Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Mitologia em Português

30 de Novembro, 2021

Cinco lendas de burlas online

Hoje, apresentamos aqui cinco lendas de burlas online - e assim podem ser consideradas, "lendas", pela fantasia das histórias que as envolvem. Fazêmo-lo porque, apesar de pensarmos que toda a gente já conhece estas coisas e jamais caíria numa esparrela, conhecemos uma jovem que recentemente acabou por fazê-lo, e lá andava toda preocupada por pensar que alguém tinha vídeos dela de cariz sexual e os ia divulgar caso ela não pagasse um resgate em bitcoins... vamos a isso?

Cinco Lendas de Burlas Online

A lenda do Príncipe da Nigéria

Esta lenda do Príncipe da Nigéria, também conhecida como esquema nigeriano, é talvez a mais famosa de todas as lendas de burlas online de que aqui falaremos hoje. Essencialmente, tudo começa com um e-mail em que é contada a história rocambolesca de um riquíssimo cidadão estrangeiro - que não tem de ser literalmente um príncipe ou viver na Nigéria... - que devido a um qualquer problema político não pode utilizar a sua vasta fortuna no país em que vive. Assim, ele contacta-vos - ignore-se, a bem da história, o fulcral "onde arranjou ele o meu contacto?" - e pede ajuda com a situação, prometendo que se o ajudarem a retirar esse dinheiro do respectivo país poderão ficar com um fatia significativa do mesmo, sempre na ordem dos milhões de dólares ou euros.

O que acontece se aceitarem? Essencialmente, vão sendo informados, uma e outra vez, que a pessoa precisa que paguem um custo de processamento por ela, uma taxa, umas luvas para este e aquele funcionário, e assim por diante, até que se cansem de esbanjar dinheiro, mas sem que alguma vez venham a receber um cêntimo de volta. Por isso, poupem o vosso dinheiro!

Gostaríamos de presumir que ninguém cai nisto, mas há uns anos atrás uma alfacinha passou por esta situação, tendo até ido ao Banco de Portugal tentar levantar o que era supostamente um cheque de dezenas de milhões de euros (!) Foi informada que tinha sido burlada, que mesmo que quisessem não tinham ali disponível aquele dinheiro para lhe dar, mas foi muitíssimo difícil convencê-la de que o cheque não era mesmo verdadeiro... e mesmo após várias tentativas, a pessoa ainda pensava que era o BP que estava a querer burlá-la, para ficar com todo aquele dinheiro para si, o que atesta bem a manipulação psicológica por detrás de burlas como estas.

 

A lenda da Chantagem por Pornografia

A Chantagem por Pornografia, a segunda das cinco lendas de burlas online de hoje, acontece ocasionalmente por e-mail, mas talvez por causa da pandemia parece ter-se tornado até mais comum nas redes sociais, online dating, e locais semelhantes. Na versão mais simples, recebem um e-mail de alguém que vos diz que instalou um vírus no vosso computador, gravou todos os vossos contactos, vos viu num site de conteúdos pornográficos, e a não ser que paguem X dinheiro em bitcoins (isto, por elas serem quase impossíveis de seguir), irá enviar esse vídeo a toda a gente que conhecem. Porém, na versão mais recente - e menos comum em Portugal, excepto no Tinder - falam com uma pessoa online, ela pede-vos pelo menos uma das vossas redes sociais (e copia os contactos de quem vos segue) e sugere terem sexo virtual com as câmaras ligadas. Se o aceitarem (otários!), a pessoa grava-vos e diz que se não pagarem X irá mostrar o vídeo a todos os vossos contactos.

Agora, tudo isto seria super fácil de evitar se as pessoas não fossem completamente otárias ao ponto de fazerem estas coisas estúpidas, mas toda esta burla levanta uma questão a que até os mais burrinhos deveriam saber responder - se pagarem o resgate, quem vos garante que a pessoa no outro lado do ecrã não vos continuará a pedir mais, e mais, e mais dinheiro? Na brincadeira, quando isto aconteceu à jovem já referida acima, um colega disse-lhe "olha, se a pessoa vai partilhar o vídeo... não podes enviar-me já uma cópia antecipada? Para... hum... só para pesquisa, claro!"; ela rejeitou, mostrando que não é assim tão parva, mas num sentido menos jocoso a grande questão acaba por ser essa mesmo - se pagarem o resgate, não têm qualquer forma de garantir que a pessoa apagou o vídeo e, portanto, mais vale não pagar nada!

 

A lenda da Violência Doméstica

Nesta terceira lenda de burlas online convém começar por deixar um ponto muito claro - a violência doméstica é horrível e existe. Ela deve ser levada muito a sério. E, talvez precisamente por essa gravidade, existem pessoas que decidiram usá-la para burlar os outros. Tudo começa com uma conversa inocente numa qualquer rede social. Ao longo do tempo, a pessoa vai-se revelando (quase) perfeita para vocês, mas neste momento tem um marido ou namorado muito ciumento e que abusa dela. Depois, um dia, contacta-vos e diz que precisa da vossa ajuda - finalmente decidiu sair de casa, deixar o abusador, mas precisa de um empréstimo para os primeiros tempos... e diz que vos paga de volta, não se preocupem! Por evidente compaixão, muita gente ajudaria com isso, mas é o errado a fazer, até porque o que se passa nesses casos é quase sempre uma burla com intenção de obter proveito monetário.

