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Mitologia em Português

28 de Fevereiro, 2021

Heidi - a série de televisão e o livro

Para a maior parte dos leitores, a bela história de Heidi foi conhecida através de um desenho animado que deu em Portugal há uns poucos anos. Dele se diz que não tinha nada de violência, que era uma história bonita, de outros tempos (por contraste com séries recentes, como o Dragon Ball). Recorde-se o genérico desta série de televisão:

Agora, o que pouca gente parece saber é que a história de Heidi, imortalizada nesse desenho animado de origem japonesa, provém de uma obra literária suíça de finais do século XIX, que até se tornou muito popular no país do sol nascente (razão pela qual foi feita a série animada, popular na Europa mas de autoria asiática). Da autoria de Johanna Spyri, em 1880 foi publicada um livro em que esta famosa menina, na altura ainda com 4-5 anos, foi levada por uma familiar para viver com o avô, no topo de uma montanha dos Alpes Suíços. Nessa primeira aventura, ela é depois levada para a cidade, para se tornar companheira de Clara, uma menina quase da mesma idade que está numa cadeira de rodas. Existem algumas aventuras por lá, umas mais divertidas que outras, mas essa primeira obra termina com o regresso da heroína a casa e ao avô. Na segunda obra - e última "oficial" - datada de 1881, a heroína usa então o que foi aprendendo na cidade para novas aventuras nos Alpes, sendo inclusivé visitada por Clara.

Heidi e Pedro

É então verdade que a história de Heidi, nesta sua versão literária original, não tem qualquer violência? Tem-no brevemente e num único episódio da segunda obra, por parte de Pedro (um jovem que também vivia nos Alpes), mas apenas e somente para ensinar uma lição muito presente em toda a obra. E, nesse sentido, é uma obra bonita, tanto para crianças como para adultos, mas com uma base cristã muito marcada. É importante frisar esse último ponto, porque se a obra é bastante bonita - e ninguém irá alguma vez negar isso, pensamos nós - tem também um problema significativo de irrealismo, de tentar justificar que as coisas menos boas podem acontecer, sim, mas acontecem sempre para que um bem maior possa ser derivado delas, o que nem sempre é verdade na nossa vida real. Salvo essa fraqueza, que não é tanto da obra mas quase filosófica, as aventuras de Heidi, da autoria de Johanna Spyri, são dois textos, normalmente até já condensados num único livro, que não podemos deixar de recomendar não só aos adultos e crianças, mas especificamente àqueles adultos que querem ler alguma coisa com e para as suas crianças. Fica o convite!

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27 de Fevereiro, 2021

A lenda de Sentaro

A lenda de Sentaro vem-nos, como o próprio nome do herói poderá dar a entender, do Japão, mas dá-nos uma lição que poderá ser comum para toda a humanidade.

A lenda de Sentaro

Sentaro era um homem muito rico e vaidoso, que não tinha qualquer problema na vida. Porém, um dia começou a contemplar o problema da morte e a ideia de que todos temos de falecer algum dia. Assim, tendo ouvido dizer que os hermitas viviam para sempre, decidiu tornar-se um; foi a um templo, rezou durante sete dias sem nunca parar, e então apareceu-lhe, pelo mais completo milagre, um deus à sua frente. Essa figura divina depressa lhe apontou que Sentaro gostava demasiado dos bens materiais para conseguir tornar-se um verdadeiro hermita, mas decidiu conceder-lhe um outro desejo, transportando-o magicamente para a lendária Terra da Vida Perpétua.

Quando lá chegou... Sentaro depressa descobriu que todos os habitantes da Terra da Vida Perpétua desejavam constantemente a morte, já estando mais que cansados do peso da idade e de não terem nada de útil para fazer. Ainda tentou adaptar-se a esse local, viveu lá uns "breves" 300 anos, mas depressa deu por si a rezar para voltar a casa. Tentando regressar, caiu ao mar e estava prestes a ser comido por um tubarão quando... acordou! Tudo tinha sido um sonho, e ele ainda estava no templo, mas aprendeu a sua lição e emendou o seu comportamento.

