Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Mitologia em Português

31 de Outubro, 2021

"Liaozhai Zhiyi" e uma história mística chinesa

A história que aqui relatamos hoje provém de uma obra chinesa de nome Liaozhai Zhiyi, título que tende a ser traduzido muito cruamente como Histórias de um Estúdio Chinês. A obra, em si, data de meados do século XVIII, mas é composta por centenas de histórias compiladas por um tal Pu Songling. São histórias possivelmente baseadas em tradições orais - e.g. muitas delas até mencionam a criatura conhecida na China como Huli Jing - mas, de um modo muito geral, tratam-se de pequenos contos com alguns elementos místicos e misteriosos. Raramente são histórias muito assustadoras, ou pelo menos não o são no nosso sentido ocidental da palavra, mas face a esta altura do ano achámos que poderíamos aqui resumir, de uma forma muito breve, uma história provinda deste texto.

Capa da obra Liaozhai Zhiyi

Esta história, provinda de Liaozhai Zhiyi, conta-nos que um homem, de nome Liu, que era famoso na província em que vivia, faleceu e foi parar ao reino de Yama. Aí, dada a sua posição (elevada) no reino dos vivos, o Rei dos Mortos convidou-o a tomar um chá. Porém, Liu notou que os dois chás tinham cores diferentes, o que o levou a supor que lhe estava a ser dado a beber uma substância que o faria esquecer a vida passada. Assim, evitou bebê-la, e pouco depois, face aos seus pecados em vida, foi condenado a ser um cavalo na existência seguinte.

Viveu vários anos como cavalo, mas lembrando-se da sua (boa) vida anterior, acabou por decidir deixar de comer e morreu passados alguns dias. Voltando ao reino de Yama, o Rei dos Mortos e os seus laquaios notaram o que Liu tinha tentado fazer e, dessa vez, condenaram-no a reencarnar sob a forma de um cão. Como antes, este antigo homem viveu sob essa nova forma alguns anos, até que se fartou dela e mordeu o dono, arrancando-lhe até parte de uma perna. Foi punido muito rapidamente com a morte, regressando depois ao reino de Yama; novamente, tendo-se o monarca apercebido do que aconteceu, condenou Liu a uma nova reencarnação, desta vez como uma cobra.

Então, reconhecendo já que seria punido se fosse morto demasiado rápido, tentou seguir uma vida calma, adoptando diversos preceitos budistas, sem nunca procurar um falecimento prematuro. Até que um dia, enquanto rastejava pelo chão de uma floresta, foi atropelado por um carro de bois e feito em fanicos. Tornando então mais uma vez ao reino de Yama, o monarca dos mortos, estupefacto com a ocorrência, decidiu verificar o que se tinha passado e acabou por notar que esta última morte foi completamente acidental e no seguimento de uma vida bondosa. Portanto, lá permitiu a Liu que voltasse a adoptar uma forma humana na sua vida seguinte.

 

A história termina referindo que o autor da obra, Pu Songling, até conheceu este homem - ele conseguia falar desde o preciso instante em que nasceu, lembrava-se de muitas obras literárias que nunca tinha lido na vida presente, e face ao que se recordava de ter passado tratava sempre muito bem todos os animais. Palavras (quase) inspiradoras para as nossas vidas, comuns em literaturas como a chinesa ou indiana, mas não é totalmente claro se o autor se estava mesmo a referir a uma história completamente real, ou se, ao dizer que tinha conhecido este homem, nos escrevia já a sua ficção. Inclinamo-nos para a segunda opção, já que muitas outras histórias deste Liaozhai Zhiyi referem outros casos de pessoas que se lembravam de vidas anteriores, sendo até condenadas a viver sob a forma de animais como cães, cavalos, ovelhas, etc. Seria uma coincidência demasiado grande isso acontecer tantas vezes e a tanta gente num curto espaço de tempo...