Então, qual deverá ser o caminho a tomar? É simples, fazendo fé nas palavras da pessoa, ela deverá ser reencaminhada para um site nacional de Violência Doméstica (damos aqui um exemplo, mas existem muitos mais) e para as forças de segurança. Se o caso for mesmo mesmo real, e não apenas uma burla mal-intencionada, uma pessoa que quer ajuda procura-a, aceita-a, e já existem em Portugal muitas associações que ajudam quem está nessas condições, incluindo dando-lhes guarida gratuita durante o tempo que for necessário.

 

A lenda do Falso Autor

Esta lenda do falso autor, a quarta lenda de burlas online de hoje, existe há muitos anos, desde os tempos em que uma mulher primeiro decidiu escrever sob o nome de um homem, mas em Portugal a sua versão mais famosa é provavelmente a de um certo casal misterioso. Essencialmente, esta burla online passa por representar falsamente quem anda a escrever determinados conteúdos. E porque acontece isto? Porque, por exemplo, se quiserem vender fraldas, isso é mais fácil apoiado por uma mãe de cinco filhos do que por um homem solteiro. De igual forma, se se pretender publicitar hotéis e restaurantes, é mais fácil, por exemplo, fazê-lo por intermédio de um casal de classe média (e tem de ser um casal porque isso permite publicitar temas normalmente associados aos dois sexos, duplicando a audiência), do que por dois ricalhaços de sangue azul.

O que fazer nestes casos? Tudo passa por uma interrogação muito simples - o que nos querem vender? Quer dizer, se alguém anda a realizar esta burla, certamente que o faz por alguma razão... e qual será ela? Descobrindo qual é a razão, descobrirão igualmente que está muito ligada ao que pretendem publicitar constantemente.

 

A lenda do E-mail Bancário

Burla online com nome do BPI

O grande problema em descrever esta quinta burla online é o facto de ela existir num número infinito de formas. Já o vimos associada a bancos, Finanças de Portugal, ISPs (entre eles o Sapo), em anúncios do Youtube, e muitos etcs. Ela passa, essencialmente, por vos veicular uma informação de carácter urgente e à qual, em circunstâncias normais, deveriam querer responder tão depressa quanto possível. Por exemplo, quando vem de um banco, diz que se não fizerem X irão perder acesso ao sistema online (ver a imagem acima); se for das Finanças, informa-vos de uma multa que têm para pagar até ao dia de hoje; podem igualmente ser informados de uma conta para pagar urgentemente, de que foi encontrado um qualquer virus no vosso sistema, e tantas outras coisas, que só estão limitadas pela imaginação humana para inventar novas preocupações.

Em todos esses e-mails ou anúncios vem sempre um ficheiro ou link associados. Com notória preocupação, fazem download de um ficheiro e... na verdade, é um virus que após esse momento tem acesso a todos os vossos dados. Para o evitar, convém terem anti-virus no computador (ou telemóvel) e só abrirem ficheiros cuja proveniência é 100% certa. Proteger-vos, nestas situações, depende apenas de vocês mesmos.

 

E assim termina esta breve descrição de cinco burlas online, naquele que é provavelmente um dos temas mais inesperados que alguma vez deixámos por cá, mas esperamos que ajude mais alguém... e, se alguma vez caíram em burlas online - sejam estas, ou alguma outra - por favor deixem as vossas histórias ali nos comentários!

Gostas de mitos, lendas, livros antigos e muitas curiosidades?
Recebe as nossas publicações futuras por e-mail - é grátis e irás aprender muitas coisas novas!
29 de Novembro, 2021

O dia em que Deus bebeu demais

Volte-se agora a temas mais interessantes. Falar de um lendário dia em que Deus bebeu demais implica recordar parte do que aqui dissemos quando falámos sobre a antiga Esposa de Deus - as crenças dos Judeus, e posteriormente dos Cristãos, não nasceram num vácuo. Elas são fruto de séculos e séculos de evolução. Assim, quem ler bem e com atenção o texto bíblico poderá apurar que à figura divina são aplicados um conjunto de nomes que lhe vêm de mitos e lendas de tempos anteriores, entre eles a designação El. Algumas dessas histórias até são referenciadas obliquamente no Antigo Testamento, para quem prestar muita atenção, enquanto que outras foram sendo progressivamente esquecidas. A que contamos aqui hoje provém de fontes ugaríticas com cerca de 3200 anos e pertence ao segundo desses dois grupos.

Terá este sido parecido com o dia em que Deus bebeu demais?

Conta-se então que El um dia decidiu dar uma festa. Convidou todos os outros deuses para ela - recorde-se, na altura este ainda era um panteão politeísta - e até lhes deu o direito de decidir que partes da carne queriam para si mesmos. E a história prossegue:

Os deuses comeram e beberam, / Beberam vinho até estarem cheios, / [Beberam] novo vinho até estarem bêbados.