 

Apesar de ainda estar muito presente na nossa sociedade de hoje, esse desejo intemporal de uma vida eterna, jamais devemos esquecer-nos que são incontáveis os mitos e lendas do passado que nos alertam para os perigos de um pensamento semelhante ao de Sentaro. Deste o mito de Titono até determinados episódios de The Twilight Zone, uma vida eterna seria, sem qualquer dúvida, muitíssimo aborrecida, e é disso mesmo que histórias como estas nos alertam. Não devemos temer a morte, ela é apenas natural a todos os seres vivos. Ou, como um dia foi dito ao famoso Gilgamesh:

Deve ter-te sido dito que a morte é a essência de ser humano. Deve ter-te sido dito que isto seria o resultado de cortarem o teu cordão umbilical. O mais negro dia dos seres humanos agora aguarda por ti. O local solitário agora aguarda por ti. A imparável torrente agora aguarda por ti. A batalha inevitável agora aguarda por ti. A batalha desigual agora aguarda por ti. O conflito de que não podes escapar agora aguarda por ti. Mas não deves ir para o submundo com o coração zangado (...)

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26 de Fevereiro, 2021

O mito dos Neades

Apesar de breve, o mito dos Neades merece ser recordado por cá devido ao seu estatuto muito único na Antiguidade Clássica. Tudo o que sabemos sobre eles até pode ser resumido num único parágrafo, mas ficaria provavemente entre os mais intrigantes de todas as obras que nos chegaram escritas em Grego Antigo.

O mito dos Neades, na figura do lado esquerdo?

Admita-se desde já, não sabemos muito sobre estes Neades, mas o pouco que sabemos - numa citação de um autor do terceiro século Antes de Cristo - diz-nos que existiram na ilha de Samos animais gigantes, muito perigosos, cujo rugido era tão poderoso que até conseguia abrir fendas do chão. Depois, se no século II da nossa era eles já não existiam no local, os seus esqueletos ainda podiam ser encontrados por toda a ilha. Nada mais nos é dito sobre estas estranhas criaturas.

 

Assim, seriam os Neades dinossauros, ou alguma outra espécie animal entretanto desaparecida? Não sabemos, nem temos qualquer forma real de o saber, mas um caso muitíssimo circunstancial poderá indicar que sim. Mas se os Gregos até poderão ter encontrado esqueletos debaixo da terra, inferindo assim a existência destas figuras, como descobriram algo sobre o respectivo rugido? Será que o supuseram somente devido ao tamanho das criaturas encontradas? É quase certo que nunca o venhamos a saber, a grande resposta a perguntas como essas, mas toda esta história merece ser recontada por apresentar provavelmente a prova mais directa de que os Gregos e Romanos tinham encontrado esqueletos de criaturas extintas e até lhes atribuíam significados próprios.

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25 de Fevereiro, 2021

O mito de Yama

O mito de Yama, de que falamos aqui hoje, é digno de nota por se referir a uma figura originalmente da Índia (e do Hinduísmo), mas que por via do Budismo depois foi transportada para vários outros locais, nomeadamente a China e o Japão, sofrendo algumas alterações ao longo dessa transmissão. Podemos tentar explicar o seu papel (quase) comum na mitologia indiana, chinesa e japonsa de uma forma muito sucinta.

O mito de Yama

Originalmente, a figura que ficou conhecida como Yama já estava associada ao reino dos mortos, com pelo menos uma tradição a dizer que ele tinha sido o primeiros dos mortais a falecer, conhecendo por isso já bem o reino que viria a administrar. Depois, o seu papel vai evoluindo - na China e no Budismo, sob o nome de Yanluo Wang, ele parece tornar-se mais uma figura que definia e controlava as reencarnações, decidindo o que acontecia a cada pessoa após a sua morte, não só em termos de potenciais castigos, mas também definindo sob que forma as pessoas iriam reencarnar. E é nesse papel que o encontramos no Nihon Ryoiki, uma compilação japonesa de milagres budistas do século IX da nossa era.

 

Referimo-nos concretamente a essa fonte literária porque a presença de Yama - mais conhecido no Japão como Emma-O - na mesma é estável, repetida e apresenta sempre o mesmo papel - quando alguém morre é transportado para um enorme e belíssimo palácio, em que os bons actos feitos em vida são contrastados com as realizações menos boas. Por exemplo, numa determinada história dessa fonte literária, é apresentado um homem que fez muitos bons actos na sua vida, mas que também venerou "os deuses chineses" (por oposição a seguir os preceitos budistas, supõe-se). Assim, quando o falecido chega ao tribunal de Yama, surgem versões antropomórficas dos dois grupos de actos, que se debatem pela sua salvação ou condenação; às tantas, o juíz considera que o caso era muto difícil de julgar, optando então por absolver o réu dado este ter praticado mais bons actos do que negativos, e ele até foi trazido de volta à vida, emendando depois o seu comportamento anterior (i.e. passou então a seguir todas as ideias do Budismo).

