A lenda do Bispo Negro
A lenda do Bispo Negro é provavelmente uma das mais antigas de Portugal, mas é hoje particularmente famosa de um relato que nos chegou preservado por Alexandre Herculano, que mantém as linhas gerais das versões mais antigas da lenda. Assim, e a acreditar-se em toda esta história, ela tomou lugar no século XII da nossa era, mas só aparece atestada por escrito mais tarde - a versão que lemos é já de finais do século XVI. Assim sendo, não temos provas reais de que esta lenda do Bispo Negro tenha algum fundo de verdade, mas certamente que a podemos recordar por aqui:
Conta-se então que após os seus muitos combates Dom Afonso Henriques capturou a própria mãe - já cá falámos disso recentemente - e recusou libertá-la, por muitas vezes que isso lhe fosse pedido. Assim, a mando do Papa, o bispo de Coimbra exigiu-lhe a libertação de Dona Teresa, sob pena de excomunhão. Mas o rei, não desejando ainda soltar aquela que o deu à luz, recusou esse pedido, e foi então excomungado. Zangado com toda a situação - na verdade, que tinha o Papa de se intrometer na política nacional? - o nosso monarca decidiu nomear um novo bispo para Coimbra. Ninguém aceitou tomar o lugar, até que Afonso Henriques lá elegeu para esse lugar um tal Suleima (ou Martinho, filho de Suleima, segundo outra versão) para o lugar; isto pouco teria digno de nota, não fosse o facto de ele se tratar de um bispo negro, uma coisa nunca vista até então.
A lenda continua dizendo que, face a esse desrespeito contínuo pelas ordens do Papa, todo o reino de Portugal foi então excomungado, até que Dom Afonso Henriques lá se zangou com tudo isto e ameaçou um legado papal, resolvendo com essas suas acções toda a situação e repondo a normalidade religiosa do país. Porém, não sabemos se o nosso primeiro rei lá libertou Teresa de Leão, sua mãe, ou se manteve o bispado de Coimbra nas mãos de Dom Suleima...
Para nós, hoje, toda esta lenda poderá apresentar pouco motivo para qualquer controvérsia, até que se entenda a razão de todo o problema - o nome Suleima, dado quase sempre a este bispo (ou ao seu pai...), indica claramente que este se tratava de uma figura de ascendência árabe. Naturalmente que agora era Cristão, tinha professado uma vida religiosa (ou nem poderia ser bispo, como é óbvio), mas, no mínimo dos mínimos, com base na informação que temos podemos afirmar que ou ele era filho de um árabe, ou já tinha até praticado o Islamismo. E, como tal, no contexto cultural da época não seria certamente a melhor opção para tomar aquela posição religiosa, sugerindo até que o rei de Portugal poderia ter tornado bispo um islâmico - uma ideia tão absurda hoje como há quase 1000 anos atrás, não tanto pela cor negra da sua pele, mas por todo o estereótipo que o seu nome pode conjurar. Seria como se, nos nossos dias de hoje, fosse anunciado que o padre de uma determinada paróquia mais envelhecida ia ser não um Francisco, ou um João, mas um Mohammed Bin Salman... certamente que as pessoas mais tradicionais poderiam ver algo de errado nisso, não é?
Frise-se, neste sentido, que não sabemos se esta lenda do Bispo Negro nos preserva acontecimentos com algum fundo de verdade. Alexandre Herculano parece ter pensado que não. Por via das dúvidas, fomos confirmar os bispos de Coimbra durante o reinado do nosso Dom Afonso I - i.e. especialmente entre os anos de 1128 e 1185 - e se nos restantes nada encontrámos que indicie a existência de uma figura como a que procurámos, já no ano de 1182 foi eleito um tal "D. Pedro". Ele parece ter sido bispo por menos de um ano, e a informação da Diocese de Coimbra apenas nos diz, em relação a ele, que se tratou do "segundo deste nome" (i.e. o segundo bispo da cidade que teve o nome de Pedro). O que é um pouco estranho, visto que a mesma fonte parece apresentar informações mais significativas em relação aos outros prelados da mesma cidade e do mesmo espaço de tempo, mas quase nada nos diz sobre este - terá sido ele esquecido, como tantos outros factos associados à mesma cidade? Ou terá sido ele a misteriosa figura a dar azo a esta história, uma espécie de Papisa Joana nacional?
A resposta, como sempre nestas coisas, fica para quem for ler estas linhas...