíveis o seu confronto estava como que destinado a nunca terminar. E, na verdade, uma e outra vez Ak Molot desferiu golpes completamente mortais ao seu opositor, apenas para o ver levantar-se e continuar a combater. Passar-se dias, semanas, meses, anos, mas todo o combate nunca deu quaisquer sinais de acabar.

Depois, um dia, Ak Molot - ou um dos seus amigos, segundo outra fonte - apercebeu-se de algo de estranho, que um caixão de ouro estava por perto, ligado ao céu por um ténue fio. Quando quebrou esse elo de ligação com uma flecha, o caixão caiu ao chão e no seu interior foram encontrados dez pássaros brancos. À medida que o herói matou cada um deles Bulat pareceu enfraquecer, até que finalmente morreu.

 

A uma primeira vista, a morte de Bulat parece ser misteriosa, mas há que esclarecer que um dos pássaros era, metaforicamente, o da sua alma (a identidade dos restantes não é explicada na história original, caso alguém tenha essa curiosidade). A ideia não é completamente nova - já no tempo dos Poemas Homéricos a psukhé, ou alma, era frequentemente representada como uma espécie de pássaro ou figura alada, como pode ser visto na imagem acima - mas é curioso constatar que se foi mantendo ao longo dos séculos, ao ponto de, muito mais tarde, ser estabelecida esta ligação ainda mais directa entre a alma, sob a forma de um pássaro, e a própria vida da pessoa a quem esta estava associada. Quando Ak Molt destruiu a alma/pássaro do seu opositor indestrutível, destruiu-o também a ele, e por muito estranha que a ideia, hoje, nos possa parecer, de um ponto de vista do contexto literário e cultural original ela também faz todo o sentido.

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10 de Dezembro, 2020

A lenda de Kuchisake-onna

A lenda de Kuchisake-onna é japonesa, mas talvez seja tão actual hoje como no dia em que primeiro foi contada entre os nativos desse país. É um pouco difícil saber quando nasceu verdadeiramente, mas tem um aspecto cultural muitíssimo interessante, que até motiva esta publicação de hoje. Mas já lá iremos!

A lenda de Kuchisake-onna

Imagine-se que, nos dias de hoje, vamos pela rua fora e encontramos uma mulher como a da fotografia acima. Isso parece-nos completamente normal, face à situação actual do Covid-19, mas ao mesmo tempo é uma espécie de tradição cultural japonesa, que as pessoas que estão constipadas utilizem esse tipo de máscara para protegerem os outros (infelizmente, é uma moda que nunca pegou em Portugal - talvez venha a ser instituída no futuro?). E, nesse sentido, Kuchisake-onna é quase só uma mulher que usa máscara na rua... e raramente a tira em público, dando um excelente exemplo a seguir nestes tempos de Covid-19.

 

Porém, Kuchisake-onna também esconde um terrível segredo. Conhecem-na, vão falando com ela, e um dia ela pergunta-vos, sem nunca tirar a máscara, "Achas-me bonita?"

Se a resposta for negativa, ela rapidamente vos ataca de uma forma brutal, potencialmente até causando a vossa morte.

Mas, se a resposta for positiva, ela remove a máscara, mostrando uma boca largamente desfigurada (como a do Joker/Coringa, para quem conhecer as histórias do Batman), e repete a pergunta. E depois, seja qual for a resposta, sofrem sempre um ataque, de uma forma mais ou menos chocante. A única solução, segundo lemos, é fugir - fugir, sem jamais lhe responder a alguma dessas duas perguntas!

 

A lenda de Kuchisake-onna é, talvez mais que tudo, uma que expressa um grande medo inter-cultural do desconhecido. Aquele mesmo medo que, face a um caminho obscuro numa noite sombria, nos faz voltar para trás... o medo de não sabermos o que esconde, o que pode vir a esconder, algo que não conseguimos ver com os nossos próprios olhos. E se o uso de máscaras deste tipo no Japão já tem mais de um século, é relativamente novo na cultura ocidental, sendo provável que pequenas histórias semelhantes à apresentada aqui hoje comecem, agora, a surgir entre os mitos urbanos ocidentais. Só o tempo o dirá.