 

O mito de Yama é, portanto, o de um juíz imparcial, quase humano nas suas forças e fraquezas, que procura com a sua justiça recompensar - ou punir - os actos que as pessoas realizaram nas suas vidas. Face a figuras ocidentais, como o Minos grego ou o Deus cristão, talvez a sua grande fraqueza seja mesmo o seu notável carácter humano, visto que depende de testemunhos - mais do que uma qualquer espécie de poderes místicos - para formular as suas decisões. Talvez até já se tenha enganado, culpando um justo por um pecador, ou deixando o segundo escapar? Não encontrámos qualquer fonte directa em que isso tenha acontecido, contrariamente ao que aconteceu em mitos como os dos Gregos (e.g. recorde-se, por exemplo, a forma como Sísifo enganou os deuses dos mortos), mas é provável que até exista alguma história que siga essas linhas - recorde-se, por exemplo, que no Dragon Ball Z os falecidos  se cruzaram repetidamente com esta figura, que nem sempre soube como julgar muito bem as suas acções em vida...

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24 de Fevereiro, 2021

A lenda da Vitória Régia

A lenda da Vitória Régia é provavelmente uma das mais famosas do folclore e mitologia do Brasil, mas ao mesmo tempo quase nada se conhece sobre ela em Portugal. Assim, convém começar por explicar que ela é uma espécie de planta aquática, que aos Portugueses pode ser descrita mais ou menos como um nenúfar gigante e mais resistente. É conhecida sob diversos nomes diferentes em Terras de Vera Cruz, sendo até um símbolo da Amazónia, mas o nome que lhe damos aqui tem, aparentemente, origem em uma homenagem inglesa à Rainha Vitória, particularmente clara no seu nome científico, i.e. victoria amazonica.

 

Feita então esta explicação inicial, provavelmente até quase só para os leitores que estão em Portugal, conte-se agora esta lenda:

Lenda da Vitória Régia

Diz-se que em outros tempos alguns índios nativos do Brasil veneravam a lua, dando-lhe o nome de Jaci, e lhe associavam muitas histórias, grande parte delas hoje já completamente perdidas. Assim sendo, entre as muitas pessoas das suas tribos contava-se uma belíssima jovem chamada Naiá, que acreditava fielmente em tudo aquilo que tinha ouvido nas muitas histórias locais sobre Jaci. As diversas versões desta aventura divergem um pouco no que se passou a seguir, mas sabemos é que Naiá acabou por se apaixonar pelo astro que quase todas as noites via no céu. Depois, um dia, enquanto passeava na margem do Rio Amazonas, viu Jaci reflectido nas águas e a bela divindade pareceu-lhe maior e mais próxima do que nunca. Desejando então tocar-lhe, ou mesmo dar-lhe um pequeno beijo na face, aproximou-se, tentou aproximar-se mais e mais...

A lenda da Vitória Régia, parte 2

... e acabou por cair às águas! Debateu-se por alguns momentos, mas não sabia nadar, não conseguia de todo fazê-lo. Morreu afogada. Contudo, Jaci teve piedade desta Naiá, a sua grande devota de já tantos anos, e então transformou-a numa planta aquática, de forma redonda e que, segundo nos diz toda a história, floresce apenas nas mais belas noites de lua cheia, como que para continuar a homenagear, de uma forma eterna, a divindade que tanto tinha amado em vida.

 

Assim, a lenda da Vitória Régia explica como é que estas plantas, para nós em Portugal um pouco estranhas, nasceram. Não é uma história mesmo verdadeira, como é óbvio, mas recorda-nos as muitas transformações das Metamorfoses de Ovídio, procurando explicar um mundo parcialmente desconhecido através de um conjunto de ideias e sentimentos que, de certa forma, são até comuns a toda a humanidade. É uma história brasileira, mas poderia igualmente ser de um qualquer outro lugar em que existam plantas aquáticas, e em que algum dia alguém se interrogou sobre a sua origem...

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23 de Fevereiro, 2021

A origem da Medusa?