 

Enfim, em jeito de conclusão, o que mais podemos dizer sobre este Liaozhai Zhiyi? Em si própria, a obra - que não parece existir traduzida em Português - é muito interessante para quem gosta de pequenos contos, porque cada história é quase completamente única e irrepetível, mas, salvo raríssimas excepções, não ocupa mais do que duas ou três páginas. Merece ser lida por quem goste das ideias apresentadas acima, mas convém deixar claro que o número de histórias contidas na obra parecem variar mediante a edição moderna; visto que o autor/compilador faleceu antes do texto ser publicado, parecem ter existido alguns manuscritos mais completos do que outros, o que justifica o "problema". A edição a que tivemos acesso continha cerca de 150 histórias, mas existem outras, com até quase meio milhar de relatos, e nestas coisas... quantas mais melhor, claro! Por isso, se gostam destes temas e de pequenos contos, fica o convite para esta leitura pouco conhecida no nosso país...

Gostas de mitos, lendas, livros antigos e muitas curiosidades?
Recebe as nossas publicações futuras por e-mail - é grátis e irás aprender muitas coisas novas!
29 de Outubro, 2021

A lenda de Martim de Freitas

Se, hoje em dia, a cidade de Coimbra já quase não tem castelo, existiu um tempo em que a cidade era protegida por uma fortificação imponente, e a lenda de Martim de Freitas transporta-nos precisamente para esse tempo, no século XIII da nossa era, altura em que reinava em Portugal Dom Sancho II. Certamente que o castelo dessa altura ainda não era como o de Coimbra em finais do século XVI, de que já cá falámos antes, mas quem assim o quiser pode imaginá-lo mais ou menos como na imagem abaixo:

A lenda de Martim de Freitas, alcaide do Castelo de Coimbra

Estando então extremamente bem protegido no "monte" da cidade, este castelo era quase inconquistável, e o monarca da altura depositou toda a sua confiança em Martim de Freitas para a sua protecção. Depois, apesar das muitas dificuldades, e dos mais diversos ataques que se tentaram, o local continuou inconquistável uma e outra vez.

Até que... um dia, este alcaide ouviu dizer que o seu senhor tinha falecido. Com dificuldade em acreditar nisso, obteve um salvo-conduto e dirigiu-se até Toledo, em Espanha, para ver o corpo do falecido rei com os próprios olhos. Só então, quando viu finalmente Sancho II no seu túmulo, é que tomou a chave da cidade de Coimbra que levava consigo, a depositou nas mãos hirtas do falecido, a retirou novamente e, para terminar, deu-a então a Dom Afonso III, como (agora) legítimo senhor da cidade e de todo o Portugal.

 

Esta é, portanto, uma lenda relativamente simples, mas que mostra bem a fidelidade que Martim de Freitas tinha para com o seu monarca. Este incubiu-o de uma tarefa, e o alcaide dispos-se a cumpri-la até ao limite, até ao instante que reconheceu que tinha um novo senhor e, como tal, também o deveria honrar como fez ao anterior. Quão melhor seria o nosso país se este mesmo espírito ainda vivesse em todos os seus habitantes, não é?!

 

 

P.S.- Com esta publicação sobre Martim de Freitas terminámos, finalmente, de escrever sobre todas aquelas grandes lendas de Portugal que Teófilo Braga considerava serem as mais famosas do nosso país. Demorámos alguns meses mas, conforme antes prometido, esta difícil tarefa está agora terminada! Por isso, nada como um bom jantar (virtual) para comemorar este feito...

Gostas de mitos, lendas, livros antigos e muitas curiosidades?
Recebe as nossas publicações futuras por e-mail - é grátis e irás aprender muitas coisas novas!
28 de Outubro, 2021

Sobre o Livro de Linhagens do Conde D. Pedro

Se, somente pelo seu nome, o Livro de Linhagens do Conde D. Pedro nos remete para uma ideia muito enfadonha, de uma mera obra de natureza genealógica, ao abrirem-se as suas páginas é igualmente revelado um pequeno mundo de mitos e lendas que é tão digno de nota que achámos que o tínhamos de referir aqui.

