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Mitologia em Português

30 de Julho, 2021

A lenda da Nossa Senhora de Guadalupe

A lenda da Nossa Senhora de Guadalupe, também conhecida como a Virgem de Guadalupe, merece ser contada por cá em virtude de ser possivelmente a mais conhecida de todas as aparições marianas na América do Sul. Já cá falámos da Virgem de Fátima e dos milagres de Lourdes, ambos famosos na Europa, pelo que esta outra história - possivelmente uma lenda - também merece ser contada por cá, até porque não é muito conhecida em Portugal.

A lenda da Nossa Senhora de Guadalupe

Conta-se então que a 9 de Dezembro de 1531 um tal Juan Diego estava nos seus afazeres quando lhe surgiu uma desconhecida muito bonita. Ela dirigiu-se a ele no seu dialecto local, apresentou-se como a Mãe de Deus e incumbiu-o de uma lição - ele deveria ir ao bispo da região e pedir-lhe para que fosse construída uma capela no local. Naturalmente que o bispo não quis acreditar lá muito na história, mas pediu algum tempo para pensar no que lhe estava a ser reportado.

No dia seguinte, 10 de Dezembro de 1531, Juan Diego voltou a encontrar a mesma mulher, mas disse-lhe que tinha falhado na sua tarefa. Esta assegurou-o que acabaria por levar a sua missão a bom porto. Então, o jovem voltou a ir falar com o bispo da região, que se mostrou um pouco menos incrédulo, mas que também pediu provas de todo este suposto evento, como nos parece muito natural.

No dia 11 de Dezembro de 1531, Juan Diego tornou a encontrar esta misteriosa mulher e disse-lhe que precisava de uma sinal real das aparições. Esta assegurou-o que ele iria receber um no dia seguinte; porém, um familiar dele adoeceu, e então o jovem não pôde ir ao local na altura que tinham planeado.

Assim, na tarde do dia 12 de Dezembro de 1531, com medo das repercussões da sua falha, o jovem tentou evitar o local em que antes tinha visto esta senhora. Porém, ela trocou-lhe as voltas e apareceu-lhe novamente. Prometeu curar o familiar de Juan Diego, consolando-o com uma frase como "¿No estoy yo aquí que soy tu madre?", e pediu-lhe que levasse algumas rosas locais ao bispo. Quando o fez, os dois companheiros mexicanos notaram que a imagem desta Nossa Senhora de Guadalupe ficou miraculosamente gravada na veste que tinha sido utilizada para transportar as rosas - milagre, milagre!

Finalmente, a 13 de Dezembro de 1531, o familiar de Juan Diego viu esta miraculosa mulher e foi curado. A misteriosa dama revelou ainda que queria ser venerada sob o nome de "Guadalupe", e assim foi feito, como atesta o nome actual desta Mãe de Deus.

 

Mas terá sido tudo isto verdade? Será que aconteceu como se conta hoje, mais ou menos como há cerca de cinco séculos atrás? Efectivamente, as primeiras referências a esta imagem miraculosa e a todos estes eventos datam ainda de meados do século XVI. Porém, o que é curioso é que quando os religiosos locais investigaram toda a questão, descobriram que tinha existido uma deusa-mãe venerada no mesmo local, de seu nome Tonantzin, e que agora os nativos andavam a chamar esse mesmo nome a esta Nossa Senhora de Guadalupe, como se se tratasse de uma nova versão da sua divindade original, dando azo a algum cepticismo natural entre os Ocidentais. Além disso, o bispo que aparece em toda esta lenda, que se crê ter sido um tal Juan de Zumárraga y Arrazola, deixou obra escrita, mas nunca menciona estes eventos - mais uma razão para cepticismo. Existem até aqueles que dizem que o santo que ficou conhecido sob o nome de Juan Diego nem sequer existiu realmente...

 

Nestas coisas de fé, como já dissemos em relação aos milagres de outras Nossas Senhoras, acaba por ser tudo uma questão de crença. O que é facto, no entanto, é que quem for à Cidade do México poderá encontrar, no interior de um vidro, a mesma imagem miraculosa que se atribui a toda esta lenda da Nossa Senhora de Guadalupe. Tem algumas adições posteriores, por razões difíceis de explicar, mas diz-se que é a mesma imagem referida em toda esta história, que um dia esteve gravada numa das vestes de Juan Diego. A imagem, em si, existe, levantando questões significativas, como a sua proveniência original. Se veio dos céus, de um milagre, de uma qualquer fraude pia, ou de algum outro lado, essa é uma resposta que temos de deixar aos leitores...

 

[Adicionado posteriormente:]

Existe uma famosa reza associada a esta figura:

Santa María de Guadalupe, Mística Rosa, intercede por la Iglesia, protege al Soberano Pontífice, oye a todos los que te invocan en sus necesidades. Así como pudiste aparecer en el Tepeyac y decirnos: "Soy la siempre Virgen María, Madre del verdadero Dios", alcánzanos de tu Divino Hijo la conservación de la Fe. Tú eres nuestra dulce esperanza en las amarguras de esta vida. Danos un amor ardiente y la gracia de la perseverancia final. Amén.

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28 de Julho, 2021

Sobre as obras de António Ribeiro Chiado

Quando, há alguns dias, cá falámos sobre a origem do nome do Chiado lisboeta, apontámos que já muito poucos liam as obras associadas ao poeta António Ribeiro Chiado. Assim, achámos que era apenas justo que as fossemos ler e escrever um pouco sobre elas. Não foi possível encontrá-las a todas, pelo que naturalmente apenas referimos aqui apenas as que conseguimos localizar - caso alguém saiba onde encontrar as restantes, por favor deixe-nos um comentário com essa informação!

A estátua de António Ribeiro Chiado

Passando então a este pequeno desafio, o autor escreveu pelo menos três autos na tradição de Gil Vicente. O Auto das Regateiras, Prática dos Compadres e Prática de Oito Figuras parecem manter a senda do seu predecessor, mas - a nosso ver - não têm muito interesse para os dias de hoje, excepto por se tratarem de obras nacionais.

Os Avisos para Guardar essencialmente apresentam um conjunto de coisas com que os leitores deviam ter cuidado, e.g. "Guardar de cão que manqueija/e de homem mui fragueiro", "Guardar de homens casados/que em seus feitos são solteiros", "Guardar de fazer farinhas/com homem de ruins artes", "Guardar de quem tem começo/e não busca meio e fim". Caso não seja evidente, "guardar" deve aqui ser interpretado como uma espécie de sinónimo de "ter cuidado com".