Se existem muitas criaturas estranhas na Mitologia Grega, é igualmente verdade que poucas são tão famosas como a Medusa. Já cá falámos dela diversas vezes, e até contámos o seu mito grego, mas uma pergunta poderá persistir - qual a origem da Medusa? Como é que se passou acreditar numa criatura que é tão única no panorama dos mitos gregos e latinos?

A origem da Medusa, a Naga?

A solução para essa difícil questão da origem da Medusa poderá passar por um confronto com os mitos da Índia e do Oriente, em que criaturas muito semelhantes, chamadas Nagas ou Najas, populam os mais diversos mitos. Elas viviam debaixo da terra, guardavam tesouros e - certamente o mais importante para esta publicação de hoje - adoptavam várias formas físicas. Se muitas vezes eram meras serpentes, tal como as conhecemos dos jardins zoológicos, podiam igualmente adoptar uma forma antropomórfica, com rabo serpentino, cabelos feitos de serpentes e tronco feminino (presume-se que este último elemento seja para melhor seduzirem o sexo masculino). Curiosamente, não parecem ter existido "Najos", formas masculinas da mesma criatura...

 

A presença comum de criaturas como estas nos mitos orientais podem explicar a presença da forma invulgar e incomum da Medusa nos mitos ocidentais, mas será que existe uma ligação real entre estas duas criaturas mitológicas, ou se trata tudo de uma mera coincidência? Tudo indicaria o segundo caminho, até que encontrámos um mito indiano de uma jovem chamada Sulocana. Segundo a sua história, enquanto ela fazia amor com o marido num altar viu um horrendo espírito da natureza a olhar para eles; gozando com essa figura, fazendo contrastar a fealdade de aquele que a via com a sua própria beleza natural, foi então vítima de uma maldição, passando a envenenar, mortalmente, todos aqueles para quem olhava. E só um mortal sobreviveu a ela...

Perseu e a Medusa

Não é claro que Sulocana também tenha sofrido uma transformação física, potencialmente até na forma de uma Naja, mas as semelhanças com um dos mitos que envolve esta figura mitológica grega é notável, com um espírito da natureza a tomar aqui o lugar do deus dos mares. Considerar o mito que bem conhecemos nesta sequência explicaria o porquê de, no caso de Perseu e da Medusa, o herói ter de olhar para um escudo - ele não pretendia evitar olhar para o monstro, mas sim que este, ao acordar do seu sono, não olhasse directamente para ele; o poder de transformar em pedra não se devia à fealdade da criatura mitológica, como pensamos demasiadas vezes, mas ao poder mortal do seu olhar directo.

Ao mesmo tempo, recorde-se que se as Górgones têm um corpo repleto de serpentes, essa sua forma serpentina não tem qualquer significado ou função real no mito. Mesmo quando a figura mitológica é representada com asas, o que acontece em muitos vasos, também elas não têm qualquer presença na própria trama, denotando um certo afastamento, difícil de explicar, entre a trama mitológica e a iconográfica, como se a razão por detrás de toda a representação se tivesse perdido ao longo dos séculos.

 

Face a tudo isto, é provável que a origem da Medusa nos deva remeter para os mitos da Índia, ou do Oriente na sua forma mais geral, tendo resultado de uma confluência antiga entre diversas histórias originalmente distintas - pelo menos uma que servia para dar uma forma horrendo à criatura, e uma segunda em que entrava a grande capacidade mortal de um olhar amaldiçoado. Não conseguimos provar com exatidão quando é que essa associação teve lugar - talvez até através de trocas comerciais e culturais muito anteriores à nossa era - mas não temos razões reais para duvidar que possa ter acontecido...

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22 de Fevereiro, 2021

O mito de Inana / Ishtar e Dumuzid / Tamuz

Entre os enredos mais famosos dos primórdios da história mundial conta-se o mito de Inana / Ishtar, que une esta deusa ao pastor Dumuzid / Tamuz. Iremos contá-lo abaixo, mas convém explicar, desde já, que nos referimos inicialmente a essas duas figuras principais desta forma, com nomes duplos, porque apesar dos intervenientes terem pelo menos quatro milhares de anos e as suas histórias essenciais se terem mantido ao longo do tempo, os seus nomes mudaram de cultura para cultura na mitologia e religiões do Próximo Oriente, retendo o seu espírito essencial; porém, para evitar uma constante e enfadonha repetição, iremos chamar-lhes apenas Inana e Dumuzid (os seus nomes mais antigos), mas deixe-se claro que as mesmíssimas aventuras também se aplicam ao par constituído pelos nomes, mais tardios, de Ishtar e Tamuz.