O título do Livro de Linhagens do Conde D. Pedro

Como o título já indica, o Livro de Linhagens do Conde D. Pedro, composto no século XIV por Pedro Afonso (um dos filhos do rei Dom Dinis), reporta as mais importantes linhas genealógicas que existiam em Portugal aquando da sua composição. Segue, quase sempre, uma estrutura formulaica - é mencionado um homem, depois a sua esposa, e é finalmente dito que ele "fez nela" uma determinada prole*. Muito importante e interessante para quem estuda História Medieval, enfadonho para a grande maioria dos outros leitores, até que se começam a notar, aqui e ali, alguns eventos um tanto ou quanto mais estranhos. Por exemplo, esta família nasceu da Dama dos Pés de Cabra e aquela veio de Dona Marinha, entre várias outras histórias. Algumas são relativamente realistas (o texto original é aqui citado com leves adaptações, para ser mais fácil de ler nos nossos dias):

Sueiro Bezerra teve filhos tão maus como ele, de tão maus feitos e que foram traidores, tanto o pai como os filhos, que pegaram em parte dos castelos na Beira, que tinham de el'rei Dom Sancho, e deram-nos ao conde Dom Afonso de Bolonha.

 

Outras destas histórias do Livro de Linhagens do Conde D. Pedro até nos podem fazer rir um pouco:

Dom Rodrigo Gonçalves foi casado com Dona Inês Sanchez. Ela, estando no castelo de Lanhoso, fez maldade com um frade de Boiro, e Dom Rodrigo Gonçalves foi informado disto. E ele chegou e fechou as portas do castelo, e queimou a esposa e o frade, e a homens e mulheres e bestas e cães e gatos e galinhas e todas as coisas vivas, e queimou o quarto e panos de vestir e camas, e não deixou coisa móvel por queimar.

 

Enquanto que algumas delas se presume que sejam puramente lendárias, ficcionais:

Uma noite, antes de Nuno Gonçalvez d'Avalos morrer, veio um anjo onde ele jazia a orar, diante de sua cama (...). Ele perguntou-lhe quem era, e o desconhecido disse que era anjo que vinha por mandado de Deus, e que ele devia pedir um dom que tivesse por bem e que Deus lho outorgaria. (...) E ele pediu que o seu solar nunca fosse destruído. E o anjo lhe disse que pedia bem, e que Deus lho havia outorgado. E por isto pensam os homens que o solar de Lara nunca há de ser destruído.

 

Momentos como estes surgem, aqui e ali, neste Livro de Linhagens do Conde D. Pedro. Não abundam - são, como parecerá natural, uma excepção em páginas e páginas de informação genealógica - mas contam-nos, pelo que parece ser um completo acidente, um conjunto de mitos e lendas medievais do nosso país. Muitas delas continuam conhecidas nos nossos dias de hoje - até demos dois exemplos ali em cima - enquanto que outras nem tanto, como as três que aqui citámos. Porém, este caso serve para mostrar o tesouro precioso de lendas que ainda se esconde em muitas obras medievais portuguesas, e que raramente está disponível a um público não especializado no tema, o que dá a (falsa) ideia de que uma mitologia puramente portuguesa é mais recente do que efectivamente o é... até quando?

 

 

*- A expressão é muito digna de nota, até porque aparece repetidamente por todo o Livro de Linhagens do Conde D. Pedro. "Fez nela", como se uma mulher fosse uma espécie de acessório que serve ao homem para fazer filhos, como se faz pão num forno ou sopa numa panela. Sinais de tempos passados...

Gostas de mitos, lendas, livros antigos e muitas curiosidades?
Recebe as nossas publicações futuras por e-mail - é grátis e irás aprender muitas coisas novas!
27 de Outubro, 2021

"Filosofia Botânica", de Lineu

A Filosofia Botânica de Lineu é uma obra que dificilmente interessará à grande generalidade dos leitores, porque se trata essencialmente de uma sobre a classificação das plantas. Não é propriamente algo que se possa (ou queira) ler na praia, mas um texto meramente indicado para quem tiver um interesse gigantesco na Botânica e quiser compreender melhor como a área foi evoluindo ao longo dos séculos. Porém, a obra tem um instante que nos pareceu digno de nota. Quando vai expondo os vários nomes que podiam ser dados às plantas, numa dada altura o autor refere os seguintes, que associa a algumas figuras mitológicas da Antiguidade:

Filosofia Botânica, de Lineu

Asclepias - deus dos médicos
Mercurialis - mensageiro dos deuses
Hymenaea - deus do casamento
Serapias - deus do Egipto
Satryrium - demónios do desejo
Satureja - um sátiro
Sterculea - deus do esterco
Tagetes - neto de Júpiter
Musa - deusa(s) das ciências
Numphaea - deusa(s) das águas
Najas - deusa(s) das fontes
Nyssa - uma ninfa
Melissa - deusa do mel
Dryas - deusa(s) dos carvalhos
Atropa - a última das Fúrias
Napaea - deusa(s) dos bosques
Herminium - [Hermes?]
Telephium - Télefo da Mísia
Teucrium - Teucro de Tróia
Helenia - esposa de Menelau

