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Mitologia em Português

31 de Janeiro, 2021

"Lisboa destruída", um poema do terramoto de 1755

Entre os episódios mais tristes da história de Portugal conta-se, sem qualquer dúvida, o de Lisboa destruída no terramoto de 1755. O evento marcou a história portuguesa e até a de toda a Europa, com Voltaire a ter escrito um poema sobre a ocorrência e a dar-lhe algum foco (até um pouco jocoso, pensamos nós) no seu Cândido; também suscitou diversos debates filosóficos, nomeadamente em relação ao facto do terramoto ter tomado lugar no dia 1 de Novembro - i.e. Dia de Todos os Santos, domingo, quando muita gente até estava na missa - e as zonas da cidade mais associadas à prostituição terem sido poupadas; e até nos fez perder o túmulo original de Camões. Mas... na verdade, como foi o terramoto de 1755?

Lisboa destruída em 1755

Sabemos, naturalmente, que Voltaire não testemunhou a ocorrência na primeira pessoa. Mas então, quem o fez? Podem ser encontrados, aqui e ali, alguns testemunhos bem reais de toda a ocorrência, mas um dos mais interessantes que já encontrámos foi a obra Lisboa Destruída, um poema em seis cantos da autoria do Padre Teodoro de Almeida. Nos seus versos podem ser encontradas referências bem reais ao que aconteceu na cidade de Lisboa nessa altura. Podemos até dar aqui um pequeno exemplo. Face à enorme destruição da cidade, que a tornou quase irreconhecível, uma das personagens interroga-se então o seguinte:

Perco o tino. Onde estou? Que campo é este?
Tão deserto, e no meio da cidade!
Diz, amigo, pois tu bem conheceste
A Lisboa antes desta novidade.
Mas já sei onde estou. Ainda não leste
Mais funesta mudança na verdade,
Não é campo. São ruas muito estreitas
Mas de todo arrasadas e desfeitas.

Mas como sabemos se os eventos apresentados em Lisboa Destruída foram reais? Se as coisas realmente tomaram lugar como este Padre Teodoro de Almeida as pintou na sua obra? Talvez porque, em determinados momentos da sua obra, o poeta até dá mais informação, que nos parece  muito realista, sobre os eventos que cantava. Por exemplo, mais à frente no poema ele informa-nos da seguinte curiosidade, através de uma anotação aos seus versos, enquanto relata um evento muito semelhante na composição poética:

No dia 10 de Novembro, na Rua Nova da Palma, ouviu o Monsenhor Sampaio os gemidos de Maria Rosa (que assim se chamava esta donzela), e cavando achou-a abraçada a uma imagem de Santo António. Caíra ela de forma que não largou a devota imagem, que ternamente abraçava, e reparou que estendendo a mão debaixo das ruínas podia chegar a umas penduras [i.e. cachos] de uvas, de que se foi valendo naqueles dez dias, com a economia que a prudência ditava, não sabendo se seria - ou quando seria - desenterrada.

 

Será isto verdade? Será este um dos muitos eventos que tomaram lugar em Lisboa após o sismo de 1755, como tantos outros apresentados brevemente nesta mesma obra? Não temos razões reais para duvidar da informação, seja de este ou de outros episódios mencionados na obra, cujos nomes e circunstâncias dos envolvidos o autor nos faculta. Mesmo que não os tenha testemunhado totalmente ou a todos na primeira pessoa, pelo menos parece ter tido informação digna de crédito em sua posse, até porque são raríssimos os poemas que afirmam as suas fontes (reais) de uma forma tão directa e palpável.

 

Mas o que dizer deste poema Lisboa Destruída, em termos literários? Se a sua trama condutora é muito básica (e pouco interessante), há que afirmar que ela só parece servir de ligeiro pano de fundo para a apresentação consecutiva dos mais diversos episódios que foram tomando lugar aquando do desastre de 1 de Novembro de 1755 e dos dias que se seguiram. Não é, de todo, um poema belo, mas é um que oscila repetidamente entre dois grandes polos, o da destruição da cidade de Lisboa e o da esperança humana presente em todos os infortúnios. Quando se lêem momentos em que várias pessoas, aparentemente desconhecidas umas das outras, partilham pão e os breves restos de um pouco de compota que encontraram, como não relembrar essa grande capacidade humana para, em conjunto, lutar contra as muitas adversidades da vida, seja num terramoto de outros tempos ou numa pandemia dos nossos dias?