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08 de Dezembro, 2020

As fábulas de Mkhitar Gosh e Vardan de Aygek

Dadas as semelhanças dos temas, hoje apresentamos aqui as fábulas de Mkhitar Gosh e Vardan de Aygek. Foram ambos autores da Arménia que viveram nos séculos XII e XIII da nossa era, e entre os seus trabalhos contam-se dois livros com estas pequenas histórias. Agora, se este género literário é relativamente simples, a forma como estes dois autores reaproveitaram as regras que tinham de seguir é digna de nota.

O cordeiro e o lobo

As fábulas de Vardan de Aygek, também conhecidas como O Livro da Raposa (pelo facto de muitas das suas histórias terem como personagem esse animal), tratam-se, na sua grande maioria, de histórias de animais, algumas mais famosas que outras - se terão sido interpolações na colecção original, tramas perdidas do tempo da Antiguidade, ou algo completamente diferente, já não sabemos... mas pelo menos algumas delas são bem conhecidas de quem já tenha lido este género literário. Porém, entre as já-famosas histórias de animais, contam-se também algumas indubitavelmente novas, e até um conjunto em que os seres humanos têm o papel principal. Entre este último grupo conta-se, por exemplo, a fábula da mulher orgulhosa, que podemos parafrasear aqui:

Um filho chega a casa e vê a sua mãe - grande, gorda, e de pele muito branca - a rezar, totalmente nua, enquanto chora copiosamente. Achando que esta teria ficado louca, pergunta-lhe o que está a fazer. "Ouvi dizer que os Serafins e os Querubins se apresentam assim [i.e. nus], e rezam assim, perante a Divindade; queria imitá-los, enquanto dirijo a minha prece à Divindade." Face a essa resposta, o filho, incrédulo, não pôde deixar de perguntar "E então, o teu corpo é mais parecido com o dos Serafins, ou dos Querubins?"

 

Esta pequena trama da autoria de Vardan de Aygek, que quase se assemelha a uma piada, é seguida por uma moral - "quando alguém se enche de orgulho, gaba-se e tenta sempre elevar-se acima do que lhe é próprio." Presume-se, nesse sentido, que o autor pretendesse criticar quem toma essa postura na sua vida, mas é curioso que cada uma das historietas presentes nesta compilação - e contrariamente ao que acontecia na Antiguidade e nas criações atribuídas a Esopo - tenha agora uma moral totalmente explícita, talvez para evitar o problema, muito significativo neste género, de se ter de discutir qual é a verdadeira moral por detrás da "lebre e a tartaruga".

 

Também as fábulas de Mkhitar Gosh apresentam morais explícitas, mas na sua compilação parecem ser as lições, mais do que as próprias histórias, o que mais importa. Nesse sentido, parafraseamos então um exemplo emblemático:

Um elefante quis que a sua cria aprendesse Filosofia, e entregou-a a Platão para tal. Mas, depois, o jovem elefante não conseguia entrar na sala de lições, nem ler um livro, nem tocar com a sua cabeça no chão. Então, Platão levou-o de volta ao seu pai, dizendo-lhe que este não tinha qualquer vocação para aquilo a que se tinham proposto.

[E a lição é:] Cada pessoa deve escolher fazer algo apropriado para si mesma.

 

Estamos, naturalmente, a parafrasear o conteúdo original, mas as muitas histórias de árvores, vegetais, animais e até seres humanos, presentes nesta compilação de Mkhitar Gosh são, de um modo geral (e talvez salvo uma única excepção), tão simples quanto isto. Podem quase sempre ser lidas em menos de um minuto. Presume-se, portanto, que a intenção seja a reflexão por parte do leitor, mais do que uma possível diversão na leitura de uma história ficcional.

