Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Mitologia em Português

14 de Junho, 2021

Qual a origem dos cognomes dos reis?

Hoje descortinamos a origem dos cognomes dos reis de Portugal, que sempre nos pareceu tratar-se de um grande mistério. Se, por exemplo, em Espanha o rei Henrique IV teve a alcunha de "O Impotente", dificilmente esse nome lhe poderia ter sido dado em vida, até porque o monarca jamais toleraria que um qualquer cronista se referisse a ele pela sua (suposta) incapacidade de gerar prole - como foi então possível que ele recebesse esse nome? Já lá iremos; por agora, e segundo informação oficial da Casa Real Portuguesa, em Portugal tivemos os seguintes monarcas, cujos respectivos cognomes também recordamos aqui:

Os cognomes dos reis, e sua origem

D. Afonso Henriques "O Conquistador"
D. Sancho I "O Povoador"
D. Afonso II "O Gordo"
D. Sancho II "O Capelo"
D. Afonso III "O Bolonhês"
D. Dinis I "O Lavrador"
D. Afonso IV "O Bravo"
D. Pedro I "O Justiceiro"
D. Fernando I "O Formoso"
D. João I "O de Boa Memória"
D. Duarte I "O Eloquente"
D. Afonso V "O Africano"
D. João II "O Príncipe Perfeito"
D. Manuel I "O Venturoso"
D. João III "O Piedoso"
D. Sebastião I "O Desejado"
D. Henrique I "O Casto"
D. António I "O Determinado"
D. Filipe I "O Prudente"
D. Filipe II "O Pio"
D. Filipe III "O Grande"
D. João IV "O Restaurador"
D. Afonso VI "O Vitorioso"
D. Pedro II "O Pacífico"
D. João V "O Magnânimo"*
D. José I "O Reformador"*
D. Maria I "A Piedosa"
D. João VI "O Clemente"
D. Pedro IV "O Rei Soldado"
D. Miguel I "O Tradicionalista"
D. Maria II "A Educadora"
D. Pedro V "O Esperançoso"
D. Luís I "O Popular"
D. Carlos I "O Martirizado"
D. Manuel II "O Rei Saudade"

O significado por detrás de cada um destes cognomes é relativamente fácil de se compreender, dados os feitos e vidas dos respectivos monarcas, mas há sempre alguma margem para dúvidas entre eles - por exemplo, Dom Sebastião chegou-nos como "O Desejado" porque sem ele não teria havido um herdeiro para o trono nacional, ou porque após o seu desaparecimento foram muitos os que desejaram o seu regresso? Não é totalmente claro, excepto se for explorada a origem dos cognomes dos reis. Mas, então, qual é mesmo ela?

 

Se inicialmente não saberíamos o que responder a essa questão, há algumas semanas passou-nos pelas mãos um manuscrito que nos deixou a pensar, o Livro das Linhagens de Portugal da autoria de Damião de Góis, que viveu no século XVI. Trata-se essencialmente de uma obra que referencia os casamentos e uniões da família real e das principais famílias nacionais, de que podemos até aqui mostrar um pequeno fragmento:

O Livro das Linhagens de Portugal, de Damião de Góis

Nesta obra, se o autor não dá qualquer alcunha aos primeiros monarcas do nosso país (e se alguém as soubesse seria certamente ele, até por se tratar de um historiador eminente), quando introduz o terceiro rei de Portugal refere-se a ele como "El Rey D. Afonso o Segundo o gordo filho de el Rey D. Sancho o Primeiro". Pouco depois, em relação à sequência sobre o quarto rei de Portugal, e como até pode ser visto na imagem acima, dá-lhe o título "El Rey D. Sancho Segundo o Capelo" e prossegue as suas linhas dizendo "El Rey Dom Sancho o Segundo, de alcunha o Capelo (...)". No mesmo parágrafo afirma ainda que a esposa do rei, uma tal Mécia Lopes de Haro, foi anteriormente casada com "Álvaro Peres de Castro (...) de alcunha o Castelão".