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30 de Janeiro, 2021

"The Neverending Story", de Michael Ende

The Neverending Story, de Michael Ende, é provavelmente conhecida em Portugal e no Brasil por uma série de três filmes que saíram nos cinemas há já alguns anos. Conhecidos entre nós como A História Interminável ou A História sem Fim, tratam da aventura fantástica de um rapaz, Bastian Balthazar Bux, que se vê envolvido numa história que o prende entre a realidade deste mundo e a fantasia de um outro. Não iremos falar muito da história dos próprios filmes - recordamos apenas o trailer do primeiro abaixo - mas a grande questão é, como se comparam eles com o livro?

Essencialmente, o primeiro filme de The Neverending Story baseia-se na primeira metade do livro, terminando mais ou menos com o momento em que Bastian conhece a Imperatriz Menina. A trama de ambos é significativamente a mesma, salvo um excepção crucial - no livro, a segunda das personagens encontra o escritor da obra, numa sequência muito interessante em que é explicado o porquê da obra, e o filme, terem o título que têm. É provável que a sequência tenha sido cortada por motivos de tempo, mas ao mesmo tempo daria um elemento muito único ao filme.

The Neverending Story 2

O segundo filme de The Neverending Story baseia-se - mas apenas muito vagamente - na segunda parte da obra, em que Bastian ganha o poder de pedir os desejos que quiser. Se no filme, por influência de uma vilã, esse poder o vai fazendo esquecer a realidade, já no livro esse esquecimento progressivo é apenas um efeito secundário da utilização do AURYN, o pendente que o herói possui. E se, nesse sentido, a trama adaptada para o filme é previsível e tem muito pouco de inovadora, já no livro são suscitadas repetidamente um conjunto de questões filosóficas que advêm de Bastian tentar fazer o bem com os seus desejos, mas de uma forma que nem sempre resulta da melhor maneira, como quando ele dá a um herói caído em desgraça um poderoso e novo opositor com que pelejar.

 

No geral, parece-nos que o livro The Neverending Story é superior aos dois filmes (recorde-se, o terceiro já apresenta uma trama tão original quanto desapontante), mas podemos deixar uma sugestão aos leitores, que passa por lerem o livro antes de reverem os dois filmes (que provavelmente até já conhecerão da sua infância?), de forma a poderem apreciar como a história foi adaptada. Foi o que fizémos para a escrita destas linhas.

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29 de Janeiro, 2021

A lenda da costureira (ou costureirinha)

A lenda da costureira, costureirinha ou Maria Costureira, é uma pequena história comum em muitos locais de Portugal, mas que tem sempre alguns vectores comuns. Na verdade, ainda hoje são muitos os que atestam que ela não é sequer uma lenda, mas sim uma história bem real, que tomou lugar com eles ou com alguém que conheciam pessoalmente - ainda há meses uma idosa de 85 anos contava que tendo vivido em Manique (no concelho de Cascais), numa pequena e velha casa que hoje até já foi demolida, costumava ouvir uma costureira a praticar a sua arte (por vezes ela até deixava cair a tesoura!), noite após noite, no andar de cima - o que se torna particularmente intrigante se tivermos em conta que a casa só tinha um único piso.

A lenda da costureira

Mas abrandemos um pouco. O que diz esta lenda da costureira, costureirinha ou Maria Costureira? Essencialmente, é uma história em que uma costureira falece deixando uma promessa por pagar. Em algumas versões ela prometeu um novo manto para uma imagem de Nossa Senhora na igreja local (como no caso que nos foi contado pessoalmente), noutras propôs-se a doar a sua máquina de costura se fosse curada de uma doença (e curou-se, mas depois não cumpriu a promessa), e há até quem a associe a um vestido de noiva, feito à mão pela própria, que acabou por nunca ser utilizado.

Em qualquer dos casos, esta lenda da costureira, costureirinha ou Maria Costureira tende a terminar quase sempre da mesma forma - como na versão que ouvimos, alguém decidiu que já era altura de resolver toda a situação e pagou a promessa em falta a esta alma penada. Assim, ela partiu finalmente para o além, podendo receber o seu merecido descanso eterno... e também, como nos foi dito pessoalmente, deixando finalmente descansar quem vivia nessa casa!

 

Será verdade? Será que quem nos contou esta história estava a recordar um evento real que tomou mesmo lugar na casa em que um dia viveu? É-nos difícil ter a certeza, mas dada a prevalência de toda esta lenda em território nacional, é mais provável que tenha ouvido este relato em tempos de meninice, tenha - por mera sugestão psicológica - começado a interpretar os barulhos que ouvia como se tratando dos da história, acabando por confundir o que se estava a passar com as próprias circunstâncias de que tinha ouvido falar. "Mais provável", sim, mas não totalmente certo...