Depois, o deus da Lua fingiu ser um cão e escondeu-se debaixo da mesa do banquete; duas deusas deram-lhe comida, até que o porteiro de El levou a mal toda a situação e lhes pediu que não o fizessem. Mas, depois, El continuou a beber mais e mais, até que teve de ser ajudado a regressar para sua casa, e:

El caiu como o corpo de um falecido, / El tornou-se como aqueles que descem ao submundo.

Para terminar esta pequena história, um deus confrontou-o com a ocorrência e duas deusas foram procurar os ingredientes para uma mistura que pudesse curar quem está bêbado, que incluíam pêlo de cão e fezes (entre outras coisas agora desconhecidas). O que isto tem de notável é que na fonte literária que nos chegou, esta pequena lenda do dia em que Deus bebeu demais é depois seguida por uma cura, supostamente real, para todos aqueles que beberam demais, e que até parece mencionar os mesmos componentes que a própria história. Seria, nesse sentido, a lenda uma espécie de mnemónica para uma cura médica, ou uma mera coincidência de circunstâncias? Não sabemos.

 

Mas... quem perceber menos destas coisas poderá querer fazer uma grande pergunta, i.e. será que é correcto identificar este El com o "nosso" Deus? Partilham, no Antigo Testamento, um mesmo nome, mas será isso suficiente para dizer que ambos até são uma só e a mesma figura?

 

A nós, parece-nos correcto dizer que El é um antecessor de Deus da mesma forma que o Zeus dos Gregos o era de Júpiter dos Romanos. Em várias outras fontes ugaríticas até podem ser encontrados vectores de ligação com o Antigo Testamento, e.g. uma das lendas ainda reconhecíveis até menciona as aventuras de um filho do profeta Daniel (ou Danel, neste original), um tal Aqhat; e todo este episódio pode até lembrar-nos, em linhas gerais, o da (futura) embriaguez de Noé. O caso da Esposa de Deus é flagrante nessa ligação, porque ainda pode ser encontrado na Bíblia dos nossos dias por aqueles que a forem ler com atenção e numa edição séria (mas, infelizmente, a maior parte dos leitores passa-lhe simplesmente por cima). Por isso, sim, esta lenda do dia em que Deus bebeu demais pertencia, anteriormente, à figura a que hoje chamamos "Deus", mas foi sendo esquecida ao longo dos séculos, até porque tinha uma ligação clara ao panteão politeísta dos Ugaritas, não fazendo qualquer sentido sem a presença de essas outras figuras divinas, que os autores do Antigo Testamento tentaram fazer esquecer o melhor que puderam...

Gostas de mitos, lendas, livros antigos e muitas curiosidades?
Recebe as nossas publicações futuras por e-mail - é grátis e irás aprender muitas coisas novas!
28 de Novembro, 2021

"Turma da Mónica - Lendas Brasileiras" de Maurício de Sousa

A Turma da Mónica - Lendas Brasileiras, da autoria de Maurício de Sousa, é um daqueles livros que é bom para os pequenotes nas terras do Brasil. Essencialmente, ele conta, de uma forma muito simples e com imagens bonitas para os mais pequenos, algumas das principais lendas do Brasil.

Turma da Mónica - Lendas Brasileiras

Infelizmente, esta Turma da Mónica - Lendas Brasileiras também tem um problema, que é o facto de adaptar significativamente os conteúdos das lendas originais. Por exemplo, sobre o Lobisomem, o autor diz que "quando uma família tem o oitavo filho homem, depois de sete filhas mulheres, o menino se transforma em lobisomem após completar 13 anos", que é ligeiramente diferente da versão original da história, em que esta maldição apenas afectava o sétimo filho de um conjunto de sete. Acrescenta, mais à frente, que "o lobisomem não morre nunca, não envelhece e nem fica doente", e que esta criatura "precisava visitar sete cemitérios antes do amanhecer. Se não fizesse isso, não conseguiria voltar à forma humana e permaneceria transformado em lobo para sempre.", que são elementos que não conseguimos encontrar em nenhuma fonte significativa de lendas brasileiras.

 

Sobre a Mula Sem Cabeça, o autor dá-nos uma informação curiosa - diz que esta criatura tem a cabeça "envolvida por uma tocha de fogo", ou seja, na verdade ela até tem cabeça, mas como está sempre envolta numa chama constante, não é possível ao infeliz atacado vê-la. Continua, informando que quem esconder as unhas e dentes não é atacado por este monstro, e que ele pode ser derrotado - regressando à sua forma original - se lhe tiraram os freios que tem na boca. De onde vêm estas informações? Também não as conseguimos encontrar em nenhuma fonte significativa de lendas brasileiras, sendo possível que venham de versões orais.

 

Curiosamente, sobre o Saci, o autor desta Turma da Mónica - Lendas Brasileiras diz que "para prender um, é preciso jogar dentro do redemoinho um rosário de mato bento ou uma peneira", que já é mais consistente com o que sabemos dessa figura. É provável que Maurício de Sousa tenha lido o famoso Resultado de um Inquérito de Monteiro Lobato.

