"Liaozhai Zhiyi" e uma história mística chinesa
A história que aqui relatamos hoje provém de uma obra chinesa de nome Liaozhai Zhiyi, título que tende a ser traduzido muito cruamente como Histórias de um Estúdio Chinês. A obra, em si, data de meados do século XVIII, mas é composta por centenas de histórias compiladas por um tal Pu Songling. São histórias possivelmente baseadas em tradições orais - e.g. muitas delas até mencionam a criatura conhecida na China como Huli Jing - mas, de um modo muito geral, tratam-se de pequenos contos com alguns elementos místicos e misteriosos. Raramente são histórias muito assustadoras, ou pelo menos não o são no nosso sentido ocidental da palavra, mas face a esta altura do ano achámos que poderíamos aqui resumir, de uma forma muito breve, uma história provinda deste texto.
Esta história, provinda de Liaozhai Zhiyi, conta-nos que um homem, de nome Liu, que era famoso na província em que vivia, faleceu e foi parar ao reino de Yama. Aí, dada a sua posição (elevada) no reino dos vivos, o Rei dos Mortos convidou-o a tomar um chá. Porém, Liu notou que os dois chás tinham cores diferentes, o que o levou a supor que lhe estava a ser dado a beber uma substância que o faria esquecer a vida passada. Assim, evitou bebê-la, e pouco depois, face aos seus pecados em vida, foi condenado a ser um cavalo na existência seguinte.
Viveu vários anos como cavalo, mas lembrando-se da sua (boa) vida anterior, acabou por decidir deixar de comer e morreu passados alguns dias. Voltando ao reino de Yama, o Rei dos Mortos e os seus laquaios notaram o que Liu tinha tentado fazer e, dessa vez, condenaram-no a reencarnar sob a forma de um cão. Como antes, este antigo homem viveu sob essa nova forma alguns anos, até que se fartou dela e mordeu o dono, arrancando-lhe até parte de uma perna. Foi punido muito rapidamente com a morte, regressando depois ao reino de Yama; novamente, tendo-se o monarca apercebido do que aconteceu, condenou Liu a uma nova reencarnação, desta vez como uma cobra.
Então, reconhecendo já que seria punido se fosse morto demasiado rápido, tentou seguir uma vida calma, adoptando diversos preceitos budistas, sem nunca procurar um falecimento prematuro. Até que um dia, enquanto rastejava pelo chão de uma floresta, foi atropelado por um carro de bois e feito em fanicos. Tornando então mais uma vez ao reino de Yama, o monarca dos mortos, estupefacto com a ocorrência, decidiu verificar o que se tinha passado e acabou por notar que esta última morte foi completamente acidental e no seguimento de uma vida bondosa. Portanto, lá permitiu a Liu que voltasse a adoptar uma forma humana na sua vida seguinte.
A história termina referindo que o autor da obra, Pu Songling, até conheceu este homem - ele conseguia falar desde o preciso instante em que nasceu, lembrava-se de muitas obras literárias que nunca tinha lido na vida presente, e face ao que se recordava de ter passado tratava sempre muito bem todos os animais. Palavras (quase) inspiradoras para as nossas vidas, comuns em literaturas como a chinesa ou indiana, mas não é totalmente claro se o autor se estava mesmo a referir a uma história completamente real, ou se, ao dizer que tinha conhecido este homem, nos escrevia já a sua ficção. Inclinamo-nos para a segunda opção, já que muitas outras histórias deste Liaozhai Zhiyi referem outros casos de pessoas que se lembravam de vidas anteriores, sendo até condenadas a viver sob a forma de animais como cães, cavalos, ovelhas, etc. Seria uma coincidência demasiado grande isso acontecer tantas vezes e a tanta gente num curto espaço de tempo...
Enfim, em jeito de conclusão, o que mais podemos dizer sobre este Liaozhai Zhiyi? Em si própria, a obra - que não parece existir traduzida em Português - é muito interessante para quem gosta de pequenos contos, porque cada história é quase completamente única e irrepetível, mas, salvo raríssimas excepções, não ocupa mais do que duas ou três páginas. Merece ser lida por quem goste das ideias apresentadas acima, mas convém deixar claro que o número de histórias contidas na obra parecem variar mediante a edição moderna; visto que o autor/compilador faleceu antes do texto ser publicado, parecem ter existido alguns manuscritos mais completos do que outros, o que justifica o "problema". A edição a que tivemos acesso continha cerca de 150 histórias, mas existem outras, com até quase meio milhar de relatos, e nestas coisas... quantas mais melhor, claro! Por isso, se gostam destes temas e de pequenos contos, fica o convite para esta leitura pouco conhecida no nosso país...