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Mitologia em Português

30 de Junho, 2021

Quem traiu Humberto Delgado?

Humberto Delgado foi assassinado a 13 de Fevereiro de 1965 na cidade de Olivença. Isso é um facto consumado, que até a Wikipedia informará qualquer leitor muito rapidamente, mas o que já menos saberão é o que se esconde por detrás desse acontecimento da política nacional. Por isso, para terminar este mês completamente dedicado a temas relacionados com Portugal, decidimos contar uma história um pouco mais pessoal e quase dos nossos dias.

Um dos nossos colegas mora numa casa próxima da de um antigo capitão de uma força de segurança nacional. Hoje já reformado há mais de uma dezena de anos, ele gostava de partilhar histórias de outros tempos e da sua carreira profissional. Uma delas ficou na memória do nosso colega, por razões que serão muito fáceis de compreender.

Quem traiu Humberto Delgado?

Um dado dia, esse capitão perguntou-lhe se ele sabia quem tinha morto Humberto Delgado. O nosso colega disse que não - história de Portugal certamente que não é o seu forte - e então o senhor continuou o que ia dizer, explicando que este antigo general foi assassinado em Olivença depois de [nome omitido por nós] o ter traído, divulgado por onde ele andava escondido e para onde se dirigia. Naturalmente que esta seria uma suspeita bastante perigosa, e então o nosso colega decidiu perguntar um pouco mais sobre isso. Assim, o idoso em questão continuou a conversa, explicando o porquê de isto ser pouco sabido - aparentemente, depois do 25 de Abril esse mesmo traidor teve acesso aos registos da PIDE, que identificavam a fonte dessa informação, e retirou de lá algumas das páginas que lhe diziam respeito. Mas tudo isto ainda se torna mais interessante - visto que esse acontecimento teve lugar na presença deste capitão, e que lhe foi dito para ele destruir esses documentos, ele... se por esquecimento, por curiosidade, por vontade própria, ou por algo menos fácil de compreender, limitou-se a guardá-los. E guardou-os. E, na verdade, pareciam atestar o que este idoso afirmou em conversa.

 

Quando o nosso colega nos contou isto, ficámos curiosos. Seria mesmo verdade, que uma reputada figura da política nacional tivesse traído Humberto Delgado? Muito do património documental da PIDE já está digitalizado. Fomos então procurar esses documentos e, segundo o nosso colega, eram formalmente parecidos com o que ele viu à sua frente. Depois, procurámos o chamado "Registo Geral de Presos" e descobrimos que cada preso tinha um número de identificação pessoal e do(s) seu(s) processo(s). A título de exemplo, para quem ainda não conhecer estas coisas e tiver essa grande curiosidade, é algo como o mostrado abaixo, com o número de preso e do processo assinalados aqui a verde; as secções a vermelho foram censuradas por nós (sim, porque queiramos ou não, hoje ainda existe censura no Sapo Blogs, e não queremos dar-lhes ainda mais razões para chatices), apenas porque é possível que esta pessoa anónima, aqui escolhida completamente ao calhas para este exemplo, ou até alguns dos seus descendentes, ainda estejam vivos:

Um registo de um preso

Continuando, na ficha desse suposto traidor de Humberto Delgado - que também está na Torre do Tombo e digitalizada - não existia apenas um número de registo (como na parte inferior da imagem acima), mas vários. Não conseguimos verificar a totalidade do seu conteúdo - infelizmente, as digitalizações a que tivemos acesso online dizem "informação não disponível" ou "Informação não tratada arquivisticamente" demasiadas vezes - mas um desses números parecia constar no documento que o nosso colega viu. Ou seja, ou ele era parte de um original bem real, ou foi falsificado por alguém que tinha tido um acesso directo a este tipo de informação antes da sua disponibilização ao público em geral, i.e. provavelmente antes do ano de 1994.

 

Acredite-se, nesse sentido, que era um documento completamente real. Afinal, quem traiu Humberto Delgado? Ou, melhor dizendo, a quem é que este documento atribuía essa traição? Discutimos bastante até que ponto deveríamos divulgar essa informação... e se até o podíamos dizer aqui, seria uma resposta um tanto ou quanto chocante, e que também nada acrescentaria ao panorama político, cultural e histórico de Portugal. A pessoa em questão, que até já faleceu, é uma de aquelas com opiniões muito polarizantes em relação a ele, que fizesse o que fizesse continuaria a ser odiada por uns e muito elogiada por outros. Por isso, de nada se adiantaria revelar essa informação - os primeiros diriam que é verdade, que sempre o souberam; enquanto que os segundos iriam exigir todas as provas do universo (e até algumas que só aos deuses pertencem), e nem elas seriam capazes de os convencer; e tudo ficaria na mesma.

 

Para terminar, o que aconteceu ao documento aqui em questão? Será que o podemos mostrar por cá, para que se compreenda melhor o que aconteceu ao General Humberto Delgado? Infelizmente não conseguimos fazê-lo, até porque não temos qualquer cópia - segundo nos foi dito, há já alguns meses o idoso em questão adoeceu e acabou por ser levado para um lar, por razões de saúde. Alguns dias depois os seus filhos deitaram muita papelada e livros fora, pelo que é possível que esse documento estivesse entre muitas dessas coisas que foram deitadas fora. Se sim ou se não, não sabemos de nada disso. Resta a memória do que foi dito e mostrado ao nosso colega, a acreditar-se que a documentação era mesmo verdadeira.