 

[Adicionado posteriormente:]

Aparentemente, lendas como esta são até conhecidas por todo o mundo. Na imagem abaixo pode ser vista uma gravura da obra People from the Other World, de Henry S. Olcott e datada de 1875, em que é reportado que um grupo de crianças nos EUA não só a ouviu, como também a viu surgir fisicamente no quarto em que dormiam com os seus próprios olhos. Visto que a obra de Olcott é sobre o Espiritismo, e que momentos como estes são usados para provar a possibilidade "real" de aparições físicas dos espíritos dos falecidos, é certamente possível que toda a história tenha originado com o nascimento do Espiritismo, mas que depois o seu contexto original se tenha perdido ao longo dos anos.

Lenda da Costureira, parte 2

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28 de Janeiro, 2021

O mito de Caronte

O mito de Caronte é o de uma figura muito singular da Mitologia Grega. Filho de Nyx, a Noite personificada, este Caronte era uma espécie de barqueiro infernal, e o grande deus responsável por transportar quem falecia para o estranho mundo do pós-vida, localizado além do rio Estige. Nesse sentido, as pessoas falecidas até eram tipicamente sepultadas ou queimadas com um óbulo na boca, para que no mundo dos mortos tivessem essa importância monetária necessária para pagar o transporte.

O mito de Caronte

"Para que queria Caronte esse dinheiro?", podiam perguntar alguns leitores. Na verdade, até é uma questão relativamente frequente. Não há um registo real do que ele fazia com os óbulos que os falecidos lhe iam entregando, até porque enquanto figura divina nada lhe faltaria em termos de posses materiais, mas é provável que se tratasse de um costume meramente simbólico - tal como os barqueiros no mundo dos vivos pediam uma moeda, ou uma espécie de gorjeta, pelos seus serviços, supunha-se que também este derradeiro navegador o fizesse.

 

Feita esta breve introdução à figura de Caronte, pergunte-se - são muito os mitos em que ele entra, enquanto figura mitológica? Existem, aqui e ali, algumas referências mais directas a esta figura. No mito de Sísifo, por exemplo, esse anti-herói volta para trás, e regressa até à vida, após não ter o óbulo necessário para pagar esta espécie de portagem. Hércules ameaçou-o com os seus punhos, quando ia a caminho para capturar o monstruoso Cérbero. Cruz-se com Psique. Surge como personagem em diversas das obras de Luciano da Samósata. E outras coisas que tais, mas normalmente limita-se a fazer o seu trabalho, sem ter uma grande influência real na trama de algum mito em específico. Por exemplo, desconhece-se que alguma vez tenha tido filhos, ou que se tenha apaixonado por uma das muitas mulheres cujos espectros foram levados no seu barco...

 

Ainda assim, se Caronte nunca teve um papel principal nos muitos mitos que nos chegaram, a sua tarefa única parece ter ficado fixada na cultura popular. Dante - a personagem, não o próprio poeta - cruza-se com ele nos inícios da Divina Comédia, e obras muito mais recentes, como A House-Boat on the Styx (de John Kendrick Bangs, autor americano de finais do século XIX), também o reutilizam como personagem. Aparece em vários filmes, quase sempre no seu famoso papel. Se não foi, em outros tempos, uma figura principal na Mitologia Grega ou nas muitas histórias dos Romanos, há que frisar que também não está de todo esquecida nos dias de hoje...

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27 de Janeiro, 2021

Cães e gatos, inimigos também na China

Quem tiver tanto cães como gatos em casa já se terá certamente apercebido de que, salvo raras excepções, eles raramente se dão bem. E isto, de um ponto de vista dos mitos e lendas, poderá suscitar uma questão - porque é que cães e gatos são inimigos? Existem as mais diversas respostas, em culturas por todo o mundo (até já cá falámos do tema anteriormente!), que normalmente passam pela existência de um qualquer evento que suscitou o primeiro grande conflito entre estes dois animais. E, nesse sentido, a resposta que aqui apresentamos hoje vem-nos da China.

Cães e gatos

É-nos então contado que um dia um homem vendeu por acidente um anel mágico, que lhe garantia todas as maiores riquezas do mundo. Sem ele, este homem e toda a sua família foram empobrecendo rapidamente. Os animais da família - um cão e um gato - aperceberam-se disto, pelo que decidiram recuperar o anel mágico. Assim, sabendo que o anel estava agora numa determinada casa, fechado dentro de um pequeno cofre de madeira, os dois animais decidiram colaborar. Com a ajuda de um rato, o único que seria capaz de roer o cofre e obter o anel, partiram em viagem. Passaram por muitas aventuras, mas conseguiram ultrapassar todas as dificuldades através de entreajuda mútua - e sim, conseguiram recuperar o anel!

