Os sonetos mitológicos de Camões
Tanto os Lusíadas, como os muitos sonetos de Camões que nos chegaram, têm elementos mitológicos dignos de nota, que vão desde o famoso Adamastor até episódios mais conhecidos dos muitos mitos gregos e latinos da Antiguidade. Nesse sentido, há alguns anos mostrámos aqui algumas das suas construções poéticas mais representativas, mas agora compilamo-las a todas nesta única página, para que possam ser lidos de uma forma mais contínua. Deixe-se, contudo, claro que estes não são todos os sonetos mitológicos de Camões, mas somente alguns de aqueles em que considerámos que os próprios mitos têm um papel mais principal:
(Soneto XIII, em que é curiosa a honestidade de Cupido, conhecido entre os Gregos como Eros:)
Num jardim adornado de verdura,
Que esmaltavam por cima várias flores,
Entrou um dia a deusa dos amores,
Com a deusa da caça e da espessura.
Diana tomou logo uma rosa pura,
Vénus um roxo lírio, dos melhores;
Mas excediam muito às outras flores
As violetas, na graça e formosura.
Perguntam a Cupido, que ali estava,
Qual daquelas três flores tomaria,
Por mais suave e pura, e mais formosa.
Sorrindo-se, o menino lhe tornava:
"Todas formosas são, mas eu queria
Violeta antes que lírio, nem que rosa".
(Soneto XX, com um certo charme pela possibilidade de uma Ninfa roubar os instrumentos amorosos de Cupido. Porém, para quem tiver essa curiosidade, a ideia não vem concretamente de nenhum mito da Antiguidade:)
Num bosque que das Ninfas se habitava
Sibela, Ninfa linda, andava um dia;
E subida numa árvore sombria,
As amarelas flores apanhava.
Cupido, que ali sempre costumava
A vir passar a sesta à sombra fria,
Num ramo o arco e setas que trazia,
Antes que adormecesse, pendurava.
A ninfa, como idóneo tempo vira
Para tamanha empresa, não dilata,
Mas com as armas foge ao moço esquivo.
As setas traz nos olhos, com que tira:
Ó pastores! Fugi, que a todos mata,
Senão a mim, que de matar-me vivo.
(Soneto XLIV, que dá que pensar um pouco. Nos versos iniciais poderá existir uma alusão velada ao mito do Julgamento de Páris:)
Pelos raros extremos que mostrou
Em sábia Palas, Vénus em formosa,
Diana em casta, Juno em animosa,
África, Europa e Ásia as adorou.
Aquele saber grande que juntou
Espírito e corpo em liga generosa,
Esta mundana máquina lustrosa
De só quatro elementos fabricou.
Mas fez maior milagre a natureza
Em vós, senhoras, pondo em cada uma
O que por todas quatro repartiu.
A vós seu resplendor deu Sol e Lua:
A vós com viva luz, graça e pureza,
Ar, Fogo, Terra e Água vos serviu.
(Soneto LXIX, que merece uma explicação um pouco maior. Antes de chegarem a Tróia os Gregos atacaram várias cidades. Uma delas foi aquela sobre a qual Télefo reinava; este rei defrontou em combate Aquiles, que o feriu com a sua famosa lança. Contudo, com o passar do tempo essa ferida não se curava... em busca de uma resposta, esse monarca foi a Delfos e o famoso oráculo revelou-lhe que esta só podia ser curada com a mesma lança com a causou. Seguindo essa indicação o herói é posteriormente curado, de uma forma que não é muito clara nas versões que nos chegaram; também o sujeito poético aqui esperava ser curado por uma nova visão de sua amada, como o poema nos diz:)
Ferido sem ter cura perecia
O forte e duro Télefo temido
Por aquele que na água foi metido,
E a quem ferro nenhum cortar podia.
Quando ao apolóneo oráculo pedia
Conselho para ser restituido,
Respondeu-lhe, [que] tornasse a ser ferido
Por quem o já ferira, e sararia.