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29 de Junho, 2021

Em busca da lenda da Quinta do Anjo (Palmela)

Há alguns dias vieram-nos perguntar sobre uma possível lenda da Quinta do Anjo, em Palmela. A pessoa estava particularmente interessada nas grutas artificiais - ou hipogeus, se preferirem - existentes no local. Infelizmente não foi possível visitá-las em tempo útil, até em virtude do Covid-19, para escrevermos sobre as mesmas, mas uma outra questão subsistia - afinal, de onde vem o nome dessa tal Quinta do Anjo palmelense (i.e. existem outras em Portugal)? Normalmente não teríamos dificuldade em responder a uma questão como essa, mas a jovem tinha também um pedido adicional, pois queria que também se contassem as fontes precisas usadas para obter essa informação. Tendemos a evitar isso para prevenir roubos de conteúdos, mas a título de exemplo podemos fazê-lo hoje.

A lenda da Quinta do Anjo

Quem for ao site da Junta de Freguesia de Quinta do Anjo poderá encontrar por lá, sem muita dificuldade, dois dados preciosos para esta busca - é revelado que a freguesia apenas nasceu a 10 de Fevereiro de 1928, mas também é contada uma espécie de origem do seu nome:

Diz a lenda que a fonte existente nesta quinta foi protegida por "um anjo bom armado de espada, portanto S. Miguel" [sic], da tentativa de envenenamento pelas forças do mal salvando, assim, as populações que dela viviam. A imagem de pedra e cal que lá existia do anjo armado de espada pisando o dragão esboroou-se em 1985, estando a própria fonte quase seca devido ao abaixamento dos níveis freáticos.

Para a maior parte dos leitores é provável que esta informação fosse mais que suficiente para resolver a curiosidade - caso encerrado...?! Não tanto, porque algo nos parecia estranho em toda esta história - ela não era mais do que uma repetição de representações e lendas famosas, como a de São Jorge, possivelmente apenas com um herói diferente! Por isso, de onde vem essa lenda, tal como apresentada naquela página?

 

Começámos por procurar na obra Portugal Antigo e Moderno, primeiro volume datado de 1873, que refere a existência de uma "Quinta do Anjo" a 3 quilómetros de Palmela. Não lhe associa qualquer espécie de mito ou lenda, dizendo apenas que o local tinha pertencido a D. Luíza de Mello, casada com João de Mello Feo em fins do século XVII, e que o casal - ou assim parece... - erigiu no local uma ermida à Nossa Senhora da Redenção. Quase 2000 páginas depois é adicionado outro facto - por volta de 21 de Outubro de 1877 um tal "Carlos Ribeiro" estava a analisar instrumentos de pedra encontrados numas "furnas" presentes no local. Ou seja, a considerar-se que havia algo de importante na zona, era apenas uma ermida e umas "furnas", sem referência a um qualquer anjo, poço ou fonte.

Porém, tratando-se esta de uma ermida mariana, decidimos consultar o Santuário Mariano, datado de 1707, cujo livro II, capítulo LVI, refere a imagem de Santa Maria presente no interior do recinto. E a informação que nos dá é tão preciosa que achámos que a deveríamos reproduzir parcialmente por aqui. O texto foi apenas adaptado para uma leitura mais fácil nos dias de hoje:

Nesta quinta, a que chamam a Quinta do Anjo, mandou edificar Francisco Coelho de Melo [pai de Luíza]  uma ermida - que é anexa à Paróquia de S. Pedro de Palmela, e são seus padroeiros os senhores do morgado Vila do Anjo, e é ao presente a referida D. Luíza (...) - para colocar nela uma devotíssima imagem de Nossa Senhora que tinha em seu oratório.

O texto continua explicando a origem da imagem que Francisco Coelho de Melo tinha em sua posse, mas nada mais nos diz sobre a própria quinta, alguma fonte de água ou algum anjo. O que é curioso, porque depois o autor acrescenta mais informação, dizendo que haviam três altares no recinto mandado construir por Francisco Coelho de Melo - o altar-mor tinha a representação mencionada acima, enquanto que os outros tinham "um Menino Jesus de grande perfeição" e o "Santo Esposo José". Ou seja, quando foi construída esta ermida, ela não só não tinha qualquer anjo no seu interior (o que faria sentido se algum anjo tivesse anteriormente aparecido no local, e fosse foco de culto entre os seus habitantes), como quem a mandou construir parecia desconhecer por completo qualquer lenda que associasse a própria quinta a um anjo.

 

Portanto, como obteve ela o seu nome? Segundo nos é revelado no texto acima, certamente porque tinham sido padroeiros do local "os senhores do morgado Vila do Anjo", o que contribuiu para explicar o nome da quinta - se lá tivesse mesmo aparecido São Miguel, porquê dar-lhe este nome genérico, em vez de um mais prestigiante "Quinta do Arcanjo" ou "Quinta de São Miguel"? Não faria muito sentido... Mas depois, à medida que as devoções a esta Nossa Senhora da Redenção foram aumentando, é provável que alguém se tenha interrogado sobre o nome do local e, o seu passado então progressivamente esquecido, lá foi adicionada uma imagem de São Miguel Arcanjo ao local. Quando é que isso aconteceu, já lá iremos.