Não é claro, ou mesmo explicado, o porquê de terem sido escolhidos estes nomes específicos para determinadas plantas, mas eles não deixam de relembrar a importância que a literatura da Antiguidade, tal como as suas muitas figuras, foram tendo nos mais diversos domínios científicos ao longo dos séculos. Portanto, se dificilmente recomendaríamos esta Filosofia Botânica à generalidade dos leitores, há que reafirmá-la como um produto do seu século, com tudo o que isso tem de bom e de mau...

Gostas de mitos, lendas, livros antigos e muitas curiosidades?
Recebe as nossas publicações futuras por e-mail - é grátis e irás aprender muitas coisas novas!
25 de Outubro, 2021

A lenda de Gaia (ou do Rei Ramiro)

A existir um grande elemento que caracteriza as lendas portuguesas de Mouros e Cristãos é o de um amor que tende a surgir entre eles, terminando quase sempre com o casamento - e conversão - de uma bela princesa moura. A lenda de Gaia (a cidade ao pé do Porto), também conhecida como lenda do Rei Ramiro em virtude do seu herói, transporta-nos para esse mesmo imaginário popular, mas com algumas especificidades curiosas, como podemos ver através de um breve resumo:

A lenda de Gaia (ou do Rei Ramiro)

A lenda de Gaia diz então que Ramiro foi o segundo rei desse nome em Leão e viveu na primeira metade do século X. Apesar de já ser casado - algumas versões dizem que o nome da esposa era Aldora, outras chamam-lhe Gaia - apaixonou-se por um bela princesa moura, mas o irmão desta, um tal Alboazer, não a quis dar em casamento. Então Ramiro raptou-a, levou-a para Leão, converteu-a ao Cristianismo e deu-lhe o nome de Artiga.

Porém, face a este rapto Alboazer não se manteve impávido e sereno. Em vez disso, raptou Aldora e parte da sua corte, levando-os para o castelo de Gaia (hoje desaparecido). Ramiro foi ao local com o seu exército e pediu-lhes que aguardassem por um sinal. Depois introduziu-se no castelo, disfarçado de mendigo, e procurou a sua (primeira) esposa, mas esta denunciou-o ao rei mouro.

Capturado, o herói pediu ao monarca árabe um último favor, o de tocar a sua corneta. Quando o fez, o exército próximo entendeu o sinal, atacou a cidade e matou todos os inimigos da fé cristã. Voltando a casa, o rei Ramiro colocou uma mó no pescoço de Aldora e atirou-a ao mar (presume-se que pela sua traição, e não apenas para se livrar dela...), antes de ir viver muito feliz com a sua nova amada, Artiga.

 

Face a tantas outras lendas nacionais de amores de Cristãos por Mouras, de que já cá fomos falando antes, esta lenda de Gaia, ou do Rei Ramiro, é quase um pequeno épico novelesco em três actos. Como é possível, essa profundidade da trama tão incomum em lendas antigas? Na verdade, toda esta história, como é normalmente contada hoje e como a recontámos acima, resulta da fusão de duas lendas medievais com temas muito semelhantes, que se parecem ter confundido ao longo do tempo. Ao consultarem-se essas duas fontes literárias são reveladas algumas curiosas nuances da história. Por exemplo, originalmente a rainha foi atirada ao mar não por ter traído o marido, mas porque tinha tido relações sexuais com Alboazer e agora, sabendo-o morto, no navio chorou e sentiu a falta dele - por isso, nessa versão Ramiro acaba por casar com uma aia da rainha, estando a princesa moura totalmente ausente. Ela só aparece na outra versão, numa espécie de prólogo de toda a história, sendo raptada com o auxílio de um feiticeiro, e depois a história prossegue como acima.

