A história de Frei Gerundio de Campazas
O livro das aventuras de Frei Gerundio de Campazas, alias Zotes, escrito por José Francisco de Isla em meados do século XVIII, é uma de muitas obras pós-medievais que foram populares numa determinada época e depois quase completamente esquecidas, de que a Gaticanea nacional também é um bom exemplo. Lendo-a, torna-se até fácil compreender o porquê, mas ao mesmíssimo tempo este também é um texto que nos preserva provavelmente um dos mais interessantes desfechos de literatura ficcional a que já tivemos acesso.
Mas, como é apenas natural, comece-se pelo início. Gerundio era um menino que desde tenra idade mostrou apetência para as artes da oratória. E é, de um modo geral, essa a grande trama da obra, a forma como ele vai desenvolvendo as suas artes ao longo dos anos, repetidamente aprendendo novas coisas e entendendo mais ou menos bem o que lhe vai sendo ensinado. Entretanto, vai escrevendo e declamando coisas que nos poderão parecer absurdas, mas que a maioria das personagens vai achando lindíssimas. O que não pode deixar de levantar uma questão - o que compõe uma boa homília? Se a grande maioria dos ouvintes gostar do que o orador expõe, que deverá importar a opinião dos entendidos, ou coisas tão "pequeninas" como elementos heréticos no púlpito de uma igreja? Em diversos momentos da obra o leitor é levado a questionar isso mesmo...
Porém, ao mesmo tempo, esta é uma obra que denota um nível cultural elevado, em que o Espanhol (original) e o Latim se vão intersectando, mas também os próprios métodos de composição literária da época são questionados. Por exemplo, num dado instante é ensinado a Frei Gerundio que:
Cada bom pregador deve ter na sua cela, ou na biblioteca do seu convento, os seguintes livros - a Bíblia, a Concordância, o Theatrum Vitae Humanae, o Teatro dos Deuses, os Fasti por Masculus (...), a Mitologia de Natale Conti, Aulo Gélio, (...) e acima de tudo os poetas Virgílio, Ovídio, Marcial, Catulo e Horácio. Para os sermões é apenas necessário o Florilegium Sacrum.
Mas como terminam as aventuras deste outrora-famoso frade? Aqui, dado o facto do final da obra ser tão invulgar, importa revelá-lo de antemão. Numa dada altura o herói torna-se tão popular que é convidado para dar a totalidade dos sermões da Semana Santa, uma espécie de jogos olímpicos oratórios. São-lhe propostos um conjunto de desafios, potencialmente os maiores até então, e... o narrador apercebe-se que foi enganado. Tendo pegado em obras antigas, pediu a um homem (supostamente) honesto que as traduzisse, e mais tarde foi-lhe depois revelado que o que se encontrava a ler não era uma realidade, uma suposta verdade história do herói, mas um ficção completamente inventada pelo "tradutor". Ou seja, se o narrador pensava estar a narrar umas histórias reais de outros tempos, por terceiros ele lá é informado de que tanto ele, como até o próprio leitor, andavam a ser muito bem enganados. De facto, até são apontadas múltiplas falhas, plot holes, em toda a aventura! E, nesse seguimento, é-lhe portanto sugerido que, em alternativa, chamasse ao seu livro e o publicasse como Uma história que pode ser do famoso pregador Frei Gerundio de Campazas.
É uma ficção dentro de uma ficção, esta obra da autoria de José Francisco de Isla. E se Frei Gerundio é um herói de palavras mais do que de acções, existem nesta obra, aqui e ali, alguns momentos verdadeiramente divertidos. Talvez sejam apenas bem apreciados apenas por alguém que tenha bases de Latim e perceba minimamente de técnicas de oratória, mas continua a ser muito melhor do que determinadas obras ficcionais dos nossos dias...