 

Além destas lendas, a obra Turma da Mónica - Lendas Brasileiras, de Maurício de Sousa, conta também as do Boitatá, do Boto Rosa, do Curupira, da Iara, do Negrinho do Pastoreio, da Vitória-Régia, do Uirapuru, da Cabra Cabriola e da Cobra Honorato. Todas elas estão bem ilustradas, com um estilo muito semelhante ao da outrora-famosa Turma da Mónica, mas salvo o caso de algumas informações que não se sabe muito bem de onde vêm - como as que apontámos acima, em forma de exemplo - esta obra é, sem dúvida, interessante para os mais novos, especialmente em terras do Brasil.

Volume Individual destas Lendas Brasileiras

Porém, uma pequena nota final - estas histórias da Turma da Mónica - Lendas Brasileiras existem em formato individual (ver um exemplo acima), mas também num volume que as compila a todas. É esse que mostramos na primeira imagem, ali mais em cima, e é essa, naturalmente, a versão que consideramos mais interessante para os leitores, até por apresentar aquelas que parecem ser todas as histórias desta colecção!

Gostas de mitos, lendas, livros antigos e muitas curiosidades?
Recebe as nossas publicações futuras por e-mail - é grátis e irás aprender muitas coisas novas!
26 de Novembro, 2021

As lendas do Corpo-Seco

As lendas do Corpo-Seco provêm de terras do Brasil, onde aparecem atestadas em diversos estados. Em todos eles o cerne da história parece ser sempre o mesmo ou, no mínimo, muito semelhante - dizia-se que esta hedionda criatura nascia do corpo de um ser humano falecido, quando este tinha cometido na sua vida algum pecado tão horrendo que nem os Céus ou o Inferno queriam aceitá-lo dentro das suas portas. Então, estava condenada a vaguear pelo mundo dos vivos até ao fim dos tempos (talvez na companhia do Judeu Errante). Naturalmente que, face a esta informação basilar, uma questão se impõe imediatamente - que pecado assim tão abominável terá essa pessoa cometido, para ser sujeita a um castigo tão invulgar?

A lenda do Corpo-Seco

Numa primeira versão da lenda do Corpo-Seco, o primeiro homem a sofrer este destino foi um agricultor que, inicialmente, era muito pobre. No mais completo dos desesperos fez uma promessa a Nossa Senhora, dizendo-lhe que caminharia até um determinado santuário se esta o fizesse rico. O pedido à santa acabou por se realizar, mas depois este homem, cujo tempo o nome há muito apagou, acabou por ir ao santuário mas não da forma que tinha prometido - fez a viagem a cavalo, num carro de bois, ..., com uma versão recente de toda a história a referir até um avião - o que o levou a ser castigado após a morte.

Uma segunda versão diz que este monstro nasceu do cadáver de um homem que era muitíssimo maldoso, que até batia muitas vezes na sua própria mãe, levando depois a que a mãe-terra recusasse recebê-lo no seu seio.

Já uma terceira história revela que o Corpo-Seco tinha sido, originalmente, um homem bastante rico mas muito sovina, que nem nunca dava qualquer esmola ao auxílio seja aos mais pobres, seja a membros da igreja católica. Então, quando um dia ele rejeitou auxiliar dois monges, insultando-os e quase até batendo neles, estes amaldiçoaram-no com um destino que parece ser mais terrível que a própria morte.

Um possível Corpo-Seco em versão feminina

Mas, curiosamente, estas lendas não se referem somente a figuras do sexo masculino. Uma quarta versão refere que, numa dada altura, uma mulher estava para ser sepultada em terras do Brasil. Contudo, cada vez que tapavam o túmulo, horas depois o seu corpo era expelido pela própria terra, que parecia recusar tê-la no seu cerne (como numa das versões acima - será que estão relacionadas? Será que esta mulher também batia na sua mãe?). Tentaram-se várias alternativas, sempre sem qualquer sucesso, até que ela acabou por ter o seu descanso eterno apenas quando foi sepultada num local muito específico, que depois tomou o seu (novo) nome em virtude desta famosa falecida - uns dizem que isso se passou na Serra do Corpo-Seco, em Ituiutaba (no estado de Minas Gerais), enquanto que outros dizem que o local foi mesmo uma misteriosa "Caverna ou Gruta do Corpo Seco", de localização agora mais incerta.

 

Resumidas estas quatro versões, qual a origem de todas estas lendas do Corpo-Seco, nas suas diversas versões? Encontrámos algumas alusões demasiado vagas a uma proveniência portuguesa, mas não conhecemos qualquer lenda nacional semelhante a estas. Assim, é provável que estas narrativas tenham surgido da ideia de que alguns corpos se decompõem mais depressa que outros - o que, segundo a sabedoria popular, dependia do seu nível de pecados* - ou para incentivar certos comportamentos (bondosos) face a outros que eram vistos como muito negativos, como também acontecia com a famosa lenda da Mula Sem Cabeça, e como se pode depreender pelos actos (malvados) que foram motivo de punição nestas lendas.

 

 

*- Nesse contexto, há que esclarecer que se acreditava que os corpos dos santos permaneciam incorruptos após a morte, dada a sua pureza e como ainda hoje pode ser visto em diversas igrejas (e.g. o exemplo de São Torcato), enquanto que os dos pecadores voltavam muito rapidamente ao pó da terra.