 

É provável que, originalmente, tenham existido duas lendas orais distintas associadas ao Rei Ramiro, e que pela passagem do tempo se tenham começado a confundir-se, gerando uma história como a que temos hoje, e que seria bem apropriada para um filme nacional. Não existe nenhum sobre o tema, tanto quanto conseguimos apurar, mas foi motivo de um filme animado em 1931, A Lenda de Miragaia, que se encontra perdido com excepção de algumas imagens. É pena, porque nos parece, verdadeiramente, uma história digna de nota entre as muitas lendas nacionais de Mouros e Cristãos!

Gostas de mitos, lendas, livros antigos e muitas curiosidades?
Recebe as nossas publicações futuras por e-mail - é grátis e irás aprender muitas coisas novas!
23 de Outubro, 2021

"A Incoerência dos Filósofos", de Al-Ghazali

Existem livros que mudaram o mundo. A Incoerência dos Filósofos, de Al-Ghazali, escrita por volta do século XI da nossa era, talvez tenha sido um deles. Isto porque, se a Filosofia se parece ter desenvolvido bastante num ambiente islâmico durante a Idade Média - foram até eles os responsáveis por preservação de parte das obras de Aristóteles - fê-lo por uma ligação importante com a própria religião islâmica, com uma tentativa cada vez maior de se compreender Alá e o Corão. De mão dada, a Filosofia da Antiguidade e o Islão parecem ter proliferado durante vários séculos, até que alguém, possivelmente este Al-Ghazali, se apercebeu que os filósofos, até então vistos como entidades quase divinas, até poderiam estar errados.

Imagem puramente ilustrativa para "A Incoerência dos Filósofos", de Al-Ghazali

É essa ideia que o autor apresenta nesta sua obra, A Incoerência dos Filósofos. Ele apresenta as principais ideias da Filosofia Antiga em torno de três grandes pólos - a eternidade do mundo, o conhecimento do divino, e a ressurreição dos corpos - e vai refutando-as progressivamente, até que conclui, quase já no final da sua obra:

Estas teorias estão em oposição violenta ao Islão. Acreditar nelas é acusar os profetas de falsidade, e considerar os seus ensinamentos como uma deturpação hipócrita concebida para apelar às massas. Todas estas ideias são blasfémias flagrantes a que nenhum muçulmano deve subscrever.

 

Assim parece ter começado o início do fim do reino da Filosofia no oriente islâmico, com esta Incoerência dos Filósofos, de Al-Ghazali. Terá sido ele o único "culpado"? É difícil dizê-lo, porque ideias como estas raramente são desenvolvidas num vácuo... mas a sua obra parece ter sido tão importante que no século seguinte Averroes (ou Averróis, se preferirem) sentiu necessidade de a refutar, escrevendo a sua obra A Incoerência da Incoerência, que procurou voltar a ligar a Filosofia às crenças islâmicas... uma ideia que se foi mantendo por mais algum tempo no Ocidente, mas que nessa altura já parecia ter perdido o seu ímpeto original no Oriente. Foi nesse seguimento que obras como as de Al-Farabi foram perdendo a sua importância, até serem quase totalmente esquecidas - e, de facto, mesmo hoje poucos serão aqueles que terão lidos obras filosóficas desta época, apesar do seu contributo significativo para o pensamento ocidental e de autores como Tomás de Aquino, e de muitas vezes elas até estarem disponíveis em PDF na internet...

Gostas de mitos, lendas, livros antigos e muitas curiosidades?
Recebe as nossas publicações futuras por e-mail - é grátis e irás aprender muitas coisas novas!
22 de Outubro, 2021

Um poema de João Zorro que menciona Lisboa

João Zorro não é, sem qualquer dúvida, um dos mais famosos autores da literatura portuguesa. Na verdade, não fosse o seu nome incomum - que alguns até dizem tratar-se de um criptónimo - e nem estaríamos a falar aqui dele, já que apenas o encontrámos por completo acaso, aquando de uma pesquisa pelo outro Zorro, o famoso herói mascarado de terras do México. Portanto, que tem este autor, presumivelmente português, digno de nota, que nos tenha levado a escrever estas linhas de hoje?

 

Essencialmente, João Zorro foi um poeta português de meados do século XIII, de quem nos chegaram treze composições. Pela sua qualidade, elas não são muito dignas de nota - focam-se muito no amor e num rio, que permaneceria desconhecido não fosse o facto de uma das suas composições referir directamente a cidade que lhe era próxima:

En Lixboa sobre o mar
Barcas novas mandei lavrar.
Ai mia senhor velida!