A Quinta do Anjo e a lenda de São Miguel

E, porque São Miguel é frequentemente representado a combater um dragão (que toma as mais diversas formas, desde serpentes até figuras quase humanas), gerou-se entre o povo a ideia de que o evento até tinha acontecido naquele preciso local. Isto torna-se até particularmente mais interessante se tivermos em conta que a representação em questão era, originalmente, a de uma divindade pagã, como cá apresentámos de uma forma muito breve.

 

Agora, certamente que também se poderia perguntar como é que o "Morgado Vila do Anjo" tomou esse nome , mas é uma questão desnecessária, na medida em que quando foi construída a antiga ermida não existia no local qualquer devoção especial a um anjo. Por isso, se a igreja actual é de 1909, faz todo o sentido que a imagem de São Miguel, referida na página da junta de freguesia, tenha sido adicionado ao local nessa altura, até porque por volta de 1873 ainda não parecia existir qualquer lenda que explicasse o nome do local... ou, a existir numa forma puramente oral, só pode ter sido posterior à fundação da antiga Ermida de Nossa Senhora da Redenção, i.e. após inícios do século XVIII, como atestado pelas linhas do Santuário Mariano.

 

Assim sendo, qual é mesmo a lenda da Quinta do Anjo, em Palmela? Parece existir uma lenda associada a ela no século XX, aquela que recordámos ali em cima, mas há que ter em conta que ela é apenas uma história muito recente, com o nome da quinta a vir, na verdade, de uns padroeiros que tinham a sua posse numa data agora incerta, mas anterior a 1707. Nessa data de inícios do século XVIII não existia no local qualquer devoção associada a um anjo ou a um qualquer evento que aí possa ter tomado lugar. É talvez até por isso que o brasão da freguesia, que data de 1994 e que já reproduzimos acima, tem representado apenas dois elementos - a ideia muito vaga de um anjo (que não é identificado ou identificável como São Miguel), e um dos vasos campaniformes encontrados nas grutas do local, em vez de representar um qualquer episódio lendário bem atestado, como no caso da Vila de Moura. Nunca apareceu um anjo no local, muito menos aquele que é provavelmente um dos arcanjos mais famosos.

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29 de Junho, 2021

A lenda da Moura Salúquia

A lenda da Moura Salúquia é certamente bem conhecida em terras de Moura, no distrito português de Beja, mas para quem ainda não a conhecer achámos que a poderíamos recordar aqui hoje.

A lenda da Moura Salúquia

O brasão da vila de Moura - que hoje já é cidade - apresenta-nos essencialmente uma torre e uma figura feminina como que deitada em frente dessa fortificação. Reza então a história que esta mulher, uma moura de nome Salúquia (e filha do governador da cidade), viveu nesta terra em tempos da Reconquista Cristã, tendo-se apaixonado por um homem chamado Bráfama (ou Farbame?), da povoação de Aroche (a cerca de 50 Km de distância, para quem tiver essa curiosidade). Um dia os Cristãos mataram-no, tomaram as roupas deste amado e da sua comitiva, e dirigiram-se para a povoação que hoje é Moura. Salúquia, vendo-os à distância, pensou tratar-se de Bráfama e ordenou que se abrissem as portas da cidade. Face a essa inatenção, os combatentes cristãos entraram facilmente na povoação e conseguiram conquistá-la sem qualquer dificuldade. Então, notando o que tinha causado, em plena infelicidade esta moura subiu à torre do castelo e suicidou-se; a memória da bela moura, suicidária por amor, perdurou na cultura local, e então a povoação mudou o seu nome islâmico, que parece ter sido Al-Manijah, para o actual.

 

Mas então... porque recebeu a povoação o nome de "Moura", e não Salúquia? Visto que, face ao contexto de toda esta lenda, se pode depreender que o nome foi alterado por Cristãos, é provável que o nome original se tenha perdido progressivamente ao longo do tempo, ou que o nomeador desconhecesse o nome da falecida, mas pretendesse homenageá-la pelo precioso "auxílio" que deu à conquista do local. Esta segunda hipótese é certamente possível, a acreditar-se nos eventos que comportam esta lenda da Moura Salúquia, que continua a viver nos nossos dias na memória dos habitantes da cidade!

Ao mesmo tempo, é curiosa a apresentação desta personagem principal como uma islâmica que também amou um praticante da mesma religião. Em muitas outras lendas de Mouros e Cristãos, é muito mais comum que se apaixonem por cavaleiros da outra religião, acabando até por trair a sua cidade por amor. Aqui, a povoação é traída, sim, mas de forma quase acidental por Salúquia, e ela depressa se prontifica a pagar o preço da sua acção (algumas versões até acrescentam que tudo isto teve lugar no dia em que ela pensava ir casar-se, o que ainda enfatiza mais o seu sofrimento). Recordando Fernando Pessa, quase que apetece brincar-se um pouco e dizer "E esta, hein?!"

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27 de Junho, 2021

Ala dos Namorados, Doze de Inglaterra e os Magriços - três lendas

Se hoje em dia a Ala dos Namorados, os Doze de Inglaterra e os Magriços ainda nos são conhecidos, são-no por razões muito diferentes das presentes nas lendas originais. A primeira é (agora) uma banda musical, aparentemente criada em 1992-1993, enquanto que os últimos nos são recordados quase sempre como o nome dado à selecção nacional de futebol no Mundial de 1966. Nesse sentido, se há alguns dias trocámos algumas mensagens virtuais com um Sportinguista, e até porque a selecção nacional joga hoje, decidimos que podíamos contar as lendas por detrás destes dois nomes, hoje já muito esquecidas, mas ainda ligadas substancialmente à cultura nacional.

