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Mitologia em Português

08 de Março, 2021

A esposa de Deus existiu mesmo?

Hoje em dia, mesmo numa cultura eminentemente católica como a portuguesa, poderá parecer estranho falar-se de uma esposa de Deus. Quando pensamos nessa ideia, normalmente associamos o título ou ao Espírito Santo (como uma espécie de parte feminina do divino), ou a Santa Maria. No entanto, já existiu um tempo em que Deus teve uma consorte, uma mulher ou esposa, que o acompanhava no reino dos céus. Mas o que lhe aconteceu? Será mais um daqueles supostos casos em que o sempre malvadíssimo Patriarcado decidiu esconder isto muito bem escondidinho, para fazer de um deus masculino o senhor supremo de tudo o que existe, enquanto assobia para o lado e diz "deusa? Que deusa? Não conhecemos nenhuma, só existe uma divindade neste mundo e é do sexo masculino"...?

Aserá, a esposa de Deus

Quem ler a Bíblia com muita atenção poderá notar que o Antigo Testamento foi compilado através do cruzamento de pelo menos duas fontes de informação distintas. A forma mais fácil de as distinguir é através do nome associado à figura divina, i.e. Javé, El ou Elohim. Se os textos em Português traduzem os três sempre da mesma forma, pura e simplesmente como "Deus", dando a entender (falsamente) que se tratam de uma só e mesma entidade, originalmente eles referiam-se a figuras diferentes. É difícil saber que características individuais cada uma delas tinha antes deste sincretismo, mas lendo o texto de uma boa tradução com algum cuidado poderão ser encontrados momentos como estes:

Não colocarás um poste de madeira para Aserá junto ao altar do Senhor Teu Deus.
-- Deuteronómio 16:21

Os filhos apanham a lenha, os pais acendem o fogo, e as mulheres amassam a farinha para fazerem bolos à Rainha dos Céus (...)
-- Jeremias 7:18

Manassés fez uma estátua de Aserá e colocou-a no templo [de Deus] (...)
-- 2 Reis 21:7

Assim, mesmo deixando de lado qualquer potencial controvérsia relativa aos nomes da grande figura divina judaica e cristã, é fácil ver que ela já esteve ligada a uma deusa chamada Aserá (que alguns dizem também ser Astarte), conhecida sob o título de "Rainha dos Céus", a criadora dos Mares (e assim se explica a existência inicial das águas mesmo no Livro do Génesis), que era venerada sob a forma de um poste (ou tronco) antropomórfico, como pode ser visto na imagem acima. Existem quase 40 referências directas ao nome dela no Antigo Testamento, que em comum revelam duas coisas - que ela estava de alguma forma relacionada com o deus (agora) judaico, e que essa antiga relação amorosa tinha de desaparecer ("destruam as estátuas, os postes sagrados de Aserá" é uma ideia bastante repetida no texto bíblico). Contudo, nos fragmentos de um píthos do século VIII antes de Cristo, encontrado há menos de 50 anos, o casal ainda era referido lado a lado, mesmo que não o consigamos reconhecer, pela falta de informação que agora temos sobre ele e as suas aventuras - o que é claro é a existência clara de uma esposa de Deus, já que o deus e esta deusa são mencionados lado a lado!

Deus e a sua mulher, Aserá

Poderá então parecer, a uma primeira vista, que a nova intenção seria a de ocultar, de fazer esquecer, esta antiga esposa de Deus, que tinha sido a sua grande consorte, mas quem quiser ler as mesmas linhas sem esses preconceitos, ou fantasias como as demasiado associadas a Lilith, acabará por notar que esta tentativa não se prendia tanto com uma necessidade de atacar Aserá em particular, mas de criar um monoteísmo simplificando uma cultura que era originalmente politeísta. Naturalmente que isso implicava deixar cair algumas figuras divinas, entre as quais se contou esta mulher, não em virtude do seu género sexual, ou de ser em específico a esposa de Deus, mas porque, para parafrasear um famoso filme dos nossos dias, there could be only one. E esse papel acabou por caber a outra entidade divina, por razões agora completamente ignotas!

 

Desconhecemos, hoje, a totalidade das figuras divinas que foram sendo esquecidas neste mesmo panteão semita, mas é curioso que o texto bíblico nos preserve referências que só podem ser completamente compreendidas nesse contexto. Quando, por exemplo, os Judeus acreditam em 70 nações no mundo, que associam os filhos de Noé, originalmente esse número era atribuído aos descendentes do pai divino e de Aserá, todos eles deuses... que tiveram, depois, de ser despromovidos para se poder dizer que existia somente uma figura divina verdadeira. A religião tem destas coisas...

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