En Lixboa sobre o lez
Barcas novas mandei fazer.
Ai mia senhor velida!

Barcas novas mandei lavrar
E no mar as mandei deitar.
Ai mia senhor velida!

Barcas novas mandei fazer
E no mar as mandei meter.
Ai mia senhor velida!

Outro poema refere "El Rei de Portugale" e "El Rei Portugueese", apoiando a ideia de que este João Zorro era mesmo um autor nacional, mas fora estas breves notas não parece existir muito mais que possa ser dito sobre ele. Foi um poeta português da Idade Média, claro, mas foi sendo progressivamente esquecido ao longo dos séculos e, queiramos ou não, face à sua falta de mérito poético talvez seja uma perda que tenhamos pouco a lamentar. Quer dizer, nem todas as obras esquecidas têm de ser novas Gaticaneas...

Gostas de mitos, lendas, livros antigos e muitas curiosidades?
Recebe as nossas publicações futuras por e-mail - é grátis e irás aprender muitas coisas novas!
20 de Outubro, 2021

Porque se diz de alguém traído que "é cornudo" ou "levou um par de chifres"?

Hoje em dia, quando um homem é traído por uma mulher, costuma dizer-se que esta lhe pôs um par de cornos (ou chifres), fê-lo cornudo, e outras metáforas de conteúdo semelhante. Contudo, se já muitos se parecem ter interrogado sobre a origem de esta expressão, normalmente quem decidir procurá-la pela internet encontra um conjunto de informações muito horizontais mas também muito pouco conclusivas - de facto, citando parte da conclusão do site das Ciberdúvidas em relação a uma questão semelhante, "não há certezas sobre a origem da expressão idiomática, que parece basear-se numa metáfora que remonta à Antiguidade e cuja motivação não nos parece hoje evidente." Mas não concordamos com essa conclusão. Por isso, vamos então responder a esse pedido de informações de uma vez por todas...

Sobre a origem da expressão "pôr/levar um par de chifres" e cornudo

Na imagem acima pode ser vista a representação de um touro, com o seu evidente par de chifres. Ela tem quase 4000 anos, mas qualquer pessoa saberá reconhecê-la como esse animal, e nesta representação deve igualmente notar-se a presença de um orgão sexual de tamanho notável. Assim, na altura em que esta representação foi feita o touro era um símbolo das divindades e do seu enorme poder, destreza, fecundidade e coragem - por exemplo, referências extremamente antigas a "El", que pode ser visto como o predecessor do nosso Deus, até o equiparavam a um touro, e num píthos do século VIII a.C., de que já cá falámos quando abordámos o tema da esposa de Deus, os entes divinos também podem ser vistos acompanhados por estes animais.

Os cornos do poder, símbolo de divindade e de força

Agora, se desde quase a Idade do Bronze que os touros - e os respectivos cornos - eram um símbolo de poder, força e de virilidade, pôr/levar um par de chifres podia e devia, originalmente, ser visto como um insulto na medida em que se pretendia dizer que essa pessoa, que ainda não os tinha, não possuía um conjunto de características (positivas) que se associavam ao bovino. O insulto original, em si mesmo, não passava tanto pela colocação dos próprios cornos num homem, mas por se aludir à ideia de que ele ainda não tinha essa famosa virilidade e, como tal, não conseguia satisfazer devidamente a sua companheira. Simplificando-se, na altura "ter cornos" era positivo, mas "levar cornos" implicava a ausência actual desse elemento positivo e, como tal, era algo negativo.

 

Mas então, como é que "ser cornudo" passou a ser um insulto? Não deveria, face ao dito acima, ser um elogio, pelos cornos se tratarem de um símbolo de diversos tipos de poder? Claro que sim, não fosse o facto de essa simbologia original, muito antiga, ter sido esquecida ao longo dos séculos. Quando, na Grécia Antiga, Artemídoro de Daldis refere o caso de um homem que tinha medo que uma futura esposa lhe "pusesse os cornos", tornando-se prostituta, mas não é sequer completamente claro o que ele temia - se a traição, em si mesma; ou o facto de ela se tornar prostituta por não gostar do que tinha em casa. Contudo, o que sabemos é que os touros já não tinham, nessa cultura em específico, a mesma importância e significado de outros tempos anteriores (como pode ser visto no mito do rapto de Europa, em que o touro é uma mera transformação de Zeus, que o deus depois acaba por abandonar para consumar o seu desejo), pelo que é muito provável que já nem os Gregos da Antiguidade compreendessem bem o significado original da expressão que ainda utilizavam no seu dia-a-dia!

