"Nanso Satomi Hakkenden", novela japonesa
Nanso Satomi Hakkenden é provavelmente uma das mais famosas novelas japonesas, escrita no século XIX por Kyokutei Bakin e baseando-se de forma muitíssimo vaga em algumas figuras histórias que viveram no século XV. Porém, se parece ser bastante conhecida nesse seu país natal - ainda há dias uma japonesa nos dizia que se lembrava de ter lido uma versão adaptada desta obra na sua juventude - já no Ocidente quase que só é conhecida através de séries anime e manga, como Shin Hakkenden ou Hakkenden: Eight Dogs of the East (a primeira é significativamente baseada no original, a segunda tem uma infinidade de adaptações). Isto poderá dever-se ao facto de ela não existir publicada numa tradução completa, em virtude da extensão dos seus 106 livros em 98 volumes. Assim, é até difícil resumi-la aqui por completo, mas podemos apresentá-la como uma obra que pode ser dividida em três grandes momentos:
Nanso Satomi Hakkenden começa com a história da Princesa Fuse, cuja família (Satomi) foi amaldiçoada em função de alguns actos menos bons. Então, num tempo de enormes batalhas o pai desta jovem disse, no que parece ter sido mera ironia, que até aceitaria casar a sua filha com o cão de família, Yatsufusa, se este lhe trouxesse a cabeça do seu grande inimigo. O animal acabou por fazê-lo... E passou a ser muito bem tratado em virtude dessa acção, mas o pai da Princesa Fuse não queria, na verdade, cumprir a sua promessa. É a filha que insiste na necessidade de esta ser cumprida, de se realizar esse "casamento", e então vai viver com Yatsufusa para uma caverna na floresta. Porém, como a jovem - então com menos de 18 anos - queria preservar a sua virgindade, afastava sempre o cão de possíveis motivos menos honestos para com ela, dedicando-se a constantes preces e cópias de textos budistas, enquanto o pobre animal a alimentava a nozes que recolhia na floresta. Até que um dia se apercebeu que estava grávida; não era uma gravidez normal, originada numa relação sexual, mas sim uma "mística", proporcionada pelo amor que Yatsufusa lhe tinha durante o tempo de todas aquelas preces que ela realizava. Enfim, pouco depois ambos são mortos (o cão para obterem a sua esposa, e esta segunda por mero acidente), mas no momento do seu falecimento a Princesa Fuse deixa cair o seu rosário e dele são retiradas, por magia, oito contas com o nome de oito virtudes chinesas, que desaparecem misteriosamente.
Isto leva-nos ao segundo momento da obra. Anos mais tarde, oito jovens com o caracter para "cão" no seu nome são encontrados (犬, daí o nome original da obra, 南總里見八犬傳), todos eles com uma estranha marca no seu corpo e uma conta com o nome de uma virtude confucionista - cortesia, humanidade, justiça, lealdade, obediência, piedade, sabedoria e sinceridade. Essa parece ser a parte central de toda a obra, a forma como essas oito personagens se vão conhecendo, reencontrando, e têm cada um as suas aventuras individuais.
Já a terceira parte da obra, que os leitores com quem falámos consideram a menos interessante (será por isso que foi quase omitida na edição resumida a que tivemos acesso?), conta como estes oito heróis se envolveram numa guerra, lutando pela família Satomi, e depois abandonaram as suas vidas seculares. O texto termina com alguma informação sobre o autor e as suas fontes, sendo até famosa a informação de que Kyokutei Bakin, depois de 28 anos a trabalhar neste texto, já estava cego, tendo apenas recitado o final da história para que este pudesse ser escrito por uma nora.
Agora, se a história de Nanso Satomi Hakkenden tem muitos momentos característicos de novelas - ou romances, se preferirem, no sentido ocidental da palavra - o mais notável é a forma como também inspirou muitas outras obras japonesas ficcionais. Terá sido provavelmente daqui que veio a ideia das sete bolas de cristal do Dragon Ball; mas também da espada Murasame (hoje presente em muitos jogos orientais), que nesta obra tem apenas um pequeno poder místico; e até toda a ideia de vários heróis se juntarem para participarem numa grande aventura comum. É uma obra que tem momentos bem humanos (como quando uma mulher tenta enganar um dos oito "cães", acusando-o de um roubo falso), mas também alguns da mais pura fantasia, como quando Yatsufusa é amamentado por um tanuki, ou um dos heróis defronta um gato demoníaco (relembre-se que na cultura nipónica considera-se que estes animais, tal como a kitsune, têm poderes mágicos e de transformação).
Dadas todas estas considerações, o que mais podemos dizer sobre Nanso Satomi Hakkenden? Se provavelmente até é uma obra interessante para aqueles que gostam de histórias como a do Senhor dos Anéis, o grande problema é que, dada a sua extensão, não existe em qualquer tradução inglesa, francesa, portuguesa, etc. Até pode ser encontrado, aqui e ali, um ou outro capítulo já em tradução, mas isso impede que se consiga apreciar a obra na sua totalidade, o que acaba por ser importante, na medida em que mesmo o público original parece pensar que alguns momentos, como a história da Princesa Fuse e de Yatsufusa, estão muito melhor conseguidos do que outros (como a terceira parte da aventura). No nosso caso só conseguimos lê-la e entendê-la melhor pela simpatia de Sonobe Souan e através de uma versão resumida que apareceu na publicação The East entre 1994 e 1995.