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Mitologia em Português

29 de Junho, 2021

Em busca da lenda da Quinta do Anjo (Palmela)

Há alguns dias vieram-nos perguntar sobre uma possível lenda da Quinta do Anjo, em Palmela. A pessoa estava particularmente interessada nas grutas artificiais - ou hipogeus, se preferirem - existentes no local. Infelizmente não foi possível visitá-las em tempo útil, até em virtude do Covid-19, para escrevermos sobre as mesmas, mas uma outra questão subsistia - afinal, de onde vem o nome dessa tal Quinta do Anjo palmelense (i.e. existem outras em Portugal)? Normalmente não teríamos dificuldade em responder a uma questão como essa, mas a jovem tinha também um pedido adicional, pois queria que também se contassem as fontes precisas usadas para obter essa informação. Tendemos a evitar isso para prevenir roubos de conteúdos, mas a título de exemplo podemos fazê-lo hoje.

A lenda da Quinta do Anjo

Quem for ao site da Junta de Freguesia de Quinta do Anjo poderá encontrar por lá, sem muita dificuldade, dois dados preciosos para esta busca - é revelado que a freguesia apenas nasceu a 10 de Fevereiro de 1928, mas também é contada uma espécie de origem do seu nome:

Diz a lenda que a fonte existente nesta quinta foi protegida por "um anjo bom armado de espada, portanto S. Miguel" [sic], da tentativa de envenenamento pelas forças do mal salvando, assim, as populações que dela viviam. A imagem de pedra e cal que lá existia do anjo armado de espada pisando o dragão esboroou-se em 1985, estando a própria fonte quase seca devido ao abaixamento dos níveis freáticos.

Para a maior parte dos leitores é provável que esta informação fosse mais que suficiente para resolver a curiosidade - caso encerrado...?! Não tanto, porque algo nos parecia estranho em toda esta história - ela não era mais do que uma repetição de representações e lendas famosas, como a de São Jorge, possivelmente apenas com um herói diferente! Por isso, de onde vem essa lenda, tal como apresentada naquela página?

 

Começámos por procurar na obra Portugal Antigo e Moderno, primeiro volume datado de 1873, que refere a existência de uma "Quinta do Anjo" a 3 quilómetros de Palmela. Não lhe associa qualquer espécie de mito ou lenda, dizendo apenas que o local tinha pertencido a D. Luíza de Mello, casada com João de Mello Feo em fins do século XVII, e que o casal - ou assim parece... - erigiu no local uma ermida à Nossa Senhora da Redenção. Quase 2000 páginas depois é adicionado outro facto - por volta de 21 de Outubro de 1877 um tal "Carlos Ribeiro" estava a analisar instrumentos de pedra encontrados numas "furnas" presentes no local. Ou seja, a considerar-se que havia algo de importante na zona, era apenas uma ermida e umas "furnas", sem referência a um qualquer anjo, poço ou fonte.

Porém, tratando-se esta de uma ermida mariana, decidimos consultar o Santuário Mariano, datado de 1707, cujo livro II, capítulo LVI, refere a imagem de Santa Maria presente no interior do recinto. E a informação que nos dá é tão preciosa que achámos que a deveríamos reproduzir parcialmente por aqui. O texto foi apenas adaptado para uma leitura mais fácil nos dias de hoje:

Nesta quinta, a que chamam a Quinta do Anjo, mandou edificar Francisco Coelho de Melo [pai de Luíza]  uma ermida - que é anexa à Paróquia de S. Pedro de Palmela, e são seus padroeiros os senhores do morgado Vila do Anjo, e é ao presente a referida D. Luíza (...) - para colocar nela uma devotíssima imagem de Nossa Senhora que tinha em seu oratório.

O texto continua explicando a origem da imagem que Francisco Coelho de Melo tinha em sua posse, mas nada mais nos diz sobre a própria quinta, alguma fonte de água ou algum anjo. O que é curioso, porque depois o autor acrescenta mais informação, dizendo que haviam três altares no recinto mandado construir por Francisco Coelho de Melo - o altar-mor tinha a representação mencionada acima, enquanto que os outros tinham "um Menino Jesus de grande perfeição" e o "Santo Esposo José". Ou seja, quando foi construída esta ermida, ela não só não tinha qualquer anjo no seu interior (o que faria sentido se algum anjo tivesse anteriormente aparecido no local, e fosse foco de culto entre os seus habitantes), como quem a mandou construir parecia desconhecer por completo qualquer lenda que associasse a própria quinta a um anjo.

 

Portanto, como obteve ela o seu nome? Segundo nos é revelado no texto acima, certamente porque tinham sido padroeiros do local "os senhores do morgado Vila do Anjo", o que contribuiu para explicar o nome da quinta - se lá tivesse mesmo aparecido São Miguel, porquê dar-lhe este nome genérico, em vez de um mais prestigiante "Quinta do Arcanjo" ou "Quinta de São Miguel"? Não faria muito sentido... Mas depois, à medida que as devoções a esta Nossa Senhora da Redenção foram aumentando, é provável que alguém se tenha interrogado sobre o nome do local e, o seu passado então progressivamente esquecido, lá foi adicionada uma imagem de São Miguel Arcanjo ao local. Quando é que isso aconteceu, já lá iremos.