Gostas de mitos, lendas, livros antigos e muitas curiosidades?
Recebe as nossas publicações futuras por e-mail - é grátis e irás aprender muitas coisas novas!
24 de Novembro, 2021

A lenda da Cruz de Caravaca

Quando se fala de cruzes lendárias, é provável que a antiga Cruz de Caravaca, localidade no sudeste de Espanha e próximo de Múrcia, seja uma das mais conhecidas, pelo menos na Península Ibérica. Quanto mais não seja, e mesmo para quem ainda não conheça a sua história, pelo facto de se tratar de uma cruz dupla, como pode ser vista nesta pequena imagem ilustrativa do relato que se segue.

A lenda da Cruz de Caravaca

Conta-se então que no tempo da Reconquista Cristã de Espanha, quando a povoação de Caravaca ainda se encontrava na posse dos Muçulmanos, um determinado emir sentiu uma enorme curiosidade em ver os rituais cristãos, em particular o da comunhão. Como tal, entre os prisioneiros que tinha capturado numa batalha recente tentou localizar alguém que soubesse realizar esse ritual, e até acabou por encontrar um sacerdote da região. Este aceitou realizar o ritual da comunhão e foi procurar tudo aquilo de que necessitava para o realizar, mas quando chegou o momento fulcral notou que se tinha esquecido de uma "pequena" coisa, uma cruz. Mas pouco depois, enquanto sentia um enorme desespero no seu coração, o emir, que estava a seu lado, disse-lhe para olhar para uma janela próxima, onde puderam ser vistos dois anjos a carregar uma cruz dupla. Face a um tamanho milagre, o emir depressa se converteu ao Cristianismo, e a chamada Cruz de Caravaca pôde ser vista na igreja local durante muitos anos....

 

Seria, como parecerá óbvio, importante vê-la para que se pudesse atestar a verdade de toda a história, como no caso do milagre mexicano da Virgem de Guadalupe, mas infelizmente essa cruz medieval foi roubada durante a noite no Carnaval de 1934, para não tornar a ser vista - hoje existe apenas uma reprodução da original no local. Presume-se que ainda se dêem alvíssaras a quem revelar o paradeiro da anterior, aquela cuja lenda diz que foi trazida dos céus por dois anjos, pelo que se souberem onde ela se encontra hoje poderão reportá-lo às autoridades competentes e ainda ter uma boa recompensa. Os cidadãos de Caravaca de la Cruz certamente que o agradeceriam.

 

Assim, resta apenas uma questão essencial - porque é que a Cruz de Caravaca tem quatro braços, em vez dos dois tão habituais? Ouvimos muitas teorias mas nenhumas certezas, com as respostas mais interessantes, e que nos pareceram as mais fidedignas, a dizerem que esse aspecto invulgar se deve ao facto de se ter tratado de um tipo de cruz ortodoxa, vinda de alguma parte incerta; ou por esta cruz celebrar especificamente aquela em que Jesus Cristo foi crucificado - até por, segundo se diz, ter tido um pequena parte da Cruz Verdadeira no seu interior - tendo por isso no seu topo um crucifixo, em vez de uma mera figura do Redentor (como é mais habitual e até pode ser visto em incontáveis outras igrejas), i.e. é uma cruz grande com um crucifixo pequeno na sua parte superior. Verdade ou não, são boas teorias para tentar explicar o seu aspecto curioso, tão raro nas igrejas do nosso país mesmo nos nossos dias de hoje... e se tudo isto é verdade ou não, não deixa de ser uma bela história do cristianismo medieval!

Gostas de mitos, lendas, livros antigos e muitas curiosidades?
Recebe as nossas publicações futuras por e-mail - é grátis e irás aprender muitas coisas novas!
23 de Novembro, 2021

O que diz o hino da Champions League? (com tradução portuguesa)

Em dia de futebol europeu costuma surgir frequentemente uma questão - o que diz o hino da Champions League? E, nesse sentido, será que até é possível traduzi-lo para português? Face a essa questão dupla, comece-se, portanto, por recordar a música em questão:

Quem prestar atenção a esta música da UEFA Champions League, tal como a reproduzimos aqui, poderá notar, sem muita dificuldade, que ela tem mais versos do que aquela versão que tende a aparecer nas nossas televisões. Isso acontece porque, na verdade, o hino em questão, datado do ano de 1992, raramente é tocado na sua forma completa, mas quase sempre numa versão simplificada, de que apenas são incluidos alguns dos seus versos, em específico o refrão, que sublinhamos na reprodução abaixo. Assim, na sua forma completa, a canção tem a seguinte letra, a que aqui também juntamos uma breve tradução para língua portuguesa:

Hino da Champions League, com tradução

Ce sont les meilleures équipes [Estas são as melhores equipas]
Es sind die allerbesten Mannschaften [Estas são as melhores equipas]
The main event [O evento principal]

Die Meister [Os Mestres]
Die Besten [Os Melhores]
Les grandes équipes [As grandes equipas]
The champions [As campeãs]

Une grande réunion [Uma grande reunião]
Eine grosse sportliche Veranstaltung [Um grande evento desportivo]
The main event [O evento principal]

Die Meister [Os Mestres]
Die Besten [Os Melhores]
Les grandes équipes [As grandes equipas]
The champions [As campeãs]