Estes breves momentos da obra permitem-nos saber um pouco sobre a origem dos cognomes dos reis portugueses. Primeiro, para quem ainda não o saiba, um cognome é apenas uma alcunha - o que, por definição, é inventada por alguém mas eventualmente partilhada entre muitos. Depois, este famoso historiador nacional conhecia designações para alguns monarcas, mas não para todos eles. E, em terceiro lugar, não eram apenas os reis que tinham essas suas alcunhas, mas também alguns nobres e cavaleiros (e.g. relembre-se que Dom Quixote era "o Cavaleiro da Triste Figura"), sendo que as dos monarcas nos terão chegado devido à importância que estes tiveram ao longo dos séculos. Portanto, o que nos diz tudo isto?

 

A origem dos cognomes dos reis vem certamente do povo da altura, estando mais fixamente associada a alguns monarcas do que a outros. Se não sabemos quem foi o primeiro a chamar "o Gordo" a Dom Afonso II, ele terá ficado conhecido assim porque, muito naturalmente, tinha excesso de peso. Nesse sentido, inquirir sobre estas alcunhas reais é o mesmo que perguntar de onde vem qualquer outra alcunha do nosso mundo - e a resposta é simples, vem de quem conheceu essas figuras, as suas características e costumes. Alguém terá sido o primeiro a chamar "o Capelo" a Dom Sancho II, por ele ter tomado um hábito religioso em tenra idade, e Damião de Góis sabia disso, mas há que frisar que outros monarcas até foram recebendo vários cognomes - Dom Sebastião foi "o Desejado", como ainda lhe chamamos, mas também "o Encoberto" e "o Adormecido", em evidente alusão aos mitos do Sebastianismo (que se foram perdendo ao longo do tempo, justificando o esquecimento desses cognomes adicionais). Mais tarde, estes nomes foram sintetizados numa listagem única - recorde-se o que um dos nossos colegas encontrou há uns tempos, que prova que uma listagem como a aqui teorizada já existia em finais do século XIX - e alguém escolheu que um determinado rei iria adoptar o cognome X em vez do Y, seja porque o povo já lhe o tinha dado e ele era muito conhecido - como nos exemplos acima - ou porque fariam um absoluto sentido, e.g. Afonso Henriques como "O Conquistador [de muitas terras aos Mouros]".

Admita-se, não descobrimos quem foi o primeiro a associar somente um cognome concreto a cada um dos nossos reis, numa lista continuada de nomes + alcunhas, mas é certo que, como pode ser visto nas linhas de Damião de Góis, no século XVI alguns deles já eram famosos, enquanto que outros pareciam ainda não existir - relembre-se até que o famoso historiador nacional não dá qualquer cognome a figuras como Afonso Henriques, Dom Sancho I, Dom Dinis ou Dom Pedro I, mas dá-as aos reis referidos acima, por razões agora desconhecidas...

 

Em suma, qual é mesmo a origem dos cognomes dos reis, de Afonso Henriques a Manuel II, passando por figuras estrangeiras como Henrique IV? Eles têm uma génese popular, como qualquer alcunha dos nossos dias. Depois, ao longo dos séculos, alguns desses (muitos) nomes foram-se tornando mais famosos do que outros. Numa dada altura alguém os compilou a todos numa única listagem, escolhendo entre diversas alternativas para cada monarca ou acrescentando associações onde elas ainda não existiam, o que levou a uma listagem única e indisputada, como a que apresentámos ali em cima, que até aparece frequentemente nos manuais escolares dos nossos dias. Pelo caminho ficaram muitos outros nomes associados aos mesmos monarcas nacionais ao longo dos séculos, como aqueles apelidos "menos bons" que os Portugueses certamente chamavam aos Filipes durante os anos da invasão espanhola...

 

 

*- Curiosamente, a obra Mappa de Portugal, de meados do século XVIII, dá a estes dois monarcas o cognome comum de "Fidelíssimo", demonstrando-nos que os cognomes dados aos reis não eram 100% estáveis, podendo ser alterados até mesmo pouco depois das suas mortes.

Gostas de mitos, lendas, livros antigos e muitas curiosidades?
Recebe as nossas publicações futuras por e-mail - é grátis e irás aprender muitas coisas novas!