Depois, no caminho de volta, e com a ânsia de regressar a casa o mais depressa possível, estes animais decidiram correr tão depressa quanto lhes era possível. Mas, enquanto que o cão precisava de contornar os obstáculos, o gato simplesmente saltava por cima deles, e assim, com o anel na sua boca, foi o primeiro a chegar a casa e recebeu todo o carinho dos donos, que até lhe deram as comidas mais frescas. Já o cão, que só chegou muito mais tarde, foi considerado como um inútil, insultado pelos donos e condenado eternamente a comer só os restos. E assim nasceu este eterno conflito e a ideia de que cães e gatos são inimigos!

 

De um ponto de vista mais real, a pergunta Porque é que cães e gatos são inimigos? não tem uma resposta concreta ou absolutamente verdadeira. Isto até porque eles nem sempre desgostam um do outro... mas tratando-se de animais domésticos, é por isso provável que estivessem mais debaixo do olho dos seus donos, gerando histórias como estas e muitas outras, que explicam o porquê de estes animais nem sempre se darem bem, sendo ambas as espécies pensadas de uma forma quase humana, como se também sentissem conflitos como os seres humanos o sentiriam em condições semelhantes. E assim, na China, como em muitos outros locais, foram criadas histórias como estas para explicar essa (má) relação entre os dois animais...

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26 de Janeiro, 2021

"Gaticanea", a guerra de cães e gatos em Mafra

Existem alguns livros que, apesar do seu grande mérito, estão hoje muito esquecidos. A Gaticanea, um poema épico português de finais do século XVIII, é sem qualquer dúvida um deles. De facto, é uma criação quase intemporal, bem como provavelmente uma das criações mais divertidas que tivemos a oportunidade de ler nos últimos tempos. E passamos a explicar o porquê, depois de mostrarmos esta belíssima gravura do pináculo da obra, que tem lugar em frente ao Palácio Nacional de Mafra.

Gaticanea, o combate final em Mafra

A Gaticanea (ou Cruelissima guerra entre os cães, e os gatos, decidida em huma sanguinolenta batalha na grande praça da real villa de Mafra) tem uma trama jocosa e relativamente simples - um cão e um gato encontram-se numa cozinha, o gato ataca o cão e rouba-lhe um pedaço de alimento que lhe tinha sido dado. É tão simples quanto isto, e toda a história até poderia ter ficado por aí, não fosse o facto de o incidente ter aqui suscitado o princípio da maior batalha que a vila de Mafra já viu, com milhões de mortos entre os combatentes dos dois lados opositores. E não estamos a exagerar, o conflito torna-se assim tão violento, mas de uma forma em que a sátira e o gozo constantes, bem presentes ao longo de toda a obra, nunca são esquecidos. Damos um pequeno exemplo, de um instante em que o autor aborda a dificuldade de saber o género sexual de um cão ou um gato:

Pois há homens sem barbas, ou barbicas,
Que em língua portuguesa são maricas*,
E mulheres barbadas de maneira
Que barbas vender podem numa feira.
Nos gatos e nos cães do mesmo modo
Se pode equivocar o mundo todo.

Parece ao longe um corço uma gazela,
Ao perto um cão parece uma cadela.
Parece a gata gato, o gato gata
Nas peles, e também se se retrata;
E pelos miaus, ou logo de repente,
Ninguém distingue o sexo desta gente.

Ao longo dos quatro cantos que precedem esse grande momento da guerra, e de mais de uma centena de páginas que compõem esta Gaticanea, ambos os lados do conflito viajam por todo o mundo em busca de novos combatentes, antes de se reunirem para o confronto final no derradeiro canto, com um desfecho inesperado. Entretanto, vão sendo satirizados diversas convenções da poesia épica - lá surge um interesse amoroso a um cão, um dos heróis é relembrado do seu dever em sonhos, são recrutados diversos combatentes invulgares, os deuses greco-romanos têm até um pequeno papel na aventura, e outras tantas coisas que tais.

 

Mas é provável que este breve resumo não faça uma verdadeira justiça à Gaticanea, a guerra de cães e gatos em Mafra. É um poema francamente divertido, que não podemos deixar de recomendar a todos aqueles que leiam estas linhas. Na verdade, só pecava por ainda não existir numa edição barata acessível aos nossos dias; assim, decidimos copiar a nossa cópia do século XVIII no scanner, e agora quem assim o desejar poderá comprar uma versão muito barata desta obra, mesmo em formato físico, na Amazon, a menos de 5€ (mais portes de envio), mas a versão de Kindle poderá não funcionar bem em dispositivos mais pequenos, como telemóveis. Se alguém decidir ler este poema, fica a nossa recomendação pessoal, até porque não nos daríamos ao trabalho de criar esta edição na Amazon se não acreditassemos verdadeiramente que a obra merece ser lida!