 

Resumindo e concluindo, originalmente "pôr um par de chifres" a alguém queria dizer que essa pessoa não tinha ainda a virilidade e pujança própria de um touro, elementos associados a tantas divindades antiquíssimas, mas ao longo dos tempos essa ideia inicial foi sendo esquecida e o próprio efeito - tornar-se "cornudo" - passou a confundir-se com a sua causa, perdendo-se a simbologia original e fazendo com que esse acto de levar um par de chifres se tornasse um símbolo de traição feminina, mais do que do poder sexual de quem os possuía. Entendido, de uma vez por todas?

Gostas de mitos, lendas, livros antigos e muitas curiosidades?
Recebe as nossas publicações futuras por e-mail - é grátis e irás aprender muitas coisas novas!
19 de Outubro, 2021

A lenda de Guiomar Coutinho

Talvez não seja totalmente correcto chamar à história de Guiomar Coutinho uma lenda. Quase toda ela se apresenta como um episódio histórico do nosso país, mas também existe nela um momento curioso que poderá ter contribuído para o seu estatuto lendário na cultura portuguesa. E, por isso, achámos que até a podíamos contar por cá, na sequência de outras lendas que foram consideradas as mais importantes do país.

A lenda de Guiomar Coutinho

D. Guiomar Coutinho foi a única descendente do quarto conde de Marialva e da segunda condessa de Loulé. Era, como se poderá compreender por esse facto, uma mulher muito opulenta. Como tal, o rei Dom Manuel I quis casá-la com o seu filho, Dom Fernando. Porém, os tempos foram passando, o monarca faleceu, e só quando Dom João III subiu ao trono é que o processo para esse casamento tomar lugar continou. E eles teriam casado, sim, não fosse um "pequeno" problema - conta-se que entretanto a jovem casou secretamente com Dom João de Lencastre, primeiro marquês de Torres Novas. Ou seja, ela não podia casar com Dom Fernando porque já era casada!

 

Toda a história foi até motivo de uma peça de teatro de Camilo Castelo Branco, mas o que não sabemos, nem conseguimos descobrir, é se João e Guiomar foram verdadeiramente casados. O primeiro dizia que sim, a segunda negava-o, o caso foi aos tribunais e - se com cunhas do rei de Portugal, ou por completa justiça, já não sabemos... - acabou por se julgar que o novo casamento podia tomar lugar.

D. Guiomar Coutinho e Dom Fernando casaram então em 1530, mas a sua vida não foi propriamente feliz. Tiveram dois filhos. Um deles morreu ao nascimento, em 1534; a filha de ambos, entretanto com três ou quatro anos, morreu no mesmo ano; seguiu-se-lhe Fernando, em Novembro; e finalmente a heroína de toda esta história, em Dezembro. Num só ano extinguiu-se a família, e dizia o povo que por castigo divino. E que aconteceu a João? Lá acabou também ele por casar e até teve dois filhos legítimos, que tiveram um destino mais feliz. Mas isso já são outras histórias...

Gostas de mitos, lendas, livros antigos e muitas curiosidades?
Recebe as nossas publicações futuras por e-mail - é grátis e irás aprender muitas coisas novas!
18 de Outubro, 2021

Bandeira de Portugal - significado, origem e um segredo!

Na imagem abaixo podem ser vistos alguns dos passos da evolução da bandeira de Portugal (e não só!) até aos nossos dias. A actual está no canto inferior direito, como será óbvio para qualquer pessoa que tenha o mínimo dos mínimos de cultura geral, mas o que é interessante em tudo isto é o facto de, se forem colocadas assim, quase lado-a-lado, se poderem apurar alguns vectores comuns entre todas elas.