A lenda da Ala dos Namorados

A lenda da Ala dos Namorados

A lenda em questão conta-nos que em finais do século XIV teve lugar em Portugal a famosa Batalha de Aljubarrota, semente de incontáveis lendas nacionais, como a da Espada do Condestável ou a da famosa Padeira. Se a batalha, em si própria, é um facto completamente histórico, já esta breve história adiciona-lhe algo menos certo - diz que uma das alas, i.e. das laterais (se a esquerda, ou a direita, isso parece variar mediante a fonte consultada), da famosa Táctica do Quadrado era chamada a "Ala dos Namorados", em virtude do facto de ser composta quase somente por namorados, no sentido de homens jovens que estavam em idade de casar mas ainda não o tinham feito. Não sabemos se todos eles já tinham prometido casamento a alguém, mas diz-se que pelo menos alguns deles combatiam não só pela sua pátria, mas também pelo amor das mulheres que amavam e com quem esperavam vir a casar. Sabemos que o seu alferes era Álvaro Anes de Sernache, enquanto que os capitões eram Rui Mendes de Vasconcelos e Mem Rodrigues de Vasconcelos, seu irmão. Mas toda essa história ainda não fica por aqui...

A lenda dos Doze de Inglaterra (e o Magriço)

A lenda dos Doze de Inglaterra (e o Magriço)

Esta lenda é uma espécie de sequela da anterior. Diz-nos que alguns anos depois doze damas inglesas foram insultadas por cavaleiros de Inglaterra, e então elas pediram ajuda aos Portugueses para defenderem as suas honras. Doze cavaleiros da então-famosa ala foram escolhidos para a tarefa, onze partiram por mar, enquanto que um outro, Álvaro Gonçalves Coutinho, conhecido como o [Grão] Magriço, viajou por terra, teve muitas aventuras e chegou a Inglaterra no momento em que mais precisavam dele, quando 11 Portugueses, então muito preocupados, se preparavam para combater contra os 12 Ingleses. Os primeiros venceram a batalha (como seria óbvio numa lenda nacional), e ficaram assim conhecidos como os "doze de Inglaterra", ou seja, aquela dúzia de cavaleiros que foi a esse país e dele voltaram vitoriosos. A selecção nacional não conseguiu, como é bem sabido, repetir o feito lendário.

 

Agora, se desconhecemos o porquê da banda ter tomado o respectivo nome, porque tomou a selecção nacional de futebol no Mundial de 1966 o nome de Magriços? A segunda lenda de que aqui falámos é antiga, mas é aludida no canto sexto dos Lusíadas, de onde provavelmente a conheciam em meados do século XX - e, de facto, o que o jornal desportivo A Bola escreveu na altura parece confirmar completamente essa ligação:

Parece-nos, de facto, muito apropriada a ideia na medida daquilo que o "Grão Magriço" representa, o belo episódio de suspense que Luís de Camões canta em Os Lusíadas, um autêntico desportista que vai jogar a Inglaterra... e até ganhar!

Assim, por muito que lendas como estas - da Ala dos Namorados, Doze de Inglaterra e os Magriços - estejam cada vez mais esquecidas, é curioso constatar que subsistem na cultura dos nossos dias de hoje, mesmo com uma ligação um pouco ténue face ao seu significado original. Não deixa de ser interessante, até porque, em casos como estes, poderão levar as pessoas a uma busca pelo seu significado original...

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26 de Junho, 2021

A lenda do Anel da Bênção

A lenda do Anel da Bênção parece ser uma que está muito esquecida nos nossos dias de hoje. Para a conseguirmos encontrar tivemos de ir a inícios do século XVIII, a uma obra do Padre Manuel Bernardes, em que estão contidas muitas outras histórias com objectivos morais. É uma pequena história nacional, que parece datar da Idade Média - quanto mais não seja, note-se a referência aos "Mouros" - e que pelo facto de já ser muito pouco conhecida optamos aqui por reproduzir nas palavras desse autor, somente com algumas pequenas adaptações, até para que possa ser lida mais facilmente nos nossos dias de hoje:

Conta-se de D. Fernando Anes de Lima, filho de João Fernandes de Lima, progenitor da nobilíssima família dos Limas, que viu uma vez lutar uma cobra contra duas doninhas, quanto esta tentava entrar na cova onde tinham os filhos; as quais ora juntas, ora alternando-se, sustentavam a batalha e defendiam a entrada. E as feridas [das doninhas] curavam-se ao rolarem-se numa moita de saramago que ali estava, e mastigando o saramago, e logo tornavam à peleja reanimadas. Porém, acabaram por ser vencidas e afugentadas; aquele Capitão, que assistia curioso, desejando ver em que parava esta briga, compadeceu-se da parte mais fraca e matou a cobra com o bastão. E voltando para a barraca que tinha em campo contra os Mouros, contou ali o sucedido aos camaradas. Eis que no meio da prática veio uma das doninhas pelo meio da gente, trazendo na boca uma pedra preciosa, e a foi pôr aos pés do seu libertador. A qual ele encastrou num anel e deixou com a sua bênção na casa dos Limas, morgado que é dos Viscondes de Vila Nova de Cerveira, onde é estimado, e chamado por esta causa, "o Anel da Benção".