 

 

*- É digna de nota, esta breve referência à evolução e origem da palavra maricas. Se, como referido no poema, ela anteriormente designava apenas um homem que não tinha barba, ao longo do tempo esse sentido parece ter-se alargado para se referir a um homem efeminado - denotando aquela velha ideia dos "homens de barba rija" - e, eventualmente, até a um homossexual. Eram outros tempos...

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25 de Janeiro, 2021

O mito de Mitra

Contar o mito de Mitra, uma figura que se tornou famosa nos últimos séculos do Império Romano, não é tarefa fácil. Se já cá fizemos uma breve alusão a essa figura, enquanto divindade solar associada de certa forma à Mitologia Romana, que histórias se escondem por detrás dela? Quem foi Mitra, ou Mitras (como alguns lhe chamam), este herói cuja figura foi encontrada em diversos mitreus (um exemplo até pode ser visto aqui), sempre numa constante tarefa de matar um touro?

 

Admita-se, passámos anos em busca desta figura, de potenciais mitos que lhe fossem associáveis, mas o grande problema é que o Mitraísmo era uma religião secreta, envolta em secretismo. Se os Mistérios de Elêusis perduraram durante séculos e os seus segredos só foram parcialmente revelados já por Clemente de Alexandria (no século II ou III da nossa era), este caso em particular ainda é mais complicado... em termos religiosos sabemos que se o culto desta figura chegou à Europa através da Pérsia (tendo possivelmente nascido na Índia), mas a sua forma romana, a que nos referimos aqui hoje, tinha algo de muito único. Sabemos que tinha uma ligação com o zodíaco; que os seus crentes se separavam em sete níveis com símbolos específicos (aparentemente ligados ao próprio mito); que este culto tinha algumas semelhanças com o Cristianismo, incluíndo um baptismo com o sangue de um touro e uma refeição simbólica em que eram consumidos pão e água; e que provavelmente a sua liturgia era uma espécie de teatralização da própria história desta figura e tomava lugar no interior de uma caverna... mas pouco mais!

Feita esta (hoje longa!) introdução, passemos então ao conteúdo do mito de Mitra:

Nascimento de Mitra

Sabemos que Mitra nasceu de uma pedra ou de um ovo, potencialmente até já no interior de uma caverna. E fê-lo não só já com o seu barrete frígio na cabeça, mas com um objecto em cada mão - tipicamente um archote e um punhal. É provável que isso denotasse o destino desta figura, como veremos na sequência seguinte.

O mito de Mitra e a morte do touro

O momento mais famoso do mito de Mitra é aquele em que ele matou um touro, até porque esse sacrifício baptismal era uma parte famosa da sua liturgia. O herói é representado constantemente nos mais diversos mitreus a realizar esta tarefa, mas quem prestar atenção poderá aperceber-se que existem muitos detalhes nesta representação. Alguns dos mais curiosos são:

 

Nos cantos superiores podem ser vistas duas figuras. A da esquerda é Sol (o tal Sol Invictus, ou Sol Inconquistável, de que já cá falámos antes), identificável pelos seus raios, enquanto que a do lado direito é a Lua, identificável pelo crescente. Como veremos mais à frente, pelo menos a primeira destas duas figuras tinha um papel importante em todo este mito.

Ao centro, o herói prepara-se para degolar o touro com o seu punhal. Presume-se que seja uma criatura monstruosa, mais do que um animal qualquer. Curiosamente, nesse momento o herói olha quase sempre na direcção de Sol, como que a dizer que está a cumprir o que este lhe pediu, ou a querer homenageá-lo. Em redor podem ser vistos alguns animais - aqui, são uma serpente e (provavelmente) um cão. Não sabemos se o ajudavam na sua tarefa, ou se estavam a dificultá-la, como quando o caranguejo atacou Hércules durante o seu confronto com a Hidra. Porém, em outras representações podem surgir outros animais, incluindo alguns que foram omitidos aqui, que não sabemos como intervinham em toda a acção principal.

No lado esquerdo e direitos da imagem podem ser vistas duas figuras humanas. Tratavam-se de Cautes (com a tocha para cima) e Cautopates (com uma tocha para baixo), representações metafóricas do nascer e do pôr do sol.