 

Para terminar, o que dizer sobre estas fábulas de Mkhitar Gosh e Vardan de Aygek? Cada uma destas duas compilações tem os seus pontos fortes e fracos, mas quem os quiser averiguar na primeira pessoa depressa se deparará com um problema - ambas as obras são bastante difíceis de encontrar. As fábulas do primeiro autor estão traduzidas para Inglês, as do segundo apenas existem numa tradução francesa parcial (e em Inglês, mas numa obra que ainda não foi publicada), mas presume-se que não se possa entrar numa qualquer livraria, mesmo online, e adquirir alguma delas sem dificuldade. O que é pena, porque as lições que os textos desta natureza têm para nos transmitir raramente passam de moda, e são tão importantes hoje como no dia em que foram escritos...

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07 de Dezembro, 2020

"Pés de barro", significado e origem

A expressão pés de barros é hoje usada na nossa cultura quase sempre em referência a alguém ou alguma coisa, e.g. "aquele deputado tem pés de barro". No entanto, qual é o significado e a origem de toda a expressão?

Essencialmente, esta metáfora vem do Antigo Testamento, de um sonho do rei Nabucodonosor II, a que se segue uma interpretação feita pelo profeta Daniel:

Pés de Barro, o significado e o ídolo

Tu, ó rei, estavas vendo, e eis aqui uma grande estátua; essa estátua, que era grande, e cujo esplendor era excelente, estava em pé diante de ti; e a sua vista era terrível. A cabeça daquela estátua era de ouro fino; o seu peito e os seus braços, de prata; o seu ventre e as suas coxas, de cobre; as pernas, de ferro; os seus pés, em parte de ferro e em parte de barro. Estavas vendo isso, quando uma pedra foi cortada, sem mão, a qual feriu a estátua nos pés de ferro e de barro e os esmiuçou. Então, foi juntamente esmiuçado o ferro, o barro, o cobre, a prata e o ouro, os quais se fizeram como a pragana das eiras no estio, e o vento os levou, e não se achou lugar algum para eles; mas a pedra que feriu a estátua se fez um grande monte e encheu toda a terra.

Daniel 2:31-35

 

Se o verdadeiro significado por detrás de todo este sonho de Nabucodonosor II é complexo, daria pano para muitas mangas e até nos poderia levar àquele famoso mito nacional do Quinto Império, o mais importante, aqui e no tema de hoje, é o facto de a estátua que o monarca viu nos seus sonhos ser feita de vários materiais completamente distintos, com os pés, os pontos de apoio de toda a grande estrutura, a serem feitos do material mais frágil, o barro.

No seguimento de toda essa história bíblica, ter pés de barro significa, essencialmente, possuir uma fraqueza pouco visível num grande conjunto que, a uma primeira vista, poderá até parecer muito impressionante e invencível. Ou seja, voltando-se ao exemplo que já demos acima, dizendo-se algo como "aquele deputado tem pés de barro", estará a querer dizer-se que essa pessoa até parece muito bom, incorruptível, que todos gostam muito dele, mas que ao mesmo tempo ele anda também - por exemplo - a fazer negócios sujos com um determinado clube de futebol nacional.

É, portanto, simples, este significado e origem!

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05 de Dezembro, 2020

"Sobre o Cosmos", de Pseudo-Aristóteles e Apuleio

O texto Sobre o Cosmos merece ser referido aqui em virtude de alguém - que se identificou, falsamente, como Aristóteles - ter escrito sobre esse tema em Grego Antigo, e depois esse seu texto ter sido traduzido para Latim por Apuleio, o famoso autor do Burro de Ouro. As duas obras, nos seus originais respectivamente Περὶ Kόσμου e De Mundo, são muito semelhantes, com a excepção de algumas breves adaptações que parecem ter sido feitas para os leitores latinos.

Mas de que falam elas? Essencialmente, apresentam-nos a visão que os Gregos da Antiguidade tinham do seu mundo, em particular como imaginavam que as coisas funcionavam - o tratado começa com algumas considerações sobre o mundo, depois continua com elementos relativos à Física, e termina com referências a uma derradeira figura divina.

 

Mas, para quem estiver mais curioso face à relação real entre as duas obras, e como se ligam textualmente, há pouco tempo foi feita uma tradução paralela de ambas, que pode ser vista no site oficial e numa página da Academia.edu.