A lenda do Anel da Bênção - este não é o original

Este Fernando Anes de Lima, segundo conseguimos descobrir, nasceu em Espanha no final do século XIV, mas depois veio para Portugal, sendo até possível que toda esta história tenha algum fundo de verdade. É provável que este Anel da Benção até tenha existido - com ou sem doninhas à mistura - mas não conseguimos descobrir o que foi feito dele. Provavelmente perdeu esta sua designação, tornou-se um mero anel como tantos outros, agora esquecido numa qualquer gaveta de um museu do norte de Portugal, mas mais do que isso não fomos capazes de descobrir. Como esta lenda do Anel da Bênção, também o próprio anel parece ter caído no maior dos esquecimentos...

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25 de Junho, 2021

O Castelo de Bimberimbelo

O Castelo de Bimberimbelo insere-se num conjunto de tradições populares que, muito infelizmente, se foram perdendo ao longo dos anos. Cada vez se contam menos histórias, e cada vez os mais novos parecem ter menos interesse em ouvir e repetir aquelas que os seus antecessores ouviam e contavam entre si. Claro que se conhecem cada vez mais as histórias como a da Pequena Sereia, da Cinderela ou da Bela e o Monstro, em versões estáticas e higienizadas para os nossos dias, mas como exemplos (nacionais) como o da Carochinha e o João Ratão nos permitem constatar, há cada vez mais histórias a serem simplificadas ou esquecidas. O tema de hoje cai nesse mesmo problema, por apresentar uma espécie de jogo, ou lengalenga, que se foi esquecendo ao longo do tempo.

Tudo começava com um conjunto simples de versos:

Aqui está a porta
Do Castelo
De Bimberimbelo.

Depois, uma segunda pessoa adicionava um novo verso ao seu início, mantendo o esquema estável:

Aqui está a chave
Que abre a porta
Do Castelo
De Bimberimbelo.

Em seguida, era adicionado mais um verso,  não esquecendo os anteriores, assim:

Aqui está o cordel
Que prende a chave
Que abre a porta
Do Castelo
De Bimberimbelo.

E essa espécie de jogo ia sendo continuada, recorrendo-se à imaginação de cada ou repetindo apenas os versos tradicionais, até que se tivesse uma trama impossível de continuar, como neste exemplo:

Aqui está a morte
Que levou o carniceiro
Que matou o boi
Que bebeu a água
Que apagou o lume
Que queimou o pau
Que bateu no cão
Que mordeu o gato
Que comeu o rato
Que roeu o cebo
Que unta o cordel
Que prende a chave
Que abre a porta
Do Castelo
De Bimberimbelo.

E então, podia até concluir-se com algo como:

Aqui está a morte
Que levou o carniceiro
E que nos entrega a chave
Do Castelo
De Bimberimbelo.

Jogos como estes permitiam não só treinar a memória, mas também divertir a pequenada. Ajudavam a passar o tempo, numa altura em que não existiam ainda telemóveis e outras coisas que tais. Agora andam cada vez mais esquecidos, e mesmo uma pesquisa online já só revela uma versão preservada numa das obras de Teófilo Braga. Mais cedo ou mais tarde, jogos como esses acabarão por desaparecer completamente...

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23 de Junho, 2021

Qual a cidade mais antiga de Portugal?

O tema da cidade mais antiga de Portugal é um de aqueles que se suporia que nos nossos dias de hoje seria fácil de resolver. É, pensará a maior parte das pessoas, somente questão de se abrir um qualquer motor de busca e digitar meia dúzia de palavras por lá. Depois, dependendo do resultado em que se carrega, poderão encontrar-se referências a ela como se tratando de Braga (i.e. Bracara Augusta), Évora (i.e. Ebora Cerealis) ou Lisboa, entre muitas outras. Ou seja, são nomeados diversos locais, todos eles anteriores à nacionalidade, mas nunca é dito concretamente qual delas corresponde ao que procuramos. Ao mesmo tempo, sabemos que existem povoações muito antigas em Portugal - bastará recordar-se a presença de um antigo santuário a Endovélico no Alentejo, para se presumir que também existiu uma qualquer povoação por perto - pelo que é provável que existissem povoações, ou até mesmo cidades da altura, que entretanto foram esquecidas - relembre-se que até já cá falámos de algumas delas, no contexto árabe. Mas, então, qual é mesmo essa cidade mais antiga de Portugal?

Será esta a cidade mais antiga de Portugal?

Segundo a Monarchia Lusytana, uma curiosa obra escrita no Mosteiro de Alcobaça em finais do século XVI, a cidade mais antiga de Portugal - e até uma das mais antigas do mundo - era... Setúbal! E porquê essa? Segundo o autor, nessa obra que se propõe a contar a história do nosso país desde o início do mundo até ao século em que foi escrita, a cidade foi fundada por Túbal, neto de Noé, que em busca de um local em que viver, após aquele enorme e famoso dilúvio bíblico, atracou na região e a viu como um excelente local para se estabelecer. E, se prestarem atenção, o seu nome até aparece associado ao da própria povoação, Setúbal. De que mais provas precisam?

Bem, na verdade, certamente que uma questão se impõe - como é que um autor do século XVI sabia isto? A informação não aparece em textos da Antiguidade, nem na Bíblia... acreditando que não é mentira, uma mera invenção por parte do autor nacional, de onde vem ela? De facto, para nosso grande contentamento, o autor português, Frei Bernardo de Brito, diz-nos directamente a suas fontes literárias, e atribui esta informação a Beroso, autor do século III a.C. Contudo, quem a for procurar nas obras de Beroso que nos estão acessíveis não encontrará lá nada... "estranho", certamente, até que se entenda um problema completamente inesperado.