A Querela entre o Chiado e Afonso Alvares preserva-nos um conjunto de poemas escritos por este autor e que obtiveram resposta do seu visado, supostamente quando o poeta estava preso. Também as Cartas a Amigos Religiosos e a Regra Espiritual que fez António Chiado ao Geral de S. Francisco contêm dados biográficos, seja em prosa ou verso, mas não nos pareceram muito interessantes para os dias de hoje.

Ainda, os Letreiros reportam um conjunto de ideias, e respectivo comentário pessoal, a que o autor supostamente teve acesso em túmulos que viu em "Hespanha".

 

Também associados a este autor surgem as Parvoices que Acontecem Muitas Vezes e as Profecias para o ano de 1579. Falamos delas em conjunto porque são, a nosso ver, as mais interessantes das obras de António Ribeiro Chiado a que tivemos acesso, por preservarem um conjunto de ideias que se foram mantendo ao longo dos séculos quase como no tempo do seu compositor - se correctas, ou não, já não nos compete a nós julgar. Assim, as Parvoices que Acontecem Muitas Vezes - que parecem ter sido compostas por cinco livros, mas dos quais apenas dois estavam presentes na edição que consultámos - contêm um conjunto de ideias que podem ser consideradas como "parvoíces", a que se tende a seguir um provérbio ilustrativo. Podemos dar aqui alguns breves exemplos:

Homem que consente que sua mulher mande mais em casa que ele - Parvoíce!
Mal vai a casa em que a roca manda na espada.

Homem não fidalgo que consente que sua mulher aprenda a ler - Parvoíce!
Ou é cornudo ou anda para o ser.

Quem um dia só conversa com outro, lhe descobre seus segredos - Parvoíce!
A quem dizes tua puridade, dás-lhe tua liberdade.

Quem gasta mais do que tem de renda - Parvoíce!
Quem não tem, e muito despende, na praça se vende.

Quem bebe àgua sem primeiro a ver - Parvoíce!
Quem acena a dama de longe - Parvoíce!
Quem de longe acena, de perto se condena.

Finalmente, as Profecias para o ano de 1579, publicadas em data incerta, contam-nos um conjunto de coisas que António Ribeiro Chiado previa que iam acontecer nesse ano. E, curiosamente, é quase certo que todas elas se realizaram. Como é isso possível, perguntam-se? Para que isso se possa compreender melhor, relatamos aqui algumas das muitas profecias contidas na obra, escolhidas de uma forma completamente aleatória:

Os caminhos estarão estendidos pelo chão, e as serras, porque mais cansarão cinquenta homens a pé que um a cavalo.
Estarão os mortos debaixo da terra, e os vivos por um cabo e por outro.
Será tanta a escuridade pelo mundo que todos terão os olhos cerrados quando dormirem.
As chuvas serão tão grandes que não haverá navio que pelo mar não ande a nado.
Os trovões e terramotos serão tantos que, de puro temor, não haverá homem nascido que fique por nascer.
O fogo se tornará mais quente que os banhos das Caldas.
Na terra haverá penedos e seixos mais duros que pedras.
As galinhas pretas porão ovos brancos, pelas grandes mudanças que haverá no mundo.
Todo o malfeitor não sairá da cadeia enquanto nela estiver preso, nem haverá enforcado que chegue com os pés ao chão.
Ficando o dia claro, aparecerá Lisboa em Almada, Badajoz em Elvas, e Evoramonte em Évora.

Interessante, não é?! Por isso, em 2021 talvez já seja mais do que altura de se apresentarem alguns destes textos de António Ribeiro Chiado nas salas de aula e nos manuais escolares, quanto mais não seja para que as gerações vindouras possam conhecer a obra de mais um autor nacional. Garantimos, com todas as certezas deste mundo, que mais depressa os estudantes teriam prazer em ler profecias como as que citámos acima do que obras que fazem adormecer, como o típico Felizmente Há Luar!

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26 de Julho, 2021

A verdadeira origem do nome do Chiado

Qual é, na verdade, a origem do nome do Chiado lisboeta? "Ele veio de um poeta" - diriam alguns - "até existe uma estátua à saída da estação do metro!" Mas... e se vos dissermos que podem estar enganados? Numa cidade que até ao Terramoto de 1755 esteve tão pejada de nomes religiosos, porque haveria de existir uma zona com o nome de um poeta que, admita-se em toda a verdade, já quase ninguém leu? É a busca por esse significado que aqui iremos apresentar hoje, mas tenha-se em conta que as linhas que se seguem serão longas...

Qual a origem do nome do Chiado?

Portanto, pense-se no seguinte. Historicamente, a termos de dar o nome de um poeta nacional a uma zona de Lisboa, a escolha mais óbvia seria Luís de Camões (com ou sem pala no olho). E falamos até desse autor dos Lusíadas porque no prólogo do seu Auto do El-Rei Seleuco, de meados do século XVI, surge uma frase curiosa da boca de uma das personagens:

Ainda vossas mercês não ouviram uma trova. Faço-as tão bem como o Chiado.

Depreende-se, portanto, que no tempo de Camões, ou um pouco antes, existisse uma figura conhecida pelas suas trovas com este nome real ou alcunha. Visto que esse nome não abunda em Portugal, depreende-se, quase automaticamente, que também tenha sido ele a dar o nome à zona lisboeta - caso encerrado, nesta busca pela origem do nome do Chiado? Não, nem por isso, porque se se pensar mais no tema nota-se o estranho que toda essa possibilidade é, mesmo que se queira supor, como alguns já fizeram, que o poeta tenha vivido na zona - como explicar que um autor de segunda ou terceira linha tenha dado o seu nome a algo no século XVI, quando o grande autor dos Lusíadas não o fez?!

Assim, face a este problema, já outros dizem que o nome veio de um taberneiro lisboeta da época, um tal "Gaspar Dias", que supostamente tinha a sua casa comercial na zona. O que, no entanto, levanta outra dúvida - como é que sabemos isso?! Quer dizer, se alguém associa o nome que buscamos seja ao poeta (que, na verdade, nasceu António Ribeiro), seja a este Gaspar Dias, de onde lhe vem mesmo essa informação? É uma questão verdadeiramente importante, mas que as muitas respostas encontradas na internet e em jornais tendem repetidamente a ignorar...

 

Em busca de uma resposta mais fiável traçámos a fonte dessas informações até finais do século XIX, inícios do XX, altura em que Alberto Pimentel decidiu editar algumas das obras do poeta, então já muito esquecidas. No seu livro Obras do Poeta Chiado, em jeito de prefácio este autor defende, recapitulando as diversas opiniões anteriores, que essa personagem veio para Lisboa em meados do século XVI, depois de abandonar uma vida religiosa, e se tornou tão famosa que acabou por dar nome ao local em que viveu.