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04 de Dezembro, 2020

A lenda de Vamana

A lenda de Vamana, provinda da Índia, conta-nos a história de um dos avatares de Vishnu (o conceito já foi explicado brevemente aqui). Não é tão conhecido como Rama ou Krishna, mas nem por isso deve ser considerado como menos importante, até porque, como essas outras duas figuras, teve um propósito muito específico neste mundo:

Um momento crucial da lenda de Vamana

Conta-se que Vamana era um pequeno anão. Enviado ao mundo para punir o rei Bali pelas suas muitas maldades, aproximou-se deste quando ele estava a fazer um sacrifício aos deuses e pediu-lhe um favor mínimo - apenas queria três curtos passos de terreno, para aí construir uma casa e cultivar alguns vegetais. O rei, face a um pedido tão estranho quanto pequenino (certamente que terá pensado algo como "Só queres três passos de terreno? Passos de um anão? Hahahaha"), mesmo contra os conselhos repetidos que lhe foram dados pela sua corte decidiu concedê-lo. Contudo, nesse preciso instante Vishnu abandonou a forma de Vamana e tomou um corpo gigantesco - com um primeiro passo cobriu toda a terra, com um segundo ocupou todo o céu, e... já não tendo onde colocar um terceiro, pisou depois a cabeça do próprio Bali com tanta força que acabou por enviar este monarca directamente para o submundo.

 

Se existem outras lendas de Vamana, ou histórias associadas a este avatar, o cerne da sua lenda é este, que começa com a reencarnação de Vishnu e termina, essencialmente, com o instante em que Bali é punido pelos seus crimes e por aquilo a que até poderíamos chamar a sua hybris. É uma trama relativamente simples, pelo que as lições que nos transmite são fáceis de discernir - a prudência necessária em todas as nossas acções será certamente a mais óbvia.

E, quanto aos restantes avatares deste mesmo deus hindu (os outros deuses também os têm, clarifique-se esse ponto), poderemos cá contar as suas histórias no futuro, caso haja interesse suficiente para tal. Será que alguém também as quer conhecer?

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03 de Dezembro, 2020

O que significa Gambito de Dama?

Na verdade, qual o significado de Gambito de Dama ou Gambito da Rainha? Face à popularidade de uma série de televisão recente, surgiu aqui repetidamente esta questão, em particular em referência ao significado de toda a expressão. E podemos esclarecê-la, claro!

 

Se já cá falámos anteriormente de um grande segredo do jogo do Xadrez, nomeadamente em relação à forma como as peças se movem, também existem um conjunto de informações que mesmo aqueles que já saibam os movimentos básicos deste jogo poucas vezes conhecem. Entre eles conta-se o facto de muitas das jogadas e técnicas do Xadrez terem nomes específicos. O mais famoso é provavelmente o Roque, que permite à peça do Rei andar duas casas de uma só vez (em condições muito específicas), mas até existem muitas outras. Nesse sentido, um Gambito é uma jogada em que se sacrifica deliberadamente uma peça para se ganhar uma vantagem face ao adversário. E é no mesmo seguimento que surge então o Gambito de Dama, uma forma muito específica da jogada referida acima.

 

E afinal, em que consiste essa jogada do Gambito de Dama, que é chamada em Inglês Queen's Gambit, como o título original da nova série? Essencialmente, é uma jogada de abertura em que ambos os adversários movem o Peão em frente às respectivas Rainhas duas casas para a frente, e em seguida o jogador das peças brancas move o Peão em frente ao Bispo esquerdo duas casas também para a frente, permitindo ao adversário tomá-lo na jogada seguinte, se assim o desejar, numa situação semelhante à apresentada nesta imagem:

Gambito de Dama, significado

Ou seja, em suma, se um Gambito é o nome técnico dado ao sacrifício de uma peça para que se possa ganhar uma vantagem específica, o Gambito de Dama implica sacrificar, de uma forma planeada e logo no início do jogo, o Peão em frente a esta para conquistar, muito rapidamente, o controlo do centro do terreno de jogo, algo que os jogadores de Xadrez mais experientes saberão usar em seu favor. E, se depois disto alguém até quiser aprender mais sobre o passado e história deste famoso jogo de tabuleiro, poderá igualmente ler um livro gratuito de que já cá falámos antes.