Assim, Senhora, quer minha ventura;
Que ferido de ver-vos claramente,
Com tornar-vos a ver o Amor me cura.
Mas é tão doce vossa formosura,
Que fico como o hidrópico doente,
Que bebendo lhe cresce maior secura.
(Soneto XCVI, sobre o suícidio da rainha Dido após o abandono por parte de Eneias. O episódio foi muito popular ao longo dos séculos, com muitas construções poéticas a nos recordarem da dor desta rainha após a "traição" do herói:)
Os vestidos Elisa [Dido] revolvia,
Que Eneias lhe deixara por memória;
Doces despojos da passada glória;
Doces quando seu fado o consentia.
Entre eles a formosa espada via,
Que instrumento, em fim, foi da triste história;
E como quem de si tinha a vitória,
Falando só com ela, assim dizia:
"Formosa e nova espada, se ficaste
Só porque executasses os enganos
De quem te quis deixar, em minha vida;
Sabe que tu comigo te enganaste;
Que para me tirar de tantos danos
Sobeja-me a tristeza da partida".
(Soneto CXXXVII, em que o sujeito poético, como o deus Apolo neste mito, parece sentir algum desespero pela sua situação actual:)
O filho de Latona esclarecido,
Que com seu raio alegra a humana gente,
Matar pôde a Pitónica serpente
Que mortes mil havia produzido.
Feriu com arco, e de arco foi ferido,
Com ponta aguda de ouro reluzente:
Nas Tessálicas praias docemente
Por a ninfa Peneia andou perdido.
Não lhe pôde valer contra seu dano
Saber, nem diligências, nem respeito
De quanto era celeste e soberano.
Pois se um deus nunca viu nem um engano
De quem era tão pouco em seu respeito,
Eu que espero de um ser, que é mais que humano?
(Soneto CLXV. A paixão de Endímion, ou Endimião, pela deusa da lua é um tema frequente na poesia pastoril:)
En una selva al dispuntar del dia
Estaba Endimion triste y lloroso,
Vuelto al rayo del sol, que presuroso
Por la falda de un monte descendia.
Mirando al turbador de su alegría,
Contrario de su bien y su reposo,
Tras un suspiro y otro, congojoso,
Razones semejantes le decia:
Luz clara, para mi la mas escura,
Que con esse paseo apresurado,
Mi sol con tu teniebla escureciste;
Si allà pueden moverte en esa altura
Las quejas de un pastor enamorado,
No tardes en volver á dó saliste.
(Soneto CLXVI, com o mito de Orfeu e da ninfa Eurídice, que o primeiro tentou trazer de volta do mundo dos mortos através do poder da sua mágica música:)
Orfeo enamorado que tañia
Por la perdida Ninfa que buscaba,
En el Orco implacable donde estaba,
Con la arpa, y con la voz la enternecia.
La rueda de Ixion no se movia,
Ningun atormentado se quejaba;
Las penas de los otros ablandaba,
Y todas las de todos él sentia.
El son pudo obligar de tal manera,
Que en dulce galardon de lo cantado,
Los infernales Reyes condolidos,
Le mandáron volver su compañera,
Y volvióla á perder el desdichado;
Con que fueron entrambos los perdidos.
(Soneto CLXXXIII, sobre as complexidades dos amores:)
Por sua Ninfa, Céfalo deixava
Aurora, que por ele se perdia;
Posto que dá princípio ao claro dia,
Posto que as roxas flores imitava.
Ele, que a bela Prócris tanto amava
Que só por ela tudo enjeitaria,
Deseja de atentar se lhe acharia
Tão firme fé como nele achava.
Mudado o traje, tece o duro engano;
Outro se finge, preço põe diante;
Quebra-se a fé mudável, e consente.
Ó engenho subtil para seu dano!
Vede que manhas busca um cego amante
Para que sempre seja descontente!