Finalmente, pelo tecto abobadado e com pedras pode-se inferir que toda a acção tinha lugar dentro de uma caverna. Em seu redor podem ser vistos vários episódios da vida do herói (e.g. do lado esquerdo até pode ser facilmente visto o seu nascimento de uma pedra ou ovo), dando a entender que este já tinha passado por muitas aventuras que hoje desconhecemos; porém, por vezes são aí representados os signos do zodíaco, podendo depreender-se que esta caverna era um microcosmo ou um símbolo do próprio universo.

Mitra e o Banquete

Neste último (ou penúltimo?) momento do mito, Mitra provavelmente ascendia aos céus e partilhava uma refeição com Sol. A Lua parece afastar o olhar, no canto superior esquerdo; seria ela uma derrotada de toda a história, como se o confronto com o touro se tratasse de uma disputa entre os dois deuses celestes? Não sabemos, mas é muito possível que esta se tratasse de uma refeição simbólica, com a figura do lado direito - seria ela o deus Mercúrio, pelo caduceu que segura na sua mão? - a indicar já um possível túmulo, enquanto o herói partilha de um momento que, possivelmente, lhe estava a garantir a imortalidade.

 

O que nos permite concluir tudo isto sobre o mito de Mitra? Sucintamente, este herói nasceu de uma pedra ou ovo, com o seu destino já bem traçado. Realizou vários feitos memoráveis, sobre os quais agora sabemos muito pouco. Entre todos eles, o mais famoso e difícil foi o da destruição ou sacrifício de um determinado touro monstruoso, possivelmente a pedido de uma divindade solar e/ou contra uma divindade lunar. É provável que a vitória nesse grande acto lhe tenha garantido a imortalidade,  sob a forma da convivência com os deuses.

Assim, é possível que quem praticasse o Mitraísmo também procurasse, ao reproduzir simbolicamente as tarefas do herói no microcosmo de uma escura caverna, atingir uma espécie de imortalidade após a morte. Essa é uma ideia comum em quase todas as religiões, o que pode ter contribuído para explicar a sua grande rivalidade com o Cristianismo, na medida em que tinham alguns símbolos semelhantes e, potencialmente, ambas pregavam uma vida após a morte que só podia ser atingida por aquilo que era ensinado na sua religião específica. Assim, é possível que esta religião tenha desaparecido porque os Cristãos, dada a semelhança com a sua religião, a consideravam um grande alvo a abater. Mas isso já são outras histórias...

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24 de Janeiro, 2021

Castelo de São Jorge, antes e depois

De entre os castelos mais famosos de Portugal conta-se o de Lisboa, mais conhecido sob o nome de Castelo de São Jorge, em honra do popular santo cuja lenda já cá contámos anteriormente. Mas sabiam que existe um muito significativo antes e depois nesse grande monumento nacional?

Castelo de São Jorge, antes e depois

As duas panorâmicas vistas na imagem acima, tiradas do Miradouro de São Pedro de Alcântara, permitem comparar facilmente a Baixa da cidade em dois momentos da sua história, através do elemento estável da Sé de Lisboa, aqui assinalado a verde.

Existem muitas diferenças nas duas imagens, mas as mais notórias no espaço que procuramos hoje são o facto da couraça exterior do castelo ser significativamente diferente, e do interior do castelo não existir de todo, sendo anteriormente ocupado por um edifício branco, bem diferente do que lá existe agora (lemos que se tratavam de casernas). A que se devem estas grandes diferenças, este antes e depois, no Castelo de São Jorge?

 

Parecem ser poucos os que ainda sabem isto - de facto, quase toda a gente com quem falámos recusou acreditar nesta pequena história, pelo menos até terem visto imagens de Lisboa no século XVIII e XIX - mas o Castelo de São Jorge, como o temos hoje em dia, foi construído na primeira metade do século XX, essencialmente transformando um espaço que era militar num recanto com contornos lúdicos e turísticos. Não foi caso único - algo de semelhante foi acontecendo na Cidade de Coimbra, em Almourol, em Évora, em Óbidos, em Leiria, e em muitos outros lugares pelo país fora - mas este exemplo é, sem qualquer dúvida, o mais famoso presente na nossa capital lisboeta.

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23 de Janeiro, 2021

Como fazer um exorcismo?