Inana, Ishtar, Eresquigal, ou outra deusa do mesmo período

Conta-se então que a deusa Inana quis casar e dois homens disputaram-na, o agricultor Enkimdu (não confundir com o famoso Enkidu, o companheiro de Gilgamesh), e o pastor Dumuzid. Este segundo conquistou-a com ajuda divina, e chegaram-nos até poemas bastante eróticos sobre a forma como o par amoroso se introduziu mutuamente às artes do amor e do sexo. De entre as referências mais curiosas presentes nos mesmos, o amante diz que já não tem tempo para se dedicar às relações sexuais "mais de 50 vezes por noite", até porque agora era rei e também tinha de gerir o seu reino.

 

Até aqui a história é relativamente simples, quase contínua entre fontes, mas depois torna-se mais difícil de seguir, já que nos foi chegando em momentos fragmentários. Sabemos, por exemplo, que num dado instante Inana desce ao reino dos mortos, por razões difíceis de compreender (terá sido para conhecer o sabor da morte, como dizem alguns?), onde se vai despindo progressivamente em cada um dos sete portões, numa possível metáfora para o facto de que nada podemos levar para esse nosso pós-vida. Nesse reino, a deusa encontra a irmã mais velha (Eresquigal), falece, mas é posteriormente trazida de volta à vida, com uma condição - ela tinha de encontrar alguém que aceitasse falecer no seu lugar. E acaba por escolher... não quem conseguiu trazê-la de volta à vida, nem os seus próprios filhos, nem qualquer outro ser humano deste mundo, mas o próprio Dumuzid, potencialmente porque este não sofreu o suficiente pela morte de uma mulher que dizia amar.

 

Sabendo do seu destino através de sonhos proféticos, sabendo o que o aguardava, Dumuzid até tenta escapar, recorrendo a vários subterfúgios humanos e divinos, mas lá acaba por ser capturado e levado para o mundo dos mortos. Não voltaria nunca mais, não fosse o facto da sua própria irmã, Gestinanna, se ter oferecido para ocupar o seu lugar durante metade do ano, permitindo ao falecido regressar ao reino dos deuses-vivos e aos braços da amada Inana. O mito não nos preserva o registo de qualquer zanga real entre eles, apesar de ela ter sacrificado alguém que dizia amar em favor do seu próprio bem-estar, nem nos diz se depois ainda continuaram a ter as suas relações sexuais as tais 50 vezes por noite...

Inana e Tamuz

Posto assim, todo este mito poderá parecer relativamente simples, mas há que frisar que esta trama, tal como a apresentamos aqui, só pôde ser reconstruída recuperando momentos muito fragmentários de diversos textos completamente distintos. Por exemplo, nas linhas que nos chegaram é muito difícil compreender o que aconteceu entre o seu casamento e o instante em que a deusa desce ao mundo dos mortos, tal como não é clara a razão específica pela qual escolheu o seu amado para ocupar o seu lugar no submundo, entre muitas outras questões sem resposta.

A Porta de Ishtar

Contudo, toda esta história ainda não fica por aqui. A influência do culto a esta deusa e ao seu amado prolongou-se por muitos séculos, podendo ser vista no tempo dos Gregos e dos Romanos em mitos como o de Adónis. Gilgamesh rejeita-a e goza-a, apontando no seu poema épico o mau destino das paixões anteriores da deusa. O décimo mês hebraico tem o nome de Tamuz, e o facto do seu culto ter sido celebrado por mulheres que choravam a morte desse deus-pastor ainda persiste na nossa Bíblia (i.e. Ezequiel 8:14). A famosa Porta ou Portão de Ishtar, visível na imagem acima, poderá até ter sido uma representação simbólica do espaço cruzado pela deusa para descer ao submundo.

Este mito é, portanto, um dos mais famosos da história da humanidade, apesar de ser - hoje - já muito pouco conhecido. Para isso contribuiu, sem qualquer dúvida, o facto de não nos ter chegado de uma forma contínua, mas sim através de diversos escritos sem início ou fim, em que se torna muito difícil compreender a totalidade dos eventos. Aqui tentámos sintetizá-los brevemente, recorrendo às diversas fontes literárias que nos chegaram, mas não foi tarefa fácil, ficando esta espécie de conto dos dois amados parcialmente incompleta até que se possa encontrar mais informação sobre ambos...