 

Na mesma obra, Frei Bernardo de Brito também atribuiu muita informação a um tal "Viterbo", i.e. João Ânio de Viterbo, autor do século XV, que um dia supostamente encontrou um conjunto enorme de autores históricos (perdidos) numa região do norte de Itália. E, curiosamente, entre eles contava-se a obra histórica de Beroso. Seria verdade? Posteriormente veio a apurar-se que não, que era tudo uma falsificação, possivelmente até pela mão do próprio Viterbo, mas ainda assim as suas supostas "descobertas" acabaram por marcar a História europeia durante pelo menos um século, como podemos aperceber-nos através das linhas presentes no autor nacional mencionado acima. Ou seja, se Setúbal era mesmo a cidade mais antiga de Portugal (e, relembre-se, até uma das mais antigas do mundo), era-o somente com base em informação inventada no século XV e que não encontramos atestadas em nenhuma obra histórica anterior à de João Ânio de Viterbo.

Lisboa, cidade mais antiga de Portugal?

Deixando então de lado essa estranha possibilidade, é provável que a cidade mais antiga de Portugal tenha sido Lisboa. Ou, pelo menos, é o que pareciam pensar os autores latinos da Antiguidade, como Estrabão. A acreditarmos no mito de que ela foi fundada por Ulisses, tratar-se-ia, muito provavelmente, de um local ainda datado da mítica Idade dos Heróis, de um tempo indefinido em que a grande memória de Tróia* ainda povoava o imaginário popular. E, a termos de escolher uma cidade a que atribuir essa espécie de galardão, seria portanto essa a melhor opção, ou pelo menos aquela que é a mais suportada em informações, supostamente credíveis, de tempos da Antiguidade Clássica. Se existiam cidades ainda mais antigas, como o Santuário de Endovélico nos poderá fazer crer, os seus verdadeiros nomes, localizações e grandes histórias foram sendo perdidos nas areias do tempo...

 

 

*- Sobre Tróia, a pequena povoação portuguesa próxima de Setúbal, é curioso que Frei Bernardo de Brito também se refira a ela, dizendo que foi fundada posteriormente e tomou este nome por terem existido na zona muralhas enormes, como as atribuídas nos mitos gregos e latinos à grande cidade dos Poemas Homéricos. Ninguém parece ter assumido que fosse "A" verdadeira cidade de Príamo, como é óbvio, mas pode ter recebido o seu nome por relação com o local que Heinrich Schliemann pensou ter redescoberto.

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21 de Junho, 2021

Dois feitiços mágicos em Português

Como já cá foi dito antes, Luís de La Penha, o bruxo de Évora, é discutivelmente o mais famoso dos bruxos que já viveram em Portugal. Assim, para apresentarmos cá dois feitiços mágicos em Português, achámos que seria correcto que recorrêssemos ao seu conhecimento. Claro que potenciais livros da sua autoria não chegaram aos nossos dias; porém, conforme referido anteriormente, ele foi interrogado várias vezes pela Inquisição. Através dos documentos legais que nos chegaram, que apresentam esses interrogatórios e todas as provas recolhidas contra o réu, podemos aceder a algum do seu conhecimento das artes mágicas.

Dois feitiços mágicos em Português, associados a Luís de la Penha

Este primeiro feitiço, também conhecido como "Ensalmo do Asno", destinava-se a fazer com que os outros obedeçam ao que lhes pedimos. Preserva-nos um exemplo de aquilo que é chamado "magia por simpatia" (o conceito já foi cá explicado antes), na medida que o destinatário é equiparado a um burro e, como tal, instado a agir como o próprio afinal o faria:

Asno és e filho de burra,
Assim como este asno,
Esta burra não pode estar
Sem albarda
E silha e sobrecarga;
Assim como comer
Isto que aqui trago
Se torne burra e asno
E ande a meu mandado,
E me suba pelos pés,
E me ponha na cabeça.

Este segundo feitiço é mais curioso, porque é o tipo de coisa que se vê muito na cultura popular dos nossos dias. Se acreditam nessas coisas - e já cá falámos do Espiritismo anteriormente - certamente que já se interrogaram sobre como é possível evocar o espírito dos mortos. Ora bem, uma potencial resposta também é dada por Luís de La Penha. Segundo ele, uma pessoa deve começar por colocar-se em pé, com uma vela acesa em frente a si, e enquanto se prepara para rezar trinta e três Credos, trinta e três Avé Marias e trinta e três Pais Nossos, deve dizer o seguinte:

Deus é luz
Luz é Deus
Requiescant in pace
Pelos fiéis de Deus.

Quanto terminar todas essas rezas - atente-se ao número simbólico de repetições que todo o processo exige - deverá então dizer o seguinte:

Alma santa desamparada
A este mundo sejas tornada
E de Deus sejas desconjurada;
Por aqueles desejos, ardores e fervores
Que tendes de ver a Deus Nosso Senhor,
Vos peço me venhais falar,
Me respondeis ao que souberdes;
E isto que aqui rezo
Não vo-lo ofereço, nem vo-lo dou
Até me não virdes falar;
E se me vierdes falar
Dar-vos-ei tudo
O que até agora rezei,
E me pedirdes.
Amén.