Porém, anos mais tarde, no livro O Poeta Chiado, o mesmo autor acrescenta que encontrou um novo documento, que os seus antecessores não consultaram (i.e. foi ele o primeiro a trazer à luz essa informação, permitindo defini-lo como a fonte dessa informação), e que atesta que até circa 1567 tinha vivido em Lisboa, mais precisamente na Rua Direita da Porta de Santa Catarina*, um "Gaspar Diaz o chyado d'alcunha vynhateiro" (ou "Gaspar Diaz Chyado"). Como o autor admite igualmente, não se percebe se a alcunha deste homem era Chyado ou Vynhateiro, mas a presença do artigo "o" na primeira referência, bem como a referência habitual à profissão em documentos da época, pode dar a indicar a primeira hipótese. Infelizmente não conseguimos consultar o próprio documento - ele está na Torre do Tombo mas não se encontra digitalizado (não é caso único) - mas fazendo fé apenas na transcrição parcial de Alberto Pimentel, em lado nenhum é dito que este homem tinha uma taberna (ele parecia fazer ou vender vinho, o que não é bem o mesmo).

Ao mesmo tempo, o autor também encontrou num manuscrito de título Diversas historias e ditos facetos a diversos propositos, que nos diz que "deve ser anterior ao ano de 1617", um conjunto de histórias jocosas referentes a um homem astucioso deste nome. Não as cita directamente, parafraseia algumas delas, não sendo 100% claro pelo seu texto se se referem sempre ao poeta ou também a outra figura; o documento parece estar na Torre do Tombo**, mas entre as várias tramas aí apresentadas conta-se a seguinte, que aqui reproduzimos a puro título de curiosidade:

Passando o Chiado pela porta da Sé viu um grupo de muchachos e, dando-lhes atenção, ouviu-os dizer:
- Eu tomara ser bispo.
- Eu tomara ser papa.
- Eu tomara ser rei.
O "herói", acercando-se deles, interpelou-os dizendo:
- E sabeis vós o que eu tomara ser?
- ...?
- Tomara ser melão, para que me beijardes [no sítio onde se beijam os melões]***.

Essas descobertas levantam três grandes possibilidades... se o nome da zona de Lisboa ainda não parecia existir antes do século XV, quem lhe deu essa designação? O poeta, o vinhateiro, ou uma possível figura popular de identidade incerta? Alberto Pimentel parece resolver o problema identificando o terceiro com o poeta e dizendo que António Ribeiro veio para Lisboa e ficou em casa de Gaspar Diaz, possibilitando uma espécie de transferência de alcunhas... o que é estranho, porque não é por termos um amigo com uma dada alcunha que nos começam a chamar o mesmo! Então, se várias figuras partilhavam esse mesmo nome, de onde vinha ele? Conforme a mesma obra também esclarece, na altura a palavra significava nada mais, nada menos, que "astuto" - algo que tanto o comerciante de vinhos, como o poeta e a figura popular, poderiam ter sido!

 

Portanto, a acreditarmos que viveram mesmo na zona em questão, e que até o possam ter feito na mesma altura, poderá ser isso que contribuiu para a dificuldade em descobrir a identidade da figura por detrás da origem do nome actual. Hoje, quando dizemos "vamos ali a X", depreende-se que esse X tenha lá algo de notável - mas seria uma loja de Gaspar Diaz, ou o local em que um poeta, potencialmente famoso na cultura popular da época por mais do que os seus versos, tinha vivido? Será que alguns poemas eram declamados sob o efeito do dom de Baco, como algumas historietas parecem indiciar vagamente? Será que as figuras até se conheciam? Ou, talvez até mais importante, qual delas tinha um maior potencial para não ser esquecida ao longo do tempo? De uma forma irónica deve notar-se que ambas foram (quase) esquecidas, daí até a dificuldade em saber-se qual delas a mais - e menos - importante... mas, a tratar-se mesmo do poeta, ele poderá ter sido famoso entre o povo não tanto pelos seus versos, hoje quase olvidados, mas por todo um conjunto de histórias populares brejeiras que lhe foram sendo associadas - conforme apontado por Alberto Pimentel, pelo menos uma delas aparece mais tarde também associada a Bocage, dando-nos a perceber que a sua verdadeira origem já estava esquecida na segunda metade do século XVIII.

 

Quando a estátua foi colocada no local, foi-o por se considerar horizontalmente o poeta, o autor de trovas, como a origem do nome popular do Chiado. Mas foi-o quase sem provas reais, porque se depreendeu que o incomum nome só poderia mesmo vir dele. Mas, acreditando então que existiu no local uma loja de vinhos proeminente (o documento já referido acima dá a entender que o seu proprietário e a respectiva esposa tinham posses significativas), será que ela não poderá ter sido, numa dada altura, tão popular que passou a dar o nome à rua em que estava localizada, e que o facto de António Ribeiro também ter vivido lá é pura coincidência? Poderá pensar-se em toda a questão da seguinte forma - quando alguém nos diz "vou ali ao Ronaldo", se a casa do futebolista for em frente a um restaurante com mais de 50 anos que até partilha o mesmo nome, como sabemos nós a que local a pessoa se referia? Sabemo-lo porque a conhecemos, conhecemos os seus hábitos e o seu contexto pessoal... mas no caso aqui em questão, e desconhecendo-se hoje o contexto da época, é difícil conseguir tirar essa conclusão.

 

Assim sendo, qual é a verdadeira origem do nome do Chiado? Numa dada altura do século XVI viveu numa determinada rua lisboeta um Gaspar Diaz, comerciante de vinhos, que tinha essa alcunha - isso é certo! Mas crê-se, agora com menos certezas, que António Ribeiro, poeta e potencial herói de histórias brejeiras, também aí tenha vivido e partilhado a mesma alcunha. É, na nossa opinião, possível que tenha sido a conjugação de todos estes factores que levou ao nome popular da rua, mas também à enorme dificuldade em traçar a sua verdadeira origem. Por isso, afirmar, sem quaisquer dúvidas, que o nome veio mesmo do trovador - hoje quase esquecido, mas um dia também conhecido por meio de algumas aventuras ordinárias - não é completamente certo... e essa é a melhor resposta que temos para dar, pelo menos neste momento!

 

 

*- Pelo contexto depreende-se que tenha sido uma perpendicular à Rua da Misericórdia. A porta em questão, que dava nome à antiga rua, foi demolida no início do século XVIII, mas um pedaço da muralha ainda pode ser visto no interior do número 12 da Rua da Misericórdia.