A Quinta do Anjo e a lenda de São Miguel

E, porque São Miguel é frequentemente representado a combater um dragão (que toma as mais diversas formas, desde serpentes até figuras quase humanas), gerou-se entre o povo a ideia de que o evento até tinha acontecido naquele preciso local. Isto torna-se até particularmente mais interessante se tivermos em conta que a representação em questão era, originalmente, a de uma divindade pagã, como cá apresentámos de uma forma muito breve.

 

Agora, certamente que também se poderia perguntar como é que o "Morgado Vila do Anjo" tomou esse nome , mas é uma questão desnecessária, na medida em que quando foi construída a antiga ermida não existia no local qualquer devoção especial a um anjo. Por isso, se a igreja actual é de 1909, faz todo o sentido que a imagem de São Miguel, referida na página da junta de freguesia, tenha sido adicionado ao local nessa altura, até porque por volta de 1873 ainda não parecia existir qualquer lenda que explicasse o nome do local... ou, a existir numa forma puramente oral, só pode ter sido posterior à fundação da antiga Ermida de Nossa Senhora da Redenção, i.e. após inícios do século XVIII, como atestado pelas linhas do Santuário Mariano.

 

Assim sendo, qual é mesmo a lenda da Quinta do Anjo, em Palmela? Parece existir uma lenda associada a ela no século XX, aquela que recordámos ali em cima, mas há que ter em conta que ela é apenas uma história muito recente, com o nome da quinta a vir, na verdade, de uns padroeiros que tinham a sua posse numa data agora incerta, mas anterior a 1707. Nessa data de inícios do século XVIII não existia no local qualquer devoção associada a um anjo ou a um qualquer evento que aí possa ter tomado lugar. É talvez até por isso que o brasão da freguesia, que data de 1994 e que já reproduzimos acima, tem representado apenas dois elementos - a ideia muito vaga de um anjo (que não é identificado ou identificável como São Miguel), e um dos vasos campaniformes encontrados nas grutas do local, em vez de representar um qualquer episódio lendário bem atestado, como no caso da Vila de Moura. Nunca apareceu um anjo no local, muito menos aquele que é provavelmente um dos arcanjos mais famosos.

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29 de Junho, 2021

A lenda da Moura Salúquia

A lenda da Moura Salúquia é certamente bem conhecida em terras de Moura, no distrito português de Beja, mas para quem ainda não a conhecer achámos que a poderíamos recordar aqui hoje.

A lenda da Moura Salúquia

O brasão da vila de Moura - que hoje já é cidade - apresenta-nos essencialmente uma torre e uma figura feminina como que deitada em frente dessa fortificação. Reza então a história que esta mulher, uma moura de nome Salúquia (e filha do governador da cidade), viveu nesta terra em tempos da Reconquista Cristã, tendo-se apaixonado por um homem chamado Bráfama (ou Farbame?), da povoação de Aroche (a cerca de 50 Km de distância, para quem tiver essa curiosidade). Um dia os Cristãos mataram-no, tomaram as roupas deste amado e da sua comitiva, e dirigiram-se para a povoação que hoje é Moura. Salúquia, vendo-os à distância, pensou tratar-se de Bráfama e ordenou que se abrissem as portas da cidade. Face a essa inatenção, os combatentes cristãos entraram facilmente na povoação e conseguiram conquistá-la sem qualquer dificuldade. Então, notando o que tinha causado, em plena infelicidade esta moura subiu à torre do castelo e suicidou-se; a memória da bela moura, suicidária por amor, perdurou na cultura local, e então a povoação mudou o seu nome islâmico, que parece ter sido Al-Manijah, para o actual.

 

Mas então... porque recebeu a povoação o nome de "Moura", e não Salúquia? Visto que, face ao contexto de toda esta lenda, se pode depreender que o nome foi alterado por Cristãos, é provável que o nome original se tenha perdido progressivamente ao longo do tempo, ou que o nomeador desconhecesse o nome da falecida, mas pretendesse homenageá-la pelo precioso "auxílio" que deu à conquista do local. Esta segunda hipótese é certamente possível, a acreditar-se nos eventos que comportam esta lenda da Moura Salúquia, que continua a viver nos nossos dias na memória dos habitantes da cidade!

Ao mesmo tempo, é curiosa a apresentação desta personagem principal como uma islâmica que também amou um praticante da mesma religião. Em muitas outras lendas de Mouros e Cristãos, é muito mais comum que se apaixonem por cavaleiros da outra religião, acabando até por trair a sua cidade por amor. Aqui, a povoação é traída, sim, mas de forma quase acidental por Salúquia, e ela depressa se prontifica a pagar o preço da sua acção (algumas versões até acrescentam que tudo isto teve lugar no dia em que ela pensava ir casar-se, o que ainda enfatiza mais o seu sofrimento). Recordando Fernando Pessa, quase que apetece brincar-se um pouco e dizer "E esta, hein?!"

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