Esta ideia, da evocação dos espíritos como uma espécie de troca comercial com eles, é na verdade muito, muito antiga - ela já aparecia até na Odisseia de Homero, em que numa dada altura o herói tenta falar com os mortos, para tal "subornando-os" com um preço de sangue. Momentos semelhantes já existiam até em papiros mágicos na Antiguidade, tal como continuam a existir em religiões dos nossos dias, como o Candomblé, em que os espíritos são "convencidos" a tomar determinados caminhos por uma espécie de "subornos".

 

Agora, claro que estes dois feitiços mágicos em Português não são todos aqueles que nos chegaram associados a Luís de La Penha, mas captam duas visões muito distintas da Magia, que se mantiveram relativamente estáveis ao longo dos séculos. Mudam os nomes, mas os rituais até se repetem - num potencial terceiro exemplo, o mesmo bruxo evoca uma tal "Santa Maruta", que na verdade não é mais que Marut, um dos anjos apresentados no Corão, cujo significado original já parecia ter sido esquecido no Portugal do século XVII. E, por erros como esses, se vão criando novas figuras veneráveis, mas a teoria por detrás destes rituais, em si próprios, foi-se mantendo quase igual ao longo dos séculos...

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20 de Junho, 2021

A lenda da Nau Catrineta (ou Catarineta)

A lenda da Nau Catrineta (ou Catarineta, como é conhecida no Brasil) é um exemplo curioso da forma como as histórias podem ir evoluindo ao longo dos tempos. Não sabemos se se baseia num evento real - Almeida Garrett defendeu que sim, que nasceu de um naufrágio por que um tal Jorge de Albuquerque Mendes passou em 1565 - mas o que é particularmente digno de nota é o facto de, em outros tempos, terem sido encontradas diversas versões em Portugal e no Brasil. Elas começam quase sempre de uma forma semelhante, salvo uma ou outra adição de versos - uma nau anda perdida no mar, quase sem comida, até que em virtude da fome comum dos tripulantes eles decidem matar um deles, escolhido à sorte (não é totalmente claro se pretendiam reduzir o número de tripulantes ou comer o contemplado...). Foi seleccionado "o capitão general", que então pede, possivelmente pela última vez, a um subalterno que tente avistar terra. E ele até o consegue fazer, pelo que esse capitão general lhe oferece uma recompensa. Mas depois, o que acontece nessa sequência final já tende a variar significativamente. Já lá iremos, por agora recorde-se o segmento principal do famoso poema, na versão de Almeida Garrett:

A lenda da Nau Catrineta (ou Catarineta)

Lá vem a Nau Catrineta,
que tem muito que contar!
Ouvide, agora, senhores,
Uma história de pasmar.

Passava mais de ano e dia,
que iam na volta do mar.
Já não tinham que comer,
nem tão pouco que manjar.
Deitaram sola de molho,
para o outro dia jantar;
Mas a sola era tão rija,
que a não puderam tragar.
Deitaram sortes à ventura
qual se havia de matar;
Logo a sorte foi cair
no capitão general.

"Sobe, sobe, marujinho,
Àquele mastro real,
Vê se vês terras de Espanha,
As praias de Portugal."
"Não vejo terras de Espanha,
nem praias de Portugal.
Vejo sete espadas nuas,
que estão para te matar."

"Acima, acima, gajeiro,
acima ao tope real!
Olha se enxergas Espanha,
Areias de Portugal."
"Alvíssaras, capitão,
meu capitão general!
Já vejo terras de Espanha
areias de Portugal.
Mais enxergo três meninas,
debaixo de um laranjal.
Uma sentada a coser,
outra na roca a fiar,
A mais formosa de todas,
está no meio a chorar."

"Todas três são minhas filhas,
Oh! quem mas dera abraçar!
A mais formosa de todas
Contigo a hei-de casar."
"A vossa filha não quero,
Que vos custou a criar."
(...)

Se até aqui as diversas versões são relativamente estáveis, salvo a introdução ou omissão de alguns versos secundários, o capitão faz depois diversas ofertas ao seu marujo, que as rejeita sucessivamente. Até que surge à baila a própria nau.

Numa versão, o capitão oferece-a a quem o salvou. A oferta é rejeitada, tal como as que tinham aparecido anteriormente. Assim, face à estranheza da situação - supõe-se que fosse uma excelente nau - o oferecedor pergunta, afinal, que recompensa o seu camarada pretende - Capitão, quero a tua alma,/ para comigo a levar. Naturalmente que esse pedido é rejeitado. Então, o marujo revela-se rapidamente como um demónio, desaparece, o tempo acalma e a nau lá atraca em Portugal.

Mas numa outra, a nau não é oferecida directamente. Após várias ofertas, o capitão lá pergunta que recompensa o seu companheiro pretendia, e recebe a seguinte resposta - Eu quero a Nau Catrineta,/para nela navegar. Também aqui o pedido é rejeitado, mas por uma razão diferente - A Nau Catrineta/é d'el-rei de Portugal,/Mas ou eu não sou quem sou,/Ou el-rei ta há-de dar, ou então Pede-a tu a el-rei, gajeiro,/Que ta não pode negar.

 

Certamente que existem muitas outras versões de toda esta lenda, mas aqui apenas mencionamos as referidas por Almeida Garrett, que são provavelmente as versões escritas mais antigas que nos chegaram. Nesse sentido, parece que já nessa altura, mediante a região em que toda esta história era contada, as suas linhas gerais eram bastante semelhantes mas o final variava significativamente. A título de exemplo dessas inconstâncias entre versões, numa delas a fome dos navegantes era tal que acaba por ser ilustrada ao ouvinte com estas estranhas palavras, que ainda mais nos sugerem que os navegantes pretendiam comer um feliz contemplado:

Já não tinham que comer,
nem tão pouco que manjar.