Ils sont les meilleurs [Eles são os melhores]
Sie sind die Besten [Eles são os melhores]
These are the champions [Eles são os campeões]

Die Meister [Os Mestres]
Die Besten [Os Melhores]
Les grandes équipes [As grandes equipas]
The champions [As campeãs]

Não é propriamente uma canção muito complexa, ou particularmente bela, este hino da Champions League. Porém, parece que o grande problema em compreendê-la é o facto de ter versos em três línguas diferentes - Alemão, Francês e Inglês - o que pode confundir significativamente aqueles que a ouvem. Ainda assim, este é um daqueles exemplos em que a forma parece importar mais do que o próprio conteúdo. Como atesta um jogador de futebol, citado no site da UEFA, “It’s always emotional to hear the Champions League anthem”, e talvez seja mesmo esse o grande objectivo da canção, uma forma muito concreta, mais do que um conteúdo belo, que lhe dá um sentido quase religioso entre os jogadores, técnicos e fãs. Talvez seja até por isso que, mesmo que sejam poucos os que sabem a letra deste hino, muitos o conseguem entoar e reconhecer sem dificuldades de maior...

Gostas de mitos, lendas, livros antigos e muitas curiosidades?
Recebe as nossas publicações futuras por e-mail - é grátis e irás aprender muitas coisas novas!
21 de Novembro, 2021

O (outro) Jardim Zoológico de Lisboa

Quando, hoje, se fala de Jardim Zoológico de Lisboa, as pessoas tendem quase sempre a pensar num recinto lisboeta que está localizado na chamada Quinta das Laranjeiras. E é, de facto, aí que ele está, desde 1905 até aos nossos dias de hoje, mas o que já poucos parecem saber é que a capital de Portugal já teve, em outros tempos, um zoo num local muito diferente. Entre os anos de 1884 e aproximadamente 1905 da sua história - ou seja, durante quase 21 anos - ele esteve num local que ora chamam "Parque de São Sebastião da Pedreira", ora chamam "Parque da Palhavã", ou mesmo "Parque de Santa Gertrudes", mas que na verdade são quase um e o mesmo sítio... e que, ainda menos pessoas parecem saber, ainda existe nos nossos dias de hoje!

Entrada do antigo Jardim Zoológico de Lisboa

Na imagem acima pode ser vista uma rua de Lisboa por onde passam milhares e milhares de pessoas todos os dias. Esta entrada acastelada foi outrora a do Jardim Zoológico de Lisboa - ou, como era chamado na altura, o "Jardim Zoológico e D'Acclimação". O nome gravado nesta entrada desapareceu com os anos, mas a entrada ainda lá está, impávida e serena, como no primeiro dia de todo o espaço. Na altura a entrada custava "100 reis" (não fazemos ideia de quanto será em escudos ou euros), "50 reis para crianças até aos 12 anos e militares sem graduação", com preços que dobravam às quintas-feiras.

 

Agora, uma pessoa mais curiosa poderá perguntar o que aconteceu a todo o espaço... chegou aos nossos dias um pequeno guia literário deste primeiro zoo, datado de 1884, em que são explicadas as regras do local, onde são reveladas as 56 espécies que lá estavam, e em que é até apresentado um mapa de todo o espaço. Nesse mapa - já voltaremos a ele - é dito que o recinto tinha "14 hectares, oito de parque e seis de terreno arrendado", e o que aconteceu foi que em poucos anos parte desse terreno - presume-se que o arrendado - deixou de estar disponível, o que levou os responsáveis a procurar um novo local para o seu Jardim Zoológico de Lisboa, acabando este por fixar-se, em 1905 e como já dito antes, na Quinta das Laranjeiras. Mas, então, onde está hoje esse espaço anterior?

Mapa do Jardim Zoológico de Lisboa, no espaço antigo

Na imagem acima pode ser vista uma comparação entre o espaço do antigo Jardim Zoológico de Lisboa e o mesmo local tal como ele está nos dias de hoje. A laranja e a vermelho assinalaram-se uma torre que existe no local e a entrada já mostrada acima. Postos assim, lado-a-lado, os dois espaços, é fácil notar a semelhança que ainda têm hoje, passado mais de um século, até na geometria das ruas que circundam o local, com a Fundação Calouste Gulbenkian a ocupar, agora, parte do jardim original. É difícil saber-se se, passado esta centena de anos, ainda algo resta do espaço zoológico de outros tempos, mas podemos tentar perceber isso...

 

No mapa acima, como já foi referido, encontravam-se oito hectares de parque próprio e seis de terreno arrendado. O primeiro desses dois talhões está na parte superior da imagem, enquanto que o espaço arrendado era onde se localizava a entrada, ou seja, na parte inferior. A existir ainda algo deste espaço antigo, teria de ser entre o que é agora o Museu Calouste Gulbenkian e a entrada do recinto zoológico (o remanescente, na parte superior da imagem, teve vários usos ao longo das décadas, incluíndo o de Feira Popular em 1943). Não abundam, imagens do espaço em questão, mas ele pode ser visto numa gravura de um jornal da época, aqui invertida para reter a perspectiva apresentada acima:

Interior do antigo Jardim Zoológico de Lisboa

Quase ao centro pode ser vista a entrada do recinto (o palácio ao fundo ainda existe, pertence hoje ao Exército), e do lado esquerdo está a torre a que já aludimos acima. Percebem-se aqui pelo menos duas estruturas interiores do jardim, uma ao lado esquerdo da entrada e outra quase na margem do lago... mas parecem ambas frágeis, temporárias, incapazes de sobreviver a um século do nosso tempo humano. Portanto, se algo ainda nos chegou do espaço deste antigo Jardim Zoológico de Lisboa, será apenas a própria entrada, a torre que flancava o recinto, e talvez algumas árvores do seu interior, todos eles num espaço privado a que não é fácil conseguir aceder nos nossos dias. Mas a referência a um espaço que em outros tempos até parece ter sido bonito, essa, poderá perdurar na memória de todos aqueles que se cruzem com a sua antiga entrada, hoje na Rua Marquês de Fronteira (antiga "Estrada da Circunvalação"), a menos de 200 metros do Corte Inglés...

Gostas de mitos, lendas, livros antigos e muitas curiosidades?
Recebe as nossas publicações futuras por e-mail - é grátis e irás aprender muitas coisas novas!
19 de Novembro, 2021

O mito da Caça ao Javali de Cálidon

A Caça ao Javali de Cálidon é um de aqueles mitos gregos que se presume que em outros tempos tenha tido imensa popularidade - uma espécie de Vingadores da Marvel mas com heróis gregos - mas que infelizmente também se foi perdendo ao longo dos tempos. Hoje, conhecemos apenas alguns dos seus episódios mais emblemáticos, mas é quase certo que eles não captam a beleza e complexidade do original.

A Caça ao Javali de Cálidon

A imagem acima demonstra isto mesmo. Quem souber ler Grego Antigo poderá ver ali os nomes de muitas figuras envolvidas em todo o episódio - Melanion e Atalanta, Peleu e Meleagro, do lado esquerdo; o gigantesco Javali de Cálidon ao centro, acompanhado por um herói que este já matou (a legenda parece dizer Anteu, mas certamente não o filho de Gaia , e algumas versões referem que um tal Anceu foi morto por esta besta); entre muitas outras figuras heróicas da época, como Castor e Pólux.

 

Mas o que se passou em todo este mito grego pouco conhecido? Sabemos que os diversos heróis se juntaram para combater este poderoso Javali de Cálidon (também conhecido como Javali da Calidónia ou Javali Etólio), que alguns autores diziam ser filho da Porca de Cromion, e que ele foi enviado por uma deusa após o rei local lhe ter recusado um sacrifício. Presume-se que tenha sido um confronto bastante difícil, até pela necessidade de tantos intervenientes, mas sabemos que Atalanta foi a primeira a feri-lo, sendo o animal depois morto por Meleagro. Quando este último ofereceu os seus prémios à heroína pelo acto corajoso, outros heróis opuseram-se à oferta, levando a muitas confusões entre eles e fazendo com o oferecedor até matasse alguns. Porém, tendo ele conduzido à morte de alguns familiares da própria mãe, esta deitou um toro mágico ao fogo, que tinha em sua posse e que estava ligado misticamente à vida do próprio herói*, matando-o também a ele.

 

Num outro episódio da mesma aventura sabe-se que Peleu, pai de Aquiles, matou por acidente um herói que lhe tinha dado guarida... mas se até podíamos tentar adicionar, aqui e ali, mais detalhes sobre toda a aventura, o crucial a saber, em relação a toda esta caça ao Javali de Cálidon, é que foram muitos os heróis envolvidos nela e, aparentemente, todos eles tinham alguma espécie de papel no mito original. Já não sabemos quais seriam para todos eles, até porque as versões que nos chegaram apresentam algumas composições divergentes para o grupo de heróis que defrontaram a besta, mas parece correcto dizer-se que, na forma original do mito (que até já era conhecido de Homero!), todos eles tinham um papel. Presume-se que tenha sido mesmo um grande mito, nessa sua forma original, como aqui se tentou deixar claro, mas com a excepção de algumas referências tardias, em autores como Ovídio, já mesmo pouco se sabe sobre as aventuras originais, preservadas em pinturas de vasos como o acima...

 

 

*- Sobre este tema, da vida de um herói que está ligada a um qualquer elemento mágico, há que frisar que ele é bastante incomum nos mitos da Antiguidade, mas foi crescendo de importância ao longo dos séculos, e ressurge em diversos mitos e lendas da Idade Média, bem como em histórias populares mais tardias.

Gostas de mitos, lendas, livros antigos e muitas curiosidades?
Recebe as nossas publicações futuras por e-mail - é grátis e irás aprender muitas coisas novas!
18 de Novembro, 2021

O Livro Vermelho de Mao Tse-Tung

Existem livros cuja importância cultural nas respectivas culturas é imensa, mas que ao mesmo tempo são quase esquecidos em outras. Já cá falámos, por exemplo, do Ramayana da Índia ou do Kebra Nagast, que muito poucos lêem em países lusófonos. O chamado Livro Vermelho (em virtude da cor da capa da sua edição mais famosa, já que o original lhe dá o nome de 毛主席语录), de Mao Tse-Tung, é uma dessas obras, de uma importância enorme em terras da China, mas que em Portugal conhecemos quase apenas como uma obra comunista e pouco mais. Por isso, de que fala mesmo este texto?