**- Um enorme agradecimento aos funcionários da Torre do Tombo, que nos permitiram localizar este documento - aparentemente ele é o número 1817 dos manuscritos da livraria, mas ainda não está disponível online. A informação interna apenas informa que a obra em questão inclui "poesias, anedotas e notícias várias".

***- Essa censura partiu do próprio Alberto Pimentel, que admitiu que algumas das histórias presentes no documento eram de natureza "pornográfica".

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25 de Julho, 2021

Sobre a estátua da Rotunda da Boavista

Agora falamos de uma curiosa estátua na Rotunda da Boavista, no Porto, para que ninguém diga, face à publicação sobre o Arco da Rua Augusta, que nos focamos sempre e demasiado na capital. Assim, para quem visita a cidade e gosta mais ou menos de futebol, é quase obrigatório comentar o que se vê no local, uma representação de um leão a matar uma águia.

Estátua da Rotunda da Boavista

Podem ser muitas as piadas que se fazem sobre isto, desde a rivalidade Sporting - Benfica (e, sobre o nome e símbolo de Benfica, já cá falámos antes), até à ausência notável de um dragão no conjunto escultório, passando pela "boa vista" que o local causa sempre aos sportinguistas, mas... afinal de contas, o que representa mesmo todo este monumento? Podemos explicá-lo, mas fazê-lo implica partir de uma história mais pessoal, que é provável que já muitos outros visitantes da cidade já tenham partilhado antes.

Se, como nós, não forem da zona do Porto, é muito provável que tenham passado por esta rotunda de carro. Assim, também tiveram uma certa facilidade em ver o que está no topo de todo o monumento, mas sem terem acesso à base desta estátua na Rotunda da Boavista. E esse é um elemento muito importante, porque dá um contexto à representação dos dois animais. Na verdade, este é o chamado "Monumento da Guerra Peninsular", um conflito que teve lugar entre 1808 e 1814, e na sua base estão colocadas várias esculturas alusivas à mesma (elas podem ser vistas virtualmente aqui) e ao episódio histórico da Ponte das Barcas. Nesse seguimento, o que o capitel tem representado é mesmo uma águia e um leão, porque em inícios do século XIX esses eram respectivamente os símbolos da França e de Inglaterra; como esse segundo país ajudou Portugal a defrontar os seus opositores franceses, o seu símbolo é aqui representado em posição de destruir o grande adversário nacional.

 

Feliz ou infelizmente, esta estátua da Rotunda da Boavista nada tem a ver com futebol. O Benfica foi fundado em 1904, o Sporting em 1906, o Futebol Clube do Porto em 1893 (e o clube que partilha o nome desta rotunda é de 1903, para quem estiver com essa curiosidade), mas esta famosa estátua data logo da primeira metade do século XX, possivelmente de quando passaram cem anos daquele tal episódio da Ponte das Barcas, apesar de ter demorado quase meio século a ser concluída. Talvez assim se explique, ainda nos nossos dias de hoje, a ausência de um dragão portuense no local, que certamente muito agradaria à grande maioria dos habitantes da cidade...

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25 de Julho, 2021

A simbologia do Arco da Rua Augusta

Se se costuma chamar à Praça do Comércio a mais famosa de Portugal, seria justo dizer que o Arco da Rua Augusta, a muito escassos metros a pé, é obrigatoriamente o mais conhecido dos países lusófonos. Foi construído no século XIX, para celebrar a vitória da reconstrução da cidade face ao Terramoto de 1755, o seu arquitecto original foi Eugénio dos Santos, e... mais do que debitarmos aqui todo um conjunto de dados históricos e arquitectónicos, lançamos é uma pergunta - quantos de nós já olharam para ele? Olhar a sério, com os proverbiais olhos de ver? Por estranho que pareça, mesmo entre os lisboetas parecem ser muito poucas as pessoas que o fazem - de facto, fomos perguntar a várias pessoas que vivem nessa cidade e nenhuma delas o parece já ter feito. Assim, prestemos alguma atenção à simbologia do local:

O Arca da Rua Augusta, curiosidades

O Arco da Rua Augusta, também conhecido como Arco do Terreiro do Paço (um nome alternativo dado a todo este local), tem em si um total de 10 figuras. Nos dois lados - número 1 e 6 na imagem - estão representados os rios Tejo e Douro, como os limites tradicionais da Lusitânia; o Douro, do lado direito, pode ser reconhecido em virtude de um cacho de uvas que tem na sua mão. Quatro outras figuras são famosos heróis nacionais - Viriato (n. 2, como fundador), Vasco da Gama (n. 3, como expansor), o Marquês de Pombal (n. 4, como reconstrutor) e o Condestável, Nuno Álvares Pereira (n. 5, como defensor). No topo está a Glória personificada (n. 8) a coroar o Génio (n. 7) e o Valor (n. 8), que podem ser identificados pela coroa, lira e o leão. Ao centro, n. 10, está o brasão de Portugal, com os característicos sete castelos, cinco escudos e "30 moedas pelas quais Judas vendeu Cristo" (um outro tema fascinante, mas que terá de ficar para outro dia). O texto em Latim, que separa o brasão das figuras superiores, diz-nos então as seguintes palavras:

VIRTUTIBUS MAIORUM
UT. SIT. OMNIBUS. DOCUMENTO. P.P.D.

Que significa algo como "Que as virtudes dos maiores [dos Portugueses] sirvam de lição a todos", seguido pela abreviatura latina Pecunia Publica Dicatum, i.e. "dedicado com dinheiro público". Sinais dos tempos - hoje celebram-se os inauguradores com placas comemorativas, em outros tempos celebravam-se os heróis da pátria e que algo era construído com o dinheiro que é de todos nós...

Em suma, este é um monumento que celebra a resiliência de Portugal e a portugalidade, mas... na verdade, também não tem muito para se ver. É algo que, como o Panteão Nacional, se vê uma vez (se tanto...), e está visto. Se até existe um relógio na sua traseira e o famoso Miradouro do Arco da Rua Augusta no seu topo, que pode ser visitado pelo singelo preço de 3 euros (para quem nunca tiver ido ao local pode fazê-lo virtualmente aqui), o Arco da Rua Augusta não é algo de muito especial para o visitante, com excepção da simbologia nacional que aqui apresentámos hoje, e à qual já muitos poucos parecem prestar atenção.