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03 de Dezembro, 2020

"Ugetsu Monogatari", de Ueda Akinari

Ugetsu Monogatari, de Ueda Akinari, foi uma obra escrita no século XVIII no Japão. O que ela tem aqui digna de nota é que se trata de uma compilação de histórias com elementos fantásticos. Raramente são assustadoras, no sentido que hoje damos a essa palavra na cultura ocidental, mas são relativamente curtas e têm o seu charme, já que nunca se sabe o que vai acontecer a seguir.

Ugetsu Monogatari

Podemos dar dois pequenos exemplos de histórias deste Ugetsu Monogatari. Numa delas, um homem faz uma promessa a outro, a uma pessoa que o ajudou bastante quando ele mais necessitava. Depois, completamente incapaz de a cumprir num sentido físico, deixou-se morrer e conduziu o seu espírito ao antigo ajudante, mostrando-nos que nem a própria morte tem o poder de parar aqueles que são honestos nas promessas que fazem aos outros.

Numa outra, de título Himpuku-ron, é apresentado um homem que parecia ter uma enorme paixão pelo ouro. Assim, numa dada noite o deus do ouro apareceu-lhe e, juntos, tiveram um debate sobre a verdadeira essência da riqueza e da pobreza. O que não soa muito aventuroso, mas capta bem o que já referimos antes, o carácter muito único de toda a compilação, em que nem sempre as personagens do costume saem vitoriosas.

 

Será que vale a pena, este Ugetsu Monogatari, de Ueda Akinari? É, sem qualquer dúvida, uma obra interessante para quem gosta de histórias curtas, até porque já existe em tradução inglesa, e permite ao leitor conhecer um conjunto de estratégias de composição de histórias muito infrequentes na cultura ocidental, em que se espera demasiadas vezes um andamento e desfecho previsíveis.

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01 de Dezembro, 2020

"Obras de Santa Engrácia", origem e significado

Falando das famosas Obras de Santa Engrácia, há alguns dias podia ser visto um pequeno anúncio nesta página, criado por uma companhia de seguros, que dizia que "encontrar um seguro para a casa não tem de ser uma..." Infelizmente não fomos pagos para lhes fazer esta publicidade adicional, nem sabemos de que companhia se tratava, mas o seu uso da expressão não poderia senão inspirar-nos a escrever estas linhas. Portanto explique-se, em que consistiram essas famosas obras? Qual a origem e significado dessa conhecida expressão? Tratando-se de uma das mais famosas expressões e lendas portuguesas, achámos que poderíamos contar a sua origem e significado, bem como a sua história essencial:

Obras de Santa Engrácia

Entre as muitas freguesias da cidade de Lisboa contava-se, anteriormente, uma chamada "Santa Engrácia". Tinha esse nome porque aí estava localizada uma pequena igreja à mártir do mesmo nome, onde supostamente estavam alojadas as suas relíquias. Depois, ao longo dos anos esse espaço religioso foi caindo no esquecimento, até que em 1681 já estava muito degradado. Por isso, no ano seguinte decidiu-se construir uma nova igreja para a santa, e a sua primeira pedra foi lançada logo em 1682. Porém, naquele que será talvez o mais clássico de todos os exemplos do "adiar, adiar, adiar" sempre tão presente no povo português, a sua construção só foi terminada em 1966, ou seja, quase 300 anos depois!

Porque demorou tanto tempo? Como é comum no povo português, existiram desculpas de todo o tamanho e feitio. Desde maldições lendárias* até ao terramoto de 1755, passando por mudanças políticas, foram surgindo sucessivamente um conjunto de razões que pura e simplesmente levaram ao adiamento da sua conclusão. E então, tudo foi sendo adiado, adiado e adiado, uma e outra vez...

