As estranhas aventuras de Gargântua e Pantagruel
Definir as estranhas aventuras de Gargântua e Pantagruel, que têm lugar ao longo de cinco livros, não é tarefa fácil. Supõe-se que François Rabelais as tenha criado precisamente com esse grande objectivo, de criar sátiras tão descomunais que se torna difícil defini-las de uma forma breve e sucinta. Por isso, o que podemos contar sobre esta obra?
Gargântua, cujas aventuras são contadas no segundo dos cinco livros (uma espécie de prequela da série...), é pai de Pantagruel, o herói dos quatro livros restantes. São ambos gigantes, mas essa sua giganteza é, salvo raras excepções aqui e ali, um elemento secundário da obra. As aventuras de ambos não são puros contos de fadas, de príncipes, princesas, gigantes e dragões, mas sim uma enorme crítica à sociedade de então, em que as aventuras dos dois heróis se cruzam por várias vezes com a necessidade do autor em expor os ridículos da sociedade em que vivia. Porém, essa apresentação do absurdo não é feita de uma forma directa, mas jogando, de uma certa forma, com um equilíbrio entre o prazer da aventura e um absurdo da vida diária. São, como já demos a entender no primeiro parágrafo, muitas e diversas as aventuras por que passa Pantagruel (com Gargântua a ser quase sempre uma personagem secundária, que apenas surge aqui e ali), mas podemos até dar alguns exemplos.
Se os dois primeiros livros são, essencialmente, introduções a tudo o que se vai passar - e convém ler Gargântua antes de Pantagruel, para se compreender melhor toda a história, apesar de terem sido escritos na ordem inversa - no terceiro, Panurgo, amigo de Pantagruel, depara-se com um grande problema - será que deve casar? Podiam ser muitos os argumentos a apresentar face a essa questão, mas esse herói depressa se põe uma outra, bem mais complicada - será que deve casar, sabendo que nunca quer vir a tornar-se "cornudo"? São então apresentadas dezenas e dezenas de formas diferentes para Panurgo obter a resposta que procurava, numa infindável espécie de discussão filosófica... mas ainda assim, descontente com os resultados, ele decide procurar ainda mais uma alternativa num oráculo místico.
O quinto e o sexto livro de Gargântua e Pantagruel apresentam, no seu cerne, essa busca pelo oráculo místico, numa evidente sátira da Odisseia homérica e de textos como a História Verdadeira de Luciano. Pelo caminho os heróis encontram sociedades de gatos e de pessoas que veneram os decretos papais, estranhos obesos, utilizam um Porco de Tróia para invadir uma cidade, matam monstros marinhos, e tantas outras maluquices que seria difícil relembrar-nos de todas elas à medida que vamos escrevendo estas linhas.
Mas será, na verdade, a obra agora conhecida como Gargântua e Pantagruel indicada para os leitores dos nossos dias? É, talvez mais que tudo, uma obra satírica, que por si só até faz rir, mas que nem sempre é acessível ao leitor comum, na medida em que François Rabelais toma muito frequentemente partido da tradição clássica, referindo e aludindo a autores, obras e momentos da Antiguidade que nem sempre são muito claros, e que se poderão perder sem uma boa edição comentada. A que edição completa que lemos, da Penguin Classics, tem os cinco livros e comentários muito breves no início de cada capítulo (que, neste caso, são melhores que nada...); sem eles, talvez esta não seja uma boa obra para o leitor comum, que acabará por perder parte das (muitas) piadas apresentadas no texto...