O que é o Livro da Noa?
Vieram perguntar-nos o que é o chamado Livro da Noa. De uma forma muito essencial, podemos resumi-lo como um manuscrito medieval português, produzido no Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, que conta, de uma forma breve, o que foi acontecendo ao longo dos anos, entre inícios do século IV e meados do século XV. Ele apresenta muitas especificidades curiosas, mas talvez a mais digna de nota seja o facto de estar escrito em Latim e em Português; não é uma obra bilingue, deixe-se claro, mas sim uma em que algumas das entradas estão numa língua e outras estão em outra, por razões agora desconhecidas.
Por exemplo, na imagem acima pode ser vista a primeira sequência do texto do Livro da Noa que está em Português, e que nos diz então o seguinte:
El-Rei Dom Afonso, o primeiro filho do Conde Dom Henrique e da Rainha Dona Tareija [i.e. Teresa], porque em Espanha não podia achar casamento que não fossem tanto suas parentes chegadas que não podia casar com elas sem dispensação do Pontífice, houve a casar com Dona Mafalda, filho do Conde Dom Marrique de Lara [?] e Senhor de Molina, irmão do Conde Dom Nuno, o que livrou os filhos de algo do peito em Burgos.
Aqui, o parágrafo anterior está em Latim, o seguinte continua nessa mesma língua, mas esta sequência está em Português. Porquê? Será por se referir ao casamento do primeiro rei e, por isso, se tratar de um momento importante? Até podia ser que sim, mas depois passam-se várias páginas e surgem depois momentos como os seguintes, também eles em Português, que nos permitem abandonar essa possibilidade:
Era de mil trezentos e sessenta e quatro anos, quatro dias andados do mês de Julho, foi morto João Afonso em Lisboa, por justiça que El-Rei Dom Afonso [IV], filho do muito Nobre Rei Dom Dinis mandou fazer nele.
(...)
Na era de mil trezentos e setenta e um ano, catorze dias andados do mês de Maio, foi eclipse do Sol e foi tornado o Sol tão sumido que não parecia senão como uma Lua nova, muito pequena de si, e foi acrescentando em si, tornando-se em seu estado, e em crescença dele tornava-se de muitas cores, por tal guissa que o dia foi muito escuro e tirado de sua claridade. Isto foi à hora do meio-dia, e esteve assim o Sol neste embargo uma hora e meia do dia.
(...)
Na era de mil e trezentos e setenta e um ano foi tão mau ano por todo o Portugal que andou o alqueire do trigo a vinte e um soldos, e o alqueire do milho a treze soldos, e o centeio a dezasseis pela medida coimbrã. (...) E bem foi minguado o ano de todos os outros frutos por que a gente se havia de manter. Neste ano morreram muitas gentes de fome, quanto nunca os homens viram morrer por esta razão, nem viram nem ouviram dizer homens antigos antes (...)
(...)
Era de mil e quatrocentos e trinta e dois anos (...) choveu sangue na cidade de Coimbra, e muitas gentes deram disto fé, especialmente o autor desta memória, que o viu.
Podíamos dar aqui muitos outros exemplos de trechos desta Livro da Noa, mas decidimos parar com este último, não só pelo facto do seu autor se identificar na primeira pessoa, permitindo saber que alguns dos eventos reportados foram testemunhados na primeira pessoa, como por nos permitir datar a sua autoria para meados do século XV, sendo certamente possível que o autor já não dominasse bem o Latim, limitando-se portanto a copiar, para as sequências mais antigas, informação que encontrou em outros lugares. Ao mesmo tempo, os fragmentos acima permitem perceber mais ou menos o espírito de toda a obra - ela conta-nos, conforme já foi dito anteriormente, o que foi tendo lugar ao longo do tempo, não só em termos de alguns eventos políticos, mas também em termos de milagres e ocorrências menos comuns. Feito então este resumo do famoso manuscrito nacional, quem ainda quiser saber mais sobre toda a obra poderá vê-la, de forma gratuita e na primeira pessoa, no site da Torre do Tombo.