Como fazer um exorcismo? Qual é o processo com que se faz um exorcismo, hoje em dia? Fruto de filmes populares como O Exorcista ou O Exorcismo de Emily Rose, bem como de casos (supostamente reais) como o de Anneliese Michel, parecem existir pessoas que têm uma certa curiosidade em relação a todo o processo real por detrás destes esconjuros, até porque raros são aqueles que já assistiram a este ritual presencialmente. Seria muito imprudente reproduzirmos aqui todo o processo, até porque seriam raríssimas as pessoas que o saberiam utilizar de uma forma correcta (já voltaremos a esse ponto...), mas podemos revelar dez curiosidades relativas a ele, que devem verdadeiramente ser tomadas em conta por todos aqueles que querem fazer um exorcismo (e se for esse o caso de quem lê estas linhas, por favor deixem um comentário ali em baixo, a explicar a situação, e tentaremos encaminhá-la). Como é um exorcismo? Passamos então a explicar:

 

1- É importante saber se a pessoa está mesmo possuída

Poderá parecer evidente, mas nem todas as supostas possessões o são (basta recordar, novamente, o caso de Anneliese Michel). Tratar-se, muito frequentemente, de simples problemas de ordem psicológica. Então, para verificar se uma pessoa está mesmo possuída devem ser tomados em conta aspectos como os seguintes, em que ela:

  • É capaz de falar línguas menos comuns e compreendê-las (se não o conseguia fazer antes, como é óbvio);
  • Consegue divulgar o futuro e coisas completamente desconhecidas dos demais;
  • Consegue realizar actos físicos impossíveis na sua idade, condição e estado actual.

Como fazer um exorcismo?

2- Os demónios são enganadores

Seja antes do processo de exorcismo, ou até já durante o mesmo, os demónios poderão tentar enganar todos os envolvidos. Poderão recorrer a insultos, a abandonar (temporariamente) o corpo da pessoa possuída, divulgar conhecimento secreto muitíssimo importante (mas também e até potencialmente falso), fingir que a pessoa adormeceu, fingir tratar-se do espírito de um santo ou de uma qualquer pessoa já falecida, e outras coisas que tais. Nesse sentido, uma possessão por Pazuzu é mais provável que uma pelo (suposto) espírito de Hitler.

 

3- São necessários objectos externos

Como a cultura popular dos nossos dias mostra repetidamente, são necessários alguns objectos externos para fazer um exorcismo. Entre eles contam-se um crucifixo (uma cruz, por si só, não é suficiente), relíquias de santos, óleo, e até uma hóstia consagrada. Existem, porém, regras relativas à forma como estes objectos podem, ou não devem, ser utilizados durante o processo. Essa é uma das razões pelas quais é necessária experiência real aquando da tentativa de realização de um processo como estes.

 

4- Apenas devem ser feitas as perguntas estritamente necessárias

Ao longo do processo têm de ser colocadas algumas questões, nomeadamente relativas à natureza da possessão. É demasiado fácil querer perguntar demais, até em função do conhecimento secreto revelado pelos possuídos, mas as perguntas que são colocadas nessa altura devem restringir-se somente ao necessário para o sucesso de todo o processo.

 

5- O processo não é completamente estático

Aqueles que pensam que para fazer um exorcismo basta comprar um determinado livro e seguir o que ele vai dizendo, como se se tratasse de uma receita culinária, estão muito enganados. O processo é bastante dinâmico, devendo ser alterado mediante a forma como a pessoa afectada está a reagir aos vários passos. Entre as adapções mais simples e basilares que podem ser necessárias conta-se, por exemplo, a necessidade de repetir várias vezes as frases específicas a que o espírito reage mais, ou a alteração de determinados nomes e localizações mencionadas no texto.

Como é um exorcismo?

6- Existe uma preparação pessoal que o exorcista tem de seguir

Um exorcismo não é uma coisa que se possa preparar em cinco minutos num vão de escada. A pessoa que o vai realizar tem de se preparar de antemão, com um ritual muito pessoal. Entre os passos a seguir contam-se uma confissão (sim, diz-se que os demónios têm por hábito relembrar o padre das suas falhas pessoais...), tomar a hóstia, preparar umas vestes muito específicas, rezar a Ladainha de Todos os Santos na forma mais completa, et al.

 

7- Não é necessário o uso de nenhuma língua específica

Se, tradicionalmente, o ritual do exorcismo é feito em Latim, isso acontece porque a própria liturgia da Igreja Católica era, anteriormente, sempre nessa língua em particular, para distinguir o sagrado da Igreja do profano da vida diária. Contudo, este ritual também pode ser realizado em outras línguas, incluíndo Inglês, Português ou Chinês. É, no entanto, aconselhável que se recorra aos textos latinos, por preservarem a forma mais perfeita e estável de tudo o que vai sendo dito.

 

8- Muito do que é dito provém da Bíblia... mas também existe uma liturgia própria!