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21 de Fevereiro, 2021

Casa do Fauno, uma visita virtual

Vieram perguntar-vos sobre a chamada Casa do Fauno enquanto nos preparávamos para escrever sobre sátiros, faunos e outras criaturas que tais. O segundo é um tema que depois foi falado aqui, mas por agora podemos falar sobre uma famosa casa romana que existe em Pompeia, e que é conhecida por este nome em virtude de uma figura dançante que pode ser vista à sua entrada:

A mascote da Casa do Fauno

Dizem tratar-se de um fauno, mas dada a ausência de características dessa criatura mitológica (i.e. não tem cascos nos pés, cornos na cabeça ou cauda de cavalo), parece-nos que seria mais justo ver nela um dos muitos seguidores humanos do deus Baco, numa das suas clássicas deambulações bêbadas pelos campos. É discutível, até porque a representação destas criaturas, como a dos sátiros entre os Gregos, foi variando ao longo dos séculos...

Depois, uma das coisas mais interessantes que pode ser encontrada nesta Casa do Fauno é um mosaico gigante, hoje conhecido sob o nome de Mosaico de Alexandre, em que pode ser vista uma batalha entre Alexandre Magno e Dário III da Pérsia. Mesmo nos nossos dias esta representação é sobejamente conhecida, mas vista assim, neste seu contexto original, é que se pode perceber toda a magnitude da representação, que é muito maior do que tendemos a supor. Infelizmente, a actual é apenas uma reprodução - o original foi levado para o Museu Arqueológico Nacional de Nápoles - mas permite ao visitante ter uma visão geral e em contexto do que foi encontrado neste local.

Se esse mosaico é indubitavelmente o elemento mais famoso desta Casa do Fauno, existem igualmente outros recantos para visitar nas suas redondezas. Por exemplo, esta habitação, em que podem ser vistos mais alguns azulejos, que se supõe que também sejam reproduções.

Infelizmente, neste caso específico não é possível fazer uma visita mais completa, completamente à escolha do freguês, como a que aqui apresentámos na Conímbriga de Portugal, mas pelo menos a infraestrutura existente permite a um visitante virtual ter acesso a parte do espaço real, o que já é bom!

 

Agora, quem lê estas linhas em Portugal poderá pôr-se uma questão adicional - "Mas não existe também uma Casa do Fauno em Sintra?" É verdade, sim, trata-se de um pequeno bar, com decoração ligeiramente "medieval", e uma livraria de livros pseudo-místicos no segundo piso. Um dia até lá tentámos comprar uma cópia do livro de interpretação de sonhos de Artemídoro de Daldis, mas não faziam ideia do que era, apesar de venderem N outras obras, bem menos credíveis e muito mais fantasiosas, sobre esse mesmo tema...

Outra Casa do Fauno

Onde está o seu fauno, que supostamente emprestou o nome ao local? Não fazemos qualquer ideia, mas nunca conseguimos aí encontrar nenhum numa posição de relevo, seja no interior do espaço fechado ou nos seus jardins. Quem decidir buscá-lo depressa acabará frustrado, porque o nome deste bar engana bastante. Preferimos, sem qualquer dúvida, o espaço que partilha o seu nome na Pompeia dos Romanos...

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21 de Fevereiro, 2021

O mito de Pítis (e o pinheiro)

O mito de Pítis vem-nos da Mitologia Grega. Podia ser apenas mais uma de tantas histórias de metamorfoses, mas o que ele tem de especial é o facto de nos terem chegado duas versões distintas da sua pequena aventura, com mensagens significativamente contraditórias.

O mito de Pítis

Na primeira versão do mito de Pítis, esta ninfa era disputada por dois deuses, Pã e Bóreas (i.e. o vento do norte). Sempre mostrou especial paixão pelo primeiro, e então o segundo, num dia em que se sentiu mais invejoso da felicidade alheia, soprou-a com muita força da beira de um penhasco, levando-a a cair e conduzindo-a à sua morte. Os outros deuses, seja com pena de Pã ou da sua falecida amada, depois transformaram-na num Pinheiro, que ainda hoje se movimenta ao sabor do vento, como que a tentar fugir daquele que um dia a martirizou.