(Soneto CLXXXV, sobre a bela história de Hero e Leandro, que já cá contámos anteriormente:)
Seguia aquele fogo, que o guiava,
Leandro, contra o mar e contra o vento:
As forças lhe faltavam já e o alento;
Amor lhas refazia e renovava.
Depois que viu que a alma lhe faltava,
Não esmorece; mas, no pensamento,
— Que a língua já não pode – seu intento
Ao mar, que lho cumprisse, encomendava.
«Ó mar – dizia o moço só consigo —
Já te não peço a vida; só queria
Que a de Hero me salves; não me veja...
Este meu corpo morto, lá o desvia
Daquela torre. Sê-me nisto amigo,
Pois no meu maior bem me houveste inveja!»
(Soneto CLXXXIX, em que os vários exemplos da Antiguidade são usados para exaltar alguém de apelido Castro, cuja verdadeira identidade não é completamente certa:)
Ornou sublime esforço ao grande Atlante,
Com que a celeste máquina sustenta;
Honrou a Homero o engenho, com que intenta
Grécia do quarto céu levá-lo avante.
Coroou claro [o] Amor de amor constante
A Orfeu, firme na paz e na tormenta;
Inspirou a Fortuna, em tudo isenta,
A César, de quem foi um tempo amante.
Exaltaste tu, Fama, a glória alta
De Alcides lá no monte em que resides;
Mas Castro, em quem o Céu seus dons derrama,
Mais orna, honra, coroa, inspira, exalta,
Que Atlante, Homero, Orfeu, César e Alcides,
Esforço, Engenho, Amor, Fortuna e Fama.
(Soneto CCXXVII, em que é feito um convite às Tágides, as Ninfas do Rio Tejo, como o poema deixa entender:)
Levantai, minhas Tágides, a frente,
Deixando o Tejo ás sombras nemorosas;
Dourai o vale umbroso, as frescas rosas,
E o monte com as árvores frondente.
Fique de vós um pouco o rio ausente,
Cessem agora as liras numerosas,
Cesse vosso lavor, Ninfas formosas,
Cesse da fonte vossa a grã corrente.
Vinde a ver a Teodósio grande e claro,
A quem está oferecendo maior canto
Na cítara dourada o louro Apolo.
Minerva do saber dá-lhe o dom raro,
Palas lhe dá o valor de mais espanto,
E a Fama o leva já de polo a polo.
(Soneto CCLXXX, um outro em que os sentimentos do sujeito poético se confundem com as ideias dos mitos:)
Diana prateada, esclarecida
Com a luz que do claro Febo ardente,
Por ser de natureza transparente,
Em si, como em espelho, reluzia,
Cem mil milhões de graças lhe influía,
Quando me apareceu o excelente
Raio de vosso aspecto, diferente
Em graça e em amor do que sohia.
Eu vendo-me tão cheio de favores,
E tão propinquo a ser de todo vosso,
Louvei a hora clara, e a noite escura,
Pois nela destes cor a meus amores:
Donde collijo claro que não posso
De dia para vós já ter ventura.
(Soneto CCLXXXI, com um momento muito famoso dos poemas de Homero, em que Afrodite foi apanhada a trair o seu marido com Ares:)
Enquanto Febo os montes acendia
Do céu com luminosa claridade,
Por conservar illesa a castidade
Na caça o tempo Délia despendia.
Vénus, que então de furto descendia
Por captivar de Anquises a vontade,
Vendo Diana em tanta honestidade,
Quase zombando dela, lhe dizia:
«Tu vás com tuas redes na espessura
Os fugitivos cervos enredando;
Mas as minhas enredam o sentido.»
«Melhor é –respondia a deusa pura–
Nas redes leves cervos ir tomando,
Que tomar-te a ti nelas teu marido.»
Para terminar... hoje nada mais temos a dizer, porque os versos destes belos sonetos mitológicos de Camões nos bastam. Mas, se até quiserem conhecer um pouco mais sobre ele, podem começar ao aprender como ele ficou cego de um olho.