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Mitologia em Português

20 de Outubro, 2021

Porque se diz de alguém traído que "é cornudo" ou "levou um par de chifres"?

Hoje em dia, quando um homem é traído por uma mulher, costuma dizer-se que esta lhe pôs um par de cornos (ou chifres), fê-lo cornudo, e outras metáforas de conteúdo semelhante. Contudo, se já muitos se parecem ter interrogado sobre a origem de esta expressão, normalmente quem decidir procurá-la pela internet encontra um conjunto de informações muito horizontais mas também muito pouco conclusivas - de facto, citando parte da conclusão do site das Ciberdúvidas em relação a uma questão semelhante, "não há certezas sobre a origem da expressão idiomática, que parece basear-se numa metáfora que remonta à Antiguidade e cuja motivação não nos parece hoje evidente." Mas não concordamos com essa conclusão. Por isso, vamos então responder a esse pedido de informações de uma vez por todas...

Sobre a origem da expressão "pôr/levar um par de chifres" e cornudo

Na imagem acima pode ser vista a representação de um touro, com o seu evidente par de chifres. Ela tem quase 4000 anos, mas qualquer pessoa saberá reconhecê-la como esse animal, e nesta representação deve igualmente notar-se a presença de um orgão sexual de tamanho notável. Assim, na altura em que esta representação foi feita o touro era um símbolo das divindades e do seu enorme poder, destreza, fecundidade e coragem - por exemplo, referências extremamente antigas a "El", que pode ser visto como o predecessor do nosso Deus, até o equiparavam a um touro, e num píthos do século VIII a.C., de que já cá falámos quando abordámos o tema da esposa de Deus, os entes divinos também podem ser vistos acompanhados por estes animais.

Os cornos do poder, símbolo de divindade e de força

Agora, se desde quase a Idade do Bronze que os touros - e os respectivos cornos - eram um símbolo de poder, força e de virilidade, pôr/levar um par de chifres podia e devia, originalmente, ser visto como um insulto na medida em que se pretendia dizer que essa pessoa, que ainda não os tinha, não possuía um conjunto de características (positivas) que se associavam ao bovino. O insulto original, em si mesmo, não passava tanto pela colocação dos próprios cornos num homem, mas por se aludir à ideia de que ele ainda não tinha essa famosa virilidade e, como tal, não conseguia satisfazer devidamente a sua companheira. Simplificando-se, na altura "ter cornos" era positivo, mas "levar cornos" implicava a ausência actual desse elemento positivo e, como tal, era algo negativo.

 

Mas então, como é que "ser cornudo" passou a ser um insulto? Não deveria, face ao dito acima, ser um elogio, pelos cornos se tratarem de um símbolo de diversos tipos de poder? Claro que sim, não fosse o facto de essa simbologia original, muito antiga, ter sido esquecida ao longo dos séculos. Quando, na Grécia Antiga, Artemídoro de Daldis refere o caso de um homem que tinha medo que uma futura esposa lhe "pusesse os cornos", tornando-se prostituta, mas não é sequer completamente claro o que ele temia - se a traição, em si mesma; ou o facto de ela se tornar prostituta por não gostar do que tinha em casa. Contudo, o que sabemos é que os touros já não tinham, nessa cultura em específico, a mesma importância e significado de outros tempos anteriores (como pode ser visto no mito do rapto de Europa, em que o touro é uma mera transformação de Zeus, que o deus depois acaba por abandonar para consumar o seu desejo), pelo que é muito provável que já nem os Gregos da Antiguidade compreendessem bem o significado original da expressão que ainda utilizavam no seu dia-a-dia!

 

Resumindo e concluindo, originalmente "pôr um par de chifres" a alguém queria dizer que essa pessoa não tinha ainda a virilidade e pujança própria de um touro, elementos associados a tantas divindades antiquíssimas, mas ao longo dos tempos essa ideia inicial foi sendo esquecida e o próprio efeito - tornar-se "cornudo" - passou a confundir-se com a sua causa, perdendo-se a simbologia original e fazendo com que esse acto de levar um par de chifres se tornasse um símbolo de traição feminina, mais do que do poder sexual de quem os possuía. Entendido, de uma vez por todas?

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