 

Numa outra versão do mesmo mito, Pítis era amada pelo deus Pã mas não sentia nada por ele. Um dia, enquanto este deus de estranha figura a perseguia, quase que a conseguiu apanhar, pretendendo violá-la. No entanto, os deuses, com pena de toda a situação que estava prestes a gerar-se, transformaram-na em Pinheiro. A sequência não pode deixar de nos recordar as muitas Metamorfoses de Ovídio.

 

É muitíssimo curioso, este duplo papel que o deus Pã tem em duas versões do mito de Pítis. Mesmo após várias horas de discussão, demos por nós a constatar que são muito raros os mitos em que situações como estas têm lugar, em que duas figuras, mediante a versão, sejam unidas ou pelo amor, ou pelo ódio. Não obstante esse problema, as razões por detrás de todo este mito são fáceis de entender - o deus caprino era frequentemente representado com uma pinha, o que se procura explicar aqui fazendo dela um símbolo de uma sua antiga amada, como também acontece em muitos outros mitos - e.g. o de Apolo e Dafne. Assim, fosse Pã amado (ou não) por esta ninfa, não pôde deixar de se lembrar dela após o final de toda a história, e assim fez da pinha o seu símbolo divino pessoal.

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20 de Fevereiro, 2021

A lenda de São Guinefort, o santo cão

Contar a lenda de São Guinefort implica, talvez até antes de tudo o mais, deixar claro que esta muito incomum santidade canina existe apenas e exclusivamente em nome. Não temos qualquer certeza que ele tenha verdadeiramente existido na carne - Pausânias, no segundo século da nossa era, até já contava uma história muito semelhante - mas mesmo a querermos acreditar que sim, a sua aclamação à santidade foi meramente popular, nunca tendo sido ele reconhecido em qualquer igreja oficial como tal. Ainda assim, sendo hoje o dia do animal de estimação, achámos que seria uma boa ideia recordar a história deste santo cão, hoje já tão esquecida até em locais como a Wikipedia...

Lenda de São Guinefort

Esta história, ou lenda de São Guinefort, começa quando na Idade Média um padre francês foi trabalhar para uma nova paróquia, algures na região de Lyon. Depressa se apercebeu que os seus paroquianos eram muito católicos, tendo enorme fé num santo cujo nome ele nunca tinha sequer ouvido antes. Foi deixando a situação passar, mas quando notou que as paroquianas tinham por hábito deixar os bebés doentes no túmulo deste santo para serem curados, começou a ficar mais e mais intrigado com toda a situação. Foi então que lhe contaram a história e o martírio da figura que tanto veneravam:

Um casal tinha um filho ainda muito jovem. Quando tinham de sair de casa, a cada nova manhã, pediam a Guinefort, então ainda vivo, que lhes cuidasse do filho. Tudo corria bem, até que um dia voltaram a casa e encontraram este guardador cheio de sangue. Incrédulos com toda a situação, pensando automaticamente que ele lhes tinha feito mal ao filho, mataram-no logo... apenas para depois virem a descobrir que esse sangue era, afinal, de uma cobra que tinha entrado pela casa e tentado atacar o bebé!

Inicialmente o padre francês não viu nada de mal em toda esta situação, bem pelo contrário, mas à medida que o tempo foi passando, lá lhe deu um clique na cabeça e acabou por se aperceber que este grande santo protector dos mais novos, São Guinefort, era, na verdade, um cão! Lá tentou proibir essa veneração, tentou que as pessoas se focassem em outros santos mais reais e totalmente distintos, mas sempre sem qualquer sucesso - de facto, esse culto chegou quase até aos nossos dias, aparentemente só tendo sido suprimido já em pleno século XX (como também aconteceu com tantos outros no nosso país).

 

Ainda hoje existe uma associação com este nome em Châtillon-sur-Chalaronne, sendo possível que toda esta história da lenda de São Guinefort tenha tomado lugar nas proximidades, mas não parece existir qualquer igreja em que este suposto mártir ainda possa ser visto, nem nunca conseguimos encontrar o lugar preciso do seu, outrora tão famoso, túmulo com propriedades miraculosas. Ainda assim, é curioso que exista ainda hoje um outro santo cão, esse já na Igreja Ortodoxa, ainda muito venerado entre eles, mas que a Igreja Católica só reconhece sob uma forma bastante distinta.

Ah, e para quem tiver essa curiosidade adicional, não há registo de qualquer santo felino (ou peixe, ou mesmo pássaro, com excepção do Espírito Santo sob a forma de pomba branca)...

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