Muito do que é dito durante o processo de um exorcismo provém da Bíblia. Podem ser usados, por exemplo, os Salmos (3, 34, 53, 67, 90, 117, etc.), o Magnificat, o Benedictus e os Quatro Evangelhos, entre outras sequências religiosas bem conhecidas, como o Credo. Contudo, o processo também tem um conjunto de frases próprias que devem ser ditas, como acontece na missa, para a sua realização. É sobre essas frases específicas que a maior parte das pessoas se interrogam, mas...

 

9- Existem vários rituais distintos!

Não existem um único ritual de exorcismo, mas sim vários significativamente diferentes, que devem ser utilizados em circunstâncias muito particulares. Pensar o contrário seria como ir a uma farmácia e dizer que queremos comprar "um medicamento", sem explicitar que doença pretendemos tratar. Alguns dos rituais são relativamente simples - talvez três ou quatro páginas A4 - enquanto que outros se podem prolongar durante várias horas. O importante, nesse sentido, é reconhecer qual o ritual mais correcto a utilizar para cada circunstância, o que não é simples de se fazer, nem pode ser aprendido num livro.

 

10- E terminam quase sempre com um agradecimento

Como a liturgia da missa, entre muitas outras, ao fazer um exorcismo todo o processo termina com um momento de agradecimento e uma espécie de despedida. A título de exemplo, reproduzimos aqui uma tradução de um desses instantes:

Senhor Deus, pedimos-Te que afastes este mau espírito de afectar este Teu servo, e que o mantenhas longe, para nunca voltar. Pela Tua ordem, ó Senhor, possa a bondade e a paz de Jesus Cristo, nosso Redentor, tomar posse deste homem [ou mulher, mediante o sexo de quem tinha sido afectado].
Não sintamos mais nenhum medo porque o Senhor está connosco. Ele vive e reina em nós, na unidade do Espírito Santo, Deus, para todo o sempre.
Ámen.

 

Dadas agora estas dez curiosidades sobre como se faz um exorcismo, há que constatar que, na verdade, filmes como O Exorcista apresentam um conhecimento mais ou menos realista de todo o processo de um exorcismo. Simplificam-no, certamente a bem da trama (até porque o filme não pode demorar uma dúzia de horas, com o padre a repetir fórmulas sem fim), mas todos aqueles que tiverem curiosidade em saber como é, em termos gerais, essa cerimónia pode, pura e simplesmente, ver esse filme.

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22 de Janeiro, 2021

O mito de Pirene (e os Pirinéus)

Falar do mito de Pirene implica, quase automaticamente, desdobrar esse nome em pelo menos três figuras individuais, com muito pouca ligação directa entre elas. Com o nome de Peirene, i.e. Πειρήνη, conhece-se uma ninfa que teve um filho por Poseidon, e esse jovem teve o triste destino de ser morto por Artémis, levando a própria mãe, desgostosa, a chorar tanto que acabou por se tornar uma famosa fonte da região de Corinto. Mas Pirene, i.e. Πυρήνη, também é o nome partilhado pela mãe de Cicno, figura famosa do Escudo de Héracles, e pela figura a que hoje aqui emprestamos o palco principal.

Pirene e os Pirinéus

Sobre este terceiro mito de Pirene, conta-se então que Hércules, aquando do seu trabalho com o Gado de Gerião, passou pela Península Ibérica e por aqui teve muitas aventuras. Numa delas, ele engravidou uma jovem com este nome; não sabemos até que ponto essa relação sexual foi consentida, mas depois, e por razões que não estão muito bem explicadas no mito, ela acabou por dar à luz um estranho ser serpentino. Tremendamente assustada, fugiu sem cessar, acabando por falecer. Depois, o herói eregiu-lhe um túmulo imenso, empilhando repetidamente pedra sobre pedra, acabando assim por construir, com as suas próprias e poderosas mãos, toda a grande cordilheira dos Pirinéus.

 

Este mito de Pirene é, portanto, uma tentativa greco-latina de explicar a existência das muitas montanhas dos Pirinéus. Sem qualquer dúvida que a ideia não é nova - são incontáveis os mitos e lendas por todo o mundo que têm intenções semelhantes - mas o que torna este especial é o facto de se referir a um local tão próximo de nós. De facto, Jacint Verdaguer, na sua Atlântida, até inclui uma forma adaptada deste mito entre muitas outras histórias associáveis a Portugal e Espanha, tornando esta história dos Gregos e Romanos em uma das mais próximas do nosso país, tornando-a especialmente digna de nota nas linhas de hoje.

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