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23 de Julho, 2021

A lenda de Yoichi

É provável que a lenda de Yoichi se conte entre as mais famosas do Japão, quanto mais não seja pelo facto de esta figura, através do seu arco, ser aludida em diversos jogos de inspiração nipónica disponíveis no ocidente. Na verdade, ele até é um dos opositores no Google Doodle de hoje, juntamente com um Tanuki, um Tengu, dois Oni, Otohime, Fukuro e os Kijimuna, numa aventura em que também aparecem os famosos Kappa, entre várias outras criaturas do país do sol nascente. Mas então, quem foi o herói a que dedicamos as breves linhas de hoje?

A lenda de Yoichi

Naso no Yoichi era um arqueiro exímio, mas a grande obra Heike Monogatari apresenta-o como uma figura muito humilde e pia, capaz de feitos verdadeiramente impressionantes mas sem que esse poder lhe suba à cabeça. Assim, a mais famosa de todas as suas façanhas passou por derrubar, com uma das suas flechas, um pequeno leque que estava no topo do mastro de um navio, a extensas centenas de metros. Isto até pode soar "fácil", mas as diversas versões da história adicionam-lhe alguns elementos - numa delas o herói fê-lo porque o inimigo o desafiou a tal, procurando testar as suas capacidades, enquanto que noutra teve de o fazer porque esse leque era parte de um subterfúgio, um chamariz, já que abaixo desse mastro estava uma mulher linda a dançar e quando alguém tentava olhar para ela, com evidente curiosidade, os adversários usavam essa oportunidade para o atingir com flechas.

 

Se o mesmo herói também teve outros feitos na mesma guerra do século XII, são secundários face a este episódio em específico. Mas o que lhe aconteceu depois? Segundo aquela que parece ser a versão mais comum da sua lenda, mais tarde ele acabou por se tornar monge e viveu no templo de Sokujo-in Temple, em Kyoto, até ao dia da sua morte. Um túmulo de Yoichi pode ser visto no local, pelo que se um dia estiverem nessa cidade e não tiverem certeza do que visitar, podem sempre ir ao local e recordar esta pequena história...

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23 de Julho, 2021

17 anos que este espaço começou!

Faz hoje 17 anos que este espaço começou, ele está quase na maioridade. Mas então, sobre o que podemos escrever este ano? Não tínhamos muitas ideias, até que há alguns dias recebemos um e-mail de um leitor em relação ao Livro do Infante D. Pedro de Portugal:

Li e apreciei o seu texto sobre a História do Infante D. Pedro.
Esse folheto por difícil que pareça teve mais de 150 edições, entre espanholas e portuguesas, das quais possuo mais de 20 diferentes na minha coleção.
Todas elas são difíceis de encontrar, por esse motivo dou-lhe os meus parabéns pelo seu achado.

Esta mensagem, que agradecemos, poderia levar a uma grande questão - na verdade, como é que conhecemos esse livro? Ou, até de um modo muito mais geral, como é que encontrámos muitas das obras literárias de que cá fomos falando ao longo dos anos? Se não nos é possível detalhar como foi encontrada cada uma delas (já são agora mais de 300...), podemos dar cinco grandes exemplos:

1- Intertextualidades - sempre que encontrámos uma referência notável a uma obra que ainda não conhecíamos fizemos pesquisa em relação a ela, acabando em muitos casos até por lê-la.
2- Textos relacionados - sempre que encontrámos algum texto interessante também pesquisámos por outros que lhe estejam associados de alguma forma, i.e. que são do mesmo autor, que foram publicados pela mesma editora/impressora, etc. De facto, até foi assim que encontrámos a obra mencionada no e-mail acima.
3- Publicações culturalmente significativas - muitas das obras de que cá fomos falando são obras que, de um ponto de vista cultural, são significativas, mesmo que não sejam muito conhecidas hoje em dia ou no nosso país. Vejam-se, por exemplo, os casos da Kalevala e do Kebra Nagast.
4- Temas/obras que foram sugeridos - Como no caso recente da Quinta do Anjo, alguns textos - e temas - são abordados por cá porque alguém os sugeriu e eles pareceram suficientemente interessantes. Se não aceitamos todas as obras - lembre-se, por exemplo, o absurdo de um determinado texto sobre Lilith que um dia nos foi sugerido - qualquer uma que possamos considerar interessante acaba por aparecer por cá.
5- Aleatórias - Por vezes, pelo mais completo acaso encontramos obras literárias que são suficientemente interessantes para aparecerem por cá, e.g. o caso de Lisboa Destruída.

Porém, pelo caminho vão ficando também textos que, pelas mais diversas razões, talvez não sejam assim tão interessantes para o leitor comum. A mais significativa de todas essas obras literárias é provavelmente a Suma Teológica de Tomás de Aquino, não só pela sua extensão, mas também pela forma demasiado complexa como aborda muitos dos seus temas. O tempo e o esforço que tomaria lê-la na sua totalidade jamais compensaria o que poderíamos vir a apresentar aqui sobre ela.

Bolo de Aniversário

O que mais podemos dizer, neste 17º aniversário? Como em todos os anos anteriores, queremos agradecer bastante a quem nos vai lendo. Para nós isto nunca teve a ver com o número de seguidores ou de likes, mas sim com uma tentativa contínua de partilha do conhecimento, para que quando alguém quer aprender a origem da expressão X, conhecer rapidamente o conteúdo do mito Y, ou até saber de que fala a obra Z, o consiga fazer de uma forma simples, rápida e sucinta. Em alguns casos atingimos esse objectivo, em outros nem tanto, mas tendemos a pensar que se as linhas que vamos escrevendo agradaram a uma única pessoa que fosse, já valeu a pena reunirmo-nos todos em redor desta fogueira virtual. Obrigado a todos os que nos lêem, hoje e como sempre, e em troca apenas pedimos que partilhem conhecimento com outras pessoas!

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21 de Julho, 2021

O Mahabharata, um breve resumo

Resumir o Mahabharata parecer-nos-ia uma tarefa impossível, até que numa dada altura encontrámos num comentário à obra uma frase extremamente interessante - "se o Ramayana mostra o que acontece quando um líder perfeito está no governo, já este outro épico leva-nos ao contrário, à forma como os impérios são elevados e destruídos pela presença de maus líderes." Talvez seja, mais que tudo o resto, esse o grande tema por detrás desta obra, mas igualmente a razão pela qual é tão difícil conseguir resumi-la. Não se trata de uma história contínua, em que as personagens se vão mantendo ao longo das páginas, mas sim da trama de um grande conflito entre dois grupos de primos, os 100 Kauravas e os cinco Pandavas, na qual vão aparecendo uma infinidade de histórias secundárias. E dito assim pode até parecer relativamente simples, mas a trama prolonga-se por centenas de anos, com a guerra entre estes primos, em si mesma, a ser um episódio alongado - a chamada Guerra Kurukshetra - mais do que o centro de toda a história. Para estabelecer um paralelismo com a literatura ocidental, é como se a Ilíada fosse apenas um pequeno e breve capítulo numa obra contínua e que ocupa mais de 200000 versos. Então, como resumir algo dessa magnitude?!