 

Hoje, a Igreja de Santa Engrácia já pode ser visitada em Lisboa, mas é mais conhecida sob outro nome, o de Panteão Nacional. Não é, na nossa opinião (fomos visitá-la há já uns anos), um local muito interessante para visita - o Mosteiro de São Vicente de Fora, localizado relativamente perto, é muito melhor, apesar de ser, hoje, muito menos conhecido. Mas estamos a escapar um pouco ao tema - quem nunca tiver visto esta igreja pode agora visitá-la, de uma forma completamente virtual, abaixo (o 4º piso, por exemplo, permite uma bela panorâmica sobre parte da cidade):

Mas volte-se é ao tema principal de hoje. A expressão "Obras de Santa Engrácia" teve a sua origem, naturalmente, no tempo quase infindável que levou à sua conclusão. E o seu significado parte da mesma razão, sendo a expressão normalmente utilizada quando nos queremos referir a algo que ou é muito difícil de terminar, ou demora muito tempo (como no anúncio que referimos acima). Esperemos, no entanto, que já ninguém a utilize com o significado de se demorar os literais 300 anos a concluir algo...

 

 

*- Para quem tiver essa curiosidade, podemos também contar aqui essa pequena lenda, outrora famosa, através da inesperada voz da mãe do mitologista Consiglieri Pedroso:

No século passado [i.e. XVII] existia uma freira - de nome Violante - no convento que ficava junto ao edifício então em construção para a igreja matriz de Santa Engrácia. Namorou-se essa freira de um rapaz - de nome Simão Pires Solis - e conseguiu que ele lhe fosse falar ao convento, deitando para isso todas as noites uma corda de seda pelo muro da cerca, por onde ele às escondidas subia. Vinha o mancebo a cavalo e para não ser pressentido envolvia as patas do animal em algodão em rama. Aconteceu que por essa ocasião houve na igreja do convento um desacato. Foi roubado o sacrário com as sagradas partículas, e ao outro dia um carro ia a passar pelo Campo de Santa Clara, os bois recusaram-se a andar num certo sítio, chegando mesmo a ajoelhar. Descoberta a causa disto viu-se que eram as hóstias, que os ladrões tinham roubado, que estavam ali enterradas. Foram novamente recolhidas à igreja, e houve uma procissão de desagravo, (nome que depois ficou ao convento) e outras cerimónias expiatórias. Os vizinhos, porém, que tinham descoberto os amores do mancebo com a freira, foram denunciá-lo ao Santo Ofício, e uma noite, quando vinha segundo o seu costume a descer pelo muro da cerca, foi preso e conduzido ao cárcere, tendo-se-lhe encontrado as patas do cavalo forradas de algodão. A freira apenas soube da prisão do seu namorado, e aflita com medo de alguma indiscrição que causaria a sua perda, mandou-lhe dois melões, um inteiro e outro «calado» (com uma pequena abertura que se costuma fazer para a prova) dizendo-lhe ao mesmo tempo que "o calado era o melhor". O mancebo compreendeu a advertência e guardou um silêncio absoluto a todos os interrogatórios. Foi por isso condenado a morrer pelo crime do desacato e profanação da igreja. No momento porém de ir para o suplício, voltando-se para a igreja então em construção, disse: «Morro inocente! E é tão certa a minha inocência como é certo que nunca se hão-de acabar aquelas obras por mais que façam!» Dito isto foi a morrer sem proferir mais uma palavra. Desde então nunca mais foi possível acabar as ditas obras. Sempre um incidente imprevisto as tem vindo suspender. A igreja não se fez, e hoje as obras de Santa Engrácia, ainda por acabar, são um depósito de material de guerra [ou eram, no século XVIII]. Cumpriu-se a maldição do inocente!

Mas... falta ainda aqui uma pequena curiosidade sobre estas "Obras de Santa Engrácia" - uns anos mais tarde foi apanhado um homem por roubo, e se o tempo já parece ter esquecido o seu nome, crê-se que terá sido ele o verdadeiro ladrão das tais hóstias, isentando postumamente este Simão Pires Solis, cristão-novo, das culpas que outrora lhe tinham sido imputadas!

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