Já mataram o seu galo,
que tinham para cantar.
Já mataram o seu cão,
que tinham para ladrar.

Já não tinham que comer,
nem tão pouco que manjar.

Não se trata de uma qualquer espécie de censura, como quando alguns maluquinhos dos nossos dias desejaram alterar a cantiga do Atirei o Pau ao Gato, mas um puro fruto da transmissão oral de uma mesma trama original. Alguém a criou - uma versão de toda esta lenda diz até que terá sido o próprio Jorge de Albuquerque Mendes - mas à medida que foi passando de boca em boca foi sofrendo as alterações naturais de uma transmissão oral. Ao mesmo tempo, é certo que algumas pessoas mais religiosas poderão ter sentido a necessidade de não incluir o nome do mafarrico em toda a história, o que poderá ter contribuído para a sua omissão nesta aventura... ou, melhor dizendo, talvez não tanto "omissão", mas não-inclusão, pois não sabemos qual dos dois finais se aproxima mais da versão composta pelo autor original. O que sabemos, no entanto, é que toda esta lenda se manteve relativamente popular até aos nossos dias, tanto nas mesas de escola como em adaptações para os nossos dias, como a seguinte, de Fausto Bordalo Dias, que esperamos que gostem de recordar, neste final das linhas de hoje:

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18 de Junho, 2021

Sobre a "História da Donzela Teodora"

A História da Donzela Teodora foi publicada em Portugal em meados do século XVIII, mas já na altura se dizia tratar-se de uma tradução, do Castelhano, feita por um Carlos Ferreira. Foi, nessa altura, uma obra relativamente popular, até sendo posteriormente recriada em verso no Brasil (por Leandro Gomes de Barros), mas o que poucos pareciam saber - ou importar-se - é que se tratava de uma obra com já vários séculos, adaptada de um original medieval islâmico. Mas já lá iremos!

A História da Donzela Teodora, capa

De que fala esta História da Donzela Teodora? Numa breve introdução, a misteriosa donzela que ficará conhecida como Teodora foi encontrada num mercado de escravos e comprada por um mercador, que depois tratou de a educar em todas as sete Artes Liberais (e mais algumas). Depois, quando perdeu a sua fortuna, por sugestão de Teodora este pai adoptivo considerou vendê-la a um rei local por um preço bastante elevado. Estranhando a enorme soma pedida pelo homem, o rei decidiu então testar o valor da dama, fazendo-a confrontar-se com os três maiores sábios da corte. Segue-se uma sequência em que cada um dos três faz perguntas à jovem, até que, vencidos, todos eles admitem a superioridade do conhecimento de aquela que lhes respondia. Depois, completamente impressionado, não só o rei paga o enorme preço que tinha sido pedido pela jovem, como até a deixa voltar a casa com o pai adoptivo, não desejando ficar com ela para si mesmo.

 

Como se pode ver a trama da obra é relativamente simples, mas o cerne de toda a aventura são claramente as três sequências de perguntas feitas à jovem. Entre os originais islâmicos e as versões ibéricas essas questões parecem ter sido adaptadas, o que é relativamente fácil de fazer, já que os seus conteúdos não eram parte integrante da trama, podendo por isso ser modificados para incluir muitos outros temas. Na versão que lemos, por exemplo, o primeiro sábio faz-lhe perguntas sobre Astrologia; o segundo, entre outras coisas, pergunta-lhe no que consiste a beleza de uma mulher; enquanto que o terceiro, o mais pujante da tríade, lhe faz perguntas verdadeiramente intrigantes. Até podemos aqui dar alguns exemplos:

Qual é a coisa mais violenta, mais ardente, e que queima mais que o fogo?
Qual é a coisa mais doce que o mel?
Qual é a coisa mais dura que o ferro?
Qual é a ave que anda pelos montes e tem oito finais que outros grandes animais têm?
Que coisa é o Homem? E a Mulher?
Qual é a coisa mais rápida do mundo?
Qual é o maior dos prazeres?
Quais são os que nasceram mas não morrerão até ao fim do mundo?
Quais são os piores e principais pecados?
Qual é o melhor dia da semana? [Sexta-feira, por cinco razões, para quem tiver essa curiosidade.]

As respostas, se as quiserem, poderão encontrá-las na obra (está disponível gratuitamente nesta ligação), mas preste-se atenção ao facto de algumas das questões serem do âmbito cristão; na versão original naturalmente que ainda não existiam, elas nasceram da substituição do conteúdo islâmico e oriental original a um novo contexto, em que já não faziam muito sentido.

 

Para terminar, devemos dizer que esta História da Donzela Teodora é uma obra relativamente interessante. Talvez seja por isso que no Brasil Leandro Gomes de Barros a adaptou para versos, mantendo essencialmente a trama da versão disponível em Portugal. Com cerca de 30 páginas, esta é uma obra que tanto diverte um pouco como dá que pensar, mesmo nos dias de hoje, e que por isso mereceu ser relembrada nos dias de hoje.

 

P.S.- Esta obra não deve ser confundida com outra um pouco anterior, a histórica Vida da Imperatriz Teodora, de Duarte Ribeiro de Macedo, que conta simplificadamente as vidas de Teófilo e Teodora no Império Bizantino do século IX, e que até reconta parte da história de Cássia...

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