O significado da bandeira de Portugal

Por exemplo, a primeira de todas as bandeiras, a que está no canto superior esquerdo, é, nada mais, nada menos, que o escudo do Condado Portucalense. Depois, na seguinte, já do tempo de Afonso Henriques e da Batalha de Ourique, surgem uns círculos brancos, mas as razões por detrás dos mesmos não são totalmente claras, até porque o seu número foi variando ao longo do tempo, até se fixar em cinco no tempo de Dom João II, em finais do século XV.

A bandeira actual de Portugal

Depois, saltando alguns séculos no tempo, chegamos à bandeira actual, em que o verde parece significar a esperança do povo português e o vermelho o sangue derramado por todos aqueles que morreram em prol da nação. Esses são, de um modo geral, os elementos novos, a que se adicionou também a esfera armilar, de que já cá falámos antes. E depois, um pouco afastado do centro nesta bandeira de Portugal, surge então o escudo nacional, bastante semelhante ao dos séculos anteriores - recorde-se que até já aparecia no Arco da Rua Augusta. Mas qual é o significado dos seus elementos? Quando escolhemos a imagem acima para adornar este artigo, fizemo-lo por uma boa razão, para permitir ao leitor comparar as várias bandeiras e poder entender, com uma imagem que vale mil palavras, que alguns elementos foram mesmo sendo alterados ao longo dos séculos. Tendo, portanto, isso em mente, podemos assim estabelecer os seguintes significados:

 

  • Os sete castelos, que nem sempre foram esse número, parecem representar sete que foram conquistados pelo rei Dom Afonso III no Algarve, completando a reconquista cristã, mas não é certo de quais se tratam. Isto porque, se o seu número foi variando, também a identidade deles o terá sido.
  • Os cinco escudos, que se foram mantendo, é-nos dito que representam as cinco chagas de Jesus Cristo, por este ter aparecido a Afonso Henriques na Batalha de Ourique. Se a lenda é muito famosa no nosso país, há que notar que a bandeira do tempo desse rei ainda não tinha este elemento, só surgindo ele com Dom Sancho I, por razões entretanto esquecidas. Outros dizem que eles representam os cinco reis mouros derrotados pelo monarca na mesma batalha, o que leva ao mesmo problema.
  • E o que significam as cinco bolas brancas, ou "besantes", em cada escudo? Na versão mais frequente, eles são as chagas de Cristo (e, portanto, os escudos só poderiam ser os cinco reis mouros, nessa interpretação). Contudo, a totalidade do seu número é de 25, dizendo-se que representam os 30 dinheiros pelos quais Judas vendeu Jesus Cristo, com os do meio a serem contados duas vezes...

 

Tudo isto poderá soar muito bem, relativamente ao significado e origem da Bandeira de Portugal, até que se pense um pouco em toda esta simbologia, que esconde um segredo. Notavelmente, porquê contar os besantes do meio duas vezes? Existem teorias, claro está, mas na explicação mais interessante que encontrámos é dito que... eles não devem ser contados duas vezes, de todo, mas que o número de 30 é atingido pelo facto de deverem ser incluídos nessa conta também os cinco escudos, num total de 5x5 + 5 = 30, os tais trinta dinheiros recebidos por Judas. Outra opinião, menos interessante mas igualmente válida, diz que os besantes do meio são contabilizados duas vezes porque ao fazermos o sinal da cruz também tocamos nessa parte central duas vezes. São explicações interessantes, claro, mas mais importante é mesmo o facto de permitirem que não se diga "os do meio contam-se duas vezes só porque sim", o que destoa demasiado numa bandeira de Portugal tão repleta de simbologia.

 

Assim se explica a origem e significado da bandeira de Portugal, mas não sem uma última curiosidade, que suscitou algumas questões a quem mostrámos inicialmente estas linhas. Quem voltar à primeira imagem acima e prestar atenção poderá ver na segunda linha uma bandeira que apresenta o escudo de Portugal com uns ramos verdes por detrás. Para quem o quiser saber, era a Bandeira do Domínio Espanhol, após o falecimento de Dom Sebastião, que tem representados ramos de oliveira para simbolizar o que se supunha ser a grande paz ibérica após tantos anos de confrontos entre os dois países!

Gostas de mitos, lendas, livros antigos e muitas curiosidades?
Recebe as nossas publicações futuras por e-mail - é grátis e irás aprender muitas coisas novas!

Pág. 1/2