O Livro Vermelho de Mao Tse-Tung

Confesse-se, nunca pensámos lê-lo, até que um aluno chinês nos veio emprestar uma tradução inglesa da obra. Então, sentimos que tínhamos mesmo de ler este Livro Vermelho. Ele é, essencialmente - e como o título original, que pode ser visto acima, já indicava - uma compilação de citações de Mao Tse-Tung sobre diversos temas. São quase todas de conteúdo político, mas quem for ler a obra também poderá encontrar por lá ideias filosóficas que mereceriam ser mais exploradas num contexto ocidental. O que até nos trouxe um problema inesperado - quando fomos ler esta compilação, pensámos inicialmente em recolher apenas três ou quatro citações para apresentar aqui, mas acabámos por encontrar muitas mais, e até uma pequena lenda de origem chinesa. Por isso, aqui ficam alguns momentos da obra, que decidimos terminar com essa referência do autor a uma lenda local:

[1-] As classes lutam, algumas classes triunfam, enquanto que outras são eliminadas. Esta é a história da civilização há milhares de anos. Interpretar a História por este ponto de vista é materialismo histórico; estar em oposição dele é idealismo histórico.

 

[2-] Entre os Brancos dos Estados Unidos são apenas os círculos reaccionários no poder que oprimem os Negros. Não podem de nenhuma forma representar os trabalhadores, os agricultores, os intelectuais revolucionários, ou outras pessoas com conhecimento, de que fazem parte a maior parte das pessoas brancas.

 

[3-] Todos os reaccionários são tigres de papel. Na sua aparência, os reaccionários causam medo, mas na realidade não são tão poderosos. De um ponto de vista a longo prazo, não são os reaccionários mas as próprias pessoas que são poderosas.

 

[4-] A toda a gente deve ser dado o direito de falar, seja a pessoa quem for, desde que não seja hostil e não faça ataques maliciosos, e não importa que diga algo de errado. Os líderes de todos os níveis têm o dever de ouvir os outros.

 

[5-] Devemos ser modestos e prudentes, ter cuidado com a arrogância e a imprudência, e servir o povo com coração e alma...

 

[6-] De onde nascem as ideias correctas? Será que caem do céu? Não. Elas são inatas da mente? Não. Elas nascem apenas da prática social; elas vêm dos três tipos de prática social, da luta pela produção, da luta de classes e de experiências científicas.

 

[7-] Não conseguem resolver um problema? Bem, investiguem-no, nos seus factos presentes e na sua história passada! Quando tiverem investigado o problema de forma completa, saberão como o resolver. As conclusões nascem invariavelmente de uma investigação, não antes dela.

 

[8-] Existem um número de pessoas, e não são poucas, que são pouco responsáveis pelo seu trabalho, preferindo o fácil ao difícil, dando aos outros as cargas difíceis e escolhendo para si mesmos as fáceis. A cada momento pensam em si antes de pensar nos outros. Quando fazem algum pequeno contributo, incham-se com soberba e gabam-se constantemente, com medo que os outros não saibam o que eles fizeram. Não sentem compaixão face aos outros e são frios, indiferentes e apáticos.

 

[9, para os jovens -] O mundo é vosso, bem como nosso, mas em última análise ele é vosso. Vocês, jovens, repletos de vigor e vitalidade, estão na flor da vida, como o sol às oito e nove da manhã. A nossa esperança está em vocês. [...] O mundo pertence-vos. O futuro da China pertence-vos.

 

[10-] Existe uma história antiga chinesa chamada "O Idoso Louco que Removeu as Montanhas." Fala de um idoso que viveu no norte da China há muito, muito tempo, e que era apenas conhecido como o Idoso Louco da Montanha do Norte. A sua casa tinha uma porta para o lado do sol e fora dela estavam dois grandes picos, Taihang e Wangwu, que lhe obstruíam o caminho. Com grande determinação, levou os seus filhos a escavar essas montanhas com enxadas.
Outro homem de longa idade, conhecido como o Idoso Sábio, viu-os e disse-lhes de forma irónica, "Que absurdo fazerem isto! É impossível tão pouca gente conseguir escavar estas montanhas gigantescas."
O Idoso Louco respondeu "Quando eu morrer, os meus filhos irão continuar; quando eles morrerem, irão existir os meus netos; e depois os seus novos filhos e netos, até ao infinito. Tão altas quanto sejam, as montanhas não podem crescer mais e com cada pedaço que escavarmos ficarão mais pequenas. Porque não as conseguiremos afastar?"
Tendo refutado as ideias erradas do Idoso Sábio, ele continuou a escavar todos os dias, sem nunca mudar a sua ideia. Então deus ficou compadecido e enviou dois anjos, que afastaram as montanhas com as suas próprias costas*.

 

Se este Livro Vermelho de Mao Tse-Tung apresenta muitas outras citações do famoso político chinês, num total de mais de 300, talvez esta pequena lenda recordada pelo autor, a que ele faz seguir uma breve interpretação (que omitimos aqui), seja a sequência mais digna de nota no contexto deste espaço. Mas, de um modo mais geral, esta é