Árvore Genealógica do Mahabharata

Na imagem acima pode ser vista uma árvore genealógica da grande família envolvida em toda esta guerra e na trama do Mahabharata. Na parte superior está, a amarelo, o casamento de Ganga e Shantanu, de que já cá falámos anteriormente, mas só assim, colocado em contexto, se pode ver o seu papel na grande magnitude de toda a história. E, depois, à medida que se vai olhando para a imagem com atenção, podem ir sendo descobertos vários mistérios, de que podemos dar dois exemplos:

Como é possível que cinco irmãos consigam defrontar 100 homens? Normalmente isso seria estranho, mas a sua mãe, Kunti, numa dada altura recebeu o "dom" de ter filhos com todos os deuses que desejasse, e então a sua quíntupla prole foi uma espécie de semideuses, com poderes e forças muito acima dos meros mortais.

Como é que cinco irmãos tiveram filhos de uma mesma mulher? Um deles ganhou-a num concurso de tiro com arco (são outras culturas...), mas face à sua extrema beleza eles decidiram partilhá-la entre si. Eventualmente, isto leva a que um deles, Yudhishthira, perca tudo o que tem - incluindo a própria esposa - ao jogo, fazendo com que estes cinco irmãos sejam exilados para uma floresta durante vários anos (a semelhança com o caso de Rama parece ser intencional). A longo prazo, quando os Pandavas retornam para receber de volta o reino que era seu por direito, os Kauravas recusam devolvê-lo, o que leva a uma enorme guerra e à destruição quase total de ambos os ramos da família, naquele que pode ser vista como a sequência mais famosa da obra.

 

Mas será toda esta história do Mahabharata assim tão simples como pode parecer por aqui? Não o é, porque quase tudo o que vai tomando lugar é explicado através de uma relação com as vidas e eventos do passado. Por exemplo, quando Mandavya, um sábio, é empalado de uma forma que poderá ao leitor parecer desnecessária, ele depois é informado, já no reino de Yama, que sofreu esse triste destino porque na chamada "idade da inocência" magoou vários insectos de uma forma muito semelhante. E coisas como estas vão-se repetindo, repetindo e repetindo, até que às tantas o leitor poderá esquecer-se de onde ia na trama principal. Não é enfadonho, de todo, mas aumenta bastante o tamanho da obra e a complexidade das suas sub-tramas, até porque algumas das histórias de Krishna são aqui recontadas. Nesse sentido, é no início da guerra que se chega a um momento particularmente famoso, conhecido como Bhagavad Gita.

Bhagavad Gita, parte do Mahabharata

Arjuna, um dos cinco Pandavas, escolhe ter Krishna a seu lado em combate, apenas como cocheiro (a alternative era ter o exército do deus, mas o herói pensou que ter a divindade a seu lado era bem melhor, como até acabou por se provar), e nesse momento eles têm um interessante diálogo filosófico sobre a legitimidade de tudo o que se estava a passar. Será que é legítimo causar-se deliberadamente sofrimento numa guerra? É uma questão muito interessante... que, contrariamente ao resto da obra, até existe traduzida para Português, dado o interesse que tem, mesmo que fora do contexto de toda a aventura. Momentos igualmente filosóficos aparecem por toda a obra, com este a ser um dos mais fascinantes que encontrámos:

  • Quem é realmente feliz?

Aquele que tem poucos meios mas nenhumas dívidas; esse é um homem verdadeiramente feliz.

  • Qual é a coisa mais espantosa?

Dia após dia e hora após hora as pessoas morrem e os corpos são levados, mas os espectadores nunca se parecem aperceber que também eles irão morrer algum dia, e parecem pensar que irão viver para sempre. Esta é a coisa mais espantosa do mundo.

 

Porém, se estas linhas parecem um pouco difusas, é porque não é - repita-se - fácil resumir toda a trama do Mahabharata, excepto de uma forma muito geral. A obra vai contando a história de toda a família, até que vão surgindo vários motivos de conflito entre Pandavas e Kauravas, que têm o seu pico numa enorme guerra entre ambos. Dito assim parece fácil, mas depois, existem todo um conjunto de momentos muito interessantes para leitura e análise individual. Um dos mais curiosos, a nosso ver, é a forma - já aludida acima - como Yudhishthira perde tudo o que tem. O leitor pode vê-lo, uma e outra vez, a ir perdendo sucessivos jogos de sorte e de azar, e quase que apetece gritar "Não! Pára! Não sejas estúpido!"; e, ainda assim, mesmo após ser perdoado uma primeira vez, ele perde (novamente) tudo o que tem, numa espécie de comédia trágica da vida humana. Dá que pensar, sem qualquer dúvida.

Também a própria Guerra Kurukshetra tem muito que se lhe diga, pela forma quase dragonballesca como alguns momentos se desenvolvem. Num dado instante, por exemplo, dois heróis usam o seu maior poder, e então os próprios deuses têm de intervir na batalha para evitar a completa destruição de todo o universo (e não estamos a exagerar, é mesmo o que o poema diz). Ao mesmo tempo, são frequentemente explicadas as histórias de cada um dos combatentes*, como obtiveram as suas armas mais famosas, entre outras coisas que são secundárias para a aventura, mas que também contribuem para que se conheçam melhor cada uma das personagens.

Encontra-se um pouco de tudo neste Mahabharata. Fazendo nossas as palavras iniciais, talvez seja correcto definir este poema épico como uma espécie de visão da própria realidade, não sob a sua forma quase idílica (como no Ramayana), mas tal como ela é nas nossas próprias vidas. As personagens são francamente humanas, têm forças e fraquezas, que fazem delas - salvo a presença de alguns poderes mais estranhos, que dificilmente algum dia teremos - não uma espécie de heróis etéreos, mas uma espécie de reflexão sobre nós mesmos e a influência que os conflitos podem ter nas nossas vidas.

Krishna e o Mahabharata

Não é fácil resumir o Mahabharata. Já o dissemos e poderíamos repeti-lo mil outras vezes. A termos de resumir a obra, possivelmente repetiríamos o que já foi dito acima, i.e. que este poema épico conta "a história de toda a família, até que vão surgindo vários motivos de conflito entre Pandavas e Kauravas, que têm o seu pico numa enorme guerra entre ambos", mas com a ressalva de que essas palavras são demasiado redutoras de toda a beleza da obra, bem como dos muitos episódios que a constituem. Por isso, fica o convite de que a leiam. Existe em Inglês, com uma infinidade de volumes, mas pode ser encontrada gratuitamente online, numa tradução mais antiga. Não conseguimos encontrar qualquer tradução portuguesa, com excepção de uma do Bhagavad Gita.

 

 

*- Existem muitos momentos no Mahabharata que não podem deixar de nos recordar a Ilíada. Seria intencional? Será que os respectivos autores se basearam numa história quase comum, que foi perdida ao longo dos séculos? Por exemplo, antes da Guerra Kurukshetra começar são estabelecidas diversas leis entre os combatentes (que acabam por ser todas transgredidas...); se forem relidas no contexto do épico grego, as mesmas regras podem ser inferidas tacitamente de lá, em momentos como aqueles em que dois heróis se defrontam em combate individual, sem que ninguém interfira entre eles. Será coincidência? Será que a aparição de um cavalo no final de ambas as obras pode ser razão para inferir uma ligação entre elas? Pelo menos dá muito que pensar, se terá existido uma qualquer relação entre os dois poemas épicos. Existem alguns estudos sobre o tema, para quem tiver ficado com curiosidade.

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19 de Julho, 2021

As comunidades trans são cultos?

Poderá, a uma primeira vista, parecer estranho que aqui nos interroguemos se as comunidades trans são cultos, pelo que convém explicar o porquê de toda a questão. Será verdade, ou apenas um mito dos nossos dias? Há uns dias recebemos informação de que havia uma intenção recente de restringir o acesso a um livro recém-publicado da autoria de Abigail Shrier, Irreversible Damage: The Transgender Craze Seducing Our Daughters, que era apresentando entre determinados grupos - sempre transexuais e transgénero - como "transfóbico" e (quase) como a pior ofensa da história do nosso universo. Então, como nos é comum nestes casos, decidimos que tínhamos mesmo de o ler.

'Irreversible Damage' e as comunidades trans como cultos

É, sem qualquer dúvida e de facto, um livro a que alguns gostariam de chamar muitíssimo abominável e perigoso, mas só porque levanta um conjunto de questões inquietantes sobre uma moda que há uns anos se espalhou pelo mundo fora, e que passa por um conjunto de pessoas, quase sempre mais novas e com sintomas claros de depressão, se identificarem como trans quase somente porque os amigos também o declaram e porque, em comum, vêem que isso é representado como muito positivo entre determinadas subculturas nas redes sociais. Mas já lá voltaremos. Entretanto, há algumas semanas um dos nossos colegas apresentou numa conferência um tema relacionado com cultos religiosos, e então apercebemo-nos, pelo mais completo acaso, de que existiam vectores comuns entre esses cultos, de que já cá demos um exemplo, e as comunidades transfrequentes nas mais diversas redes sociais. Nesse sentido, se discutir todas as características que um culto deve ter ultrapassa o nosso objectivo de hoje, podemos dar quatro exemplos basilares:

Love Bombing

Quando uma pessoa se junta a um culto é automaticamente bafejada por um processo que os anglófonos chamam love bombing, e que passa por lhes ser mostrada toda a atenção e afecto do universo. Isto faz com que a pessoa - que, normalmente, está deprimida e a precisar bastante dessa atenção extra, razão pela qual foi conduzida a uma solução para a sua vida que esse culto apresenta - não questione a sua decisão, até porque todos a asseguram de que, mesmo que tenha quaisquer dúvidas, é o correcto e o melhor a fazer.

 

Indoutrinação

Em ambos os casos, os aderentes são introduzidos a um conjunto de vocabulários e práticas características do endogrupo, que lhes permitem identificarem-se entre si. São ensinados a não questionar nada, a ver que o mundo está todo contra eles - excepto os que também pertencem ao mesmo grupo, já eles também indoutrinados - e até lhes são fornecidos um conjunto de fontes de informação que reafirmam constantemente e sem qualquer divergência os diálogos internos. Por exemplo, ensina-se que quem não aceitar automaticamente a conversão a um desses grupos é "tóxico", uma "pessoa supressiva", "transfóbico", "TERF", etc.

 

Mentalidade de grupo

Tanto os cultos como estas comunidades movem-se como um grupo e repetem quase exclusivamente o pensamento vendido pelos seus líderes. Isto é particularmente fácil de notar no caso da obra Irreversible Damage: The Transgender Craze Seducing Our Daughters; quem for ler a página do livro na Amazon poderá notar que tem neste momento 8% de supostos leitores que lhe deram a pior nota possível, mas entre essas 300 críticas quase ninguém leu o livro em questão, como o próprio sistema demonstra. Criticam-no não porque o tenham lido, mas porque o endogrupo já lhes vendeu uma ideia do que ele contém e, fruto da indoutrinação, ninguém consegue questionar essa ideia. Isto torna-se mais interessante se notarem até que a retórica dessas críticas é quase robótica e assenta quase sempre nos mesmíssimos pontos - como até é comum nos cultos!

 

Quem sai do grupo é vilificado

Em ambos os casos, quem sai do grupo torna-se, automaticamente, o pior ser humano que alguma vez existiu. Se menos de 24 horas antes até podia ser uma pessoa fantástica, ao sair do grupo tem de ser completamente abandonada e tratada de uma forma que o grupo decidiu antecipadamente, e que normalmente passa pelo chamado shunning, essencialmente para impedir que possa causar dúvidas ou abandono em outros membros. Porém, é também curioso que se a pessoa voltar depois ao grupo, por uma qualquer razão que nos transcende, todos esses acontecimentos são rapidamente esquecidos.

 

Em sentidos como estes, entre muitos outros, é correcto dizer que as comunidades trans são cultos, porque partilham de elementos comuns. Poderia pensar-se que não têm um elemento religioso, mas na verdade eles oferecem uma veneração quase religiosa face a determinadas figuras que, para eles, atingiram ou pretendem atingir determinadas coisas que o endogrupo vê como positivas - basta ver-se, por exemplo, o boom que a identificação como trans sofreu com o caso de Bruce Jenner, tal como um determinado culto se apoia em Tom Cruise para a sua relevância.

 

Volte-se, por isso, ao livro Irreversible Damage: The Transgender Craze Seducing Our Daughters. Ele não é anti-trans. O que ele faz é demonstrar que existe, neste momento, uma tendência muitíssimo preocupante nas sociedades ocidentais, em que crianças e adolescentes são convencidos de que "nasceram no corpo errado", e que depois a chamada "terapia afirmativa" os faz acreditar mesmo que sim. Sobre isto, existe uma citação muito interessante na obra, em que um médico diz:

“I can’t think of any branch of medicine outside of cosmetic surgery where the patient makes the diagnosis and prescribes the treatment. This doesn’t exist. The doctor makes the diagnosis, the doctor prescribes the treatment. Somehow, by some word magic or word trickery, gender [activists] have somehow made this a political issue.”

A uma pessoa comum pareceria óbvio que uma criança ou um adolescente não sabe, não pode saber, já o que quer para todo o seu futuro. De facto, se temos um filho ou uma filha e eles nos pedirem para comer só bolos e a todas as refeições, naturalmente que não o aceitamos. Se eles nunca quiserem ir à escola, em vez de o aceitarmos de forma inquestionada interrogamo-nos sobre a razão para tal. Mas, na "terapia afirmativa" que nos querem vender hoje em dia, encapotada sempre sob acusações de transfobia, se uma criança ou adolescente quiser ser trans, dizem que não só devemos aceitá-lo como apoiá-lo plenamente. Portanto, se um menino de três anos disser que quer ser astronauta, rimo-nos; se disser que gostava de ser um cão e nos "ladrar", sorrimos; mas se nos disser que quer ser menina, devemos automaticamente apoiar essa ideia e procurar um especialista que lhe reafirme constantemente esse suposto desejo (mas, curiosamente, nenhum dos dois anteriores). E isso, a uma pessoa comum e que esteja de fora destes ambientes, deveria parecer aquilo que verdadeiramente é - um enorme absurdo! Ou, se preferirem uma citação directa de quem investigou este tipo de coisas, Helen Joyce, na sua obra Trans: When Ideology Meets Reality admite o seguinte:

Reading [acerca de tudo isto] as an outsider, these parents seem to have collectively lost their minds.

 

É grave que, hoje em dia, muitas comunidades vendam essa mesma atitude e mentalidade de verdadeiros cultos, em que se pretende construir um ideal constante de "quem não está comigo está contra mim". Já Cícero, no seu Sobre a Amizade, alertava para o perigo de atitudes como essas, mas J. K. Rowling, a autora do Harry Potter, o disse de uma forma fantástica, quando recentemente afirmou o seguinte:

J. K. Rowling e as comunidades trans como cultos

Talvez seja essa a forma mais fácil de afirmar e provar que as comunidades trans são cultos. Isso não é, de todo, um mito. Ambas criam um enorme ambiente de "nós VS eles", em que o "outro" é constituído como tão indigno da sua humanidade que tudo se torna permissível face a ele, e em que se passa de bestial a besta só porque uma opinião, por pequena que seja, não é totalmente condizente com a vendida e partilhada entre os membros do grupo.

 

Nestes sentidos, se um culto pode ser definido como uma "forma extrema de uma qualquer religião", só podemos sugerir uma coisa - se são pais e têm um filho ou filha que recentemente se identificou como trans, leiam este livro e vejam como os casos (reais) que são reportados lá se lhe aplicam. É o mínimo que podem fazer, porque tal como se supõe que não deixariam os vossos filhos cair num culto religioso, também os devem proteger de coisas semelhantes, e o melhor remédio para tudo isso é informação - a mesma informação a que os cultos tentam restringir o acesso, sob pena de os reconhecermos como tal. E, quando vos chamarem "transfóbicos", respondam simplesmente que se essa palavra é agora usada para designar uma não-pertença a um culto, o poderão aceitar ser com todo o gosto.

 

P.S.- Posteriormente encontrámos esta imagem, que ainda capta melhor essa relação de movimentos entre as comunidades trans e o cultos...

Será que as comunidades trans são mesmo cultos?

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18 de Julho, 2021

O segredo da Anta de Adrenunes

Em plena serra de Sintra pode ser encontrado um local que é hoje conhecido como a Anta de Adrenunes. Ele encontra-se hoje quase como há 150 anos atrás, como pode ser visto nesta gravura dessa altura:

O segredo de Adrenunes, a sua anta ou dólmen

Agora, se é relativamente fácil encontrar informação sobre este espaço na internet, sabendo-se que ele foi identificado pela primeira vez como sítio arqueológico em 1867 por Joaquim Possidónio Narciso da Silva, que é hoje um local com conotações místicas, e outras coisas que tais, o que nunca conseguimos encontrar foi a razão para esse seu estranho nome. Sim, chama-se Adrenunes, mas a existir um qualquer mito ou lenda por detrás da sua designação, já ninguém parecia saber, ou sequer interessar-se em conhecer, a razão para tal. Face a isso, fomos pensando no tema e abandonando-o várias vezes ao longo dos anos, até que há uns dias, sentados bem perto do local, decidimos que já era hora de alguém saber de onde vem esse nome... o que foi mais fácil de dizer do que de fazer, admita-se.

 

Não obstante as muitas dificuldades, quando tentámos ler tudo o que sobre ele existia escrito no século XIX deparámo-nos com uma referência francesa intrigante, datada de 1868, que se referia ao local como Dolmen du Mont de Adrenunes. Ou seja, o nome que procurávamos não era o do monumento pré-histórico, em si próprio, mas do monte em que ele foi encontrado... o mesmo a que hoje não parece ser dado qualquer espécie de nome explícito! Porém, se considerarmos a designação de todo o local nesta forma mais completa, "... do monte de ...", podemos vê-lo como um nome que indica uma espécie de pertença. Ele está corrompido pelo peso dos séculos e do esquecimento humano (como parte da história de Pedra Amarela, também em Sintra), mas é possível que, originalmente, se tenha referido a André Nunes ou a um Padre Nunes, figuras que, a terem existido, já há muito foram esquecidas, até porque a sua potencial posse de um monte num local que era de difícil acesso dificilmente terá sido digno de nota. Contudo, sabemos que existia pastorícia no local, como pode ser inferido pela lenda da Peninha (a menos de 1Km deste local, em linha recta), o que atesta a presença humana nas redondezas pelo menos desde inícios do século XVIII, altura em que o Santuário Mariano nos relata a agora-famosa história; a Ermida de São Saturnino, por perto, é do século XII, levantando até a possibilidade de que o nome do local que procuramos date de tempos da Reconquista Cristã.

 

Será, portanto, esta a verdadeira origem do invulgar nome da Anta de Adrenunes? Não conseguimos encontrar qualquer prova real disso mesmo, mas a considerarmos que o nome se referia efectivamente a uma antiga, e entretanto quase totalmente esquecida, posse de um determinado monte, esta é uma sugestão que faz todo o sentido, e que, pelo menos para nós, nos permite dar a questão como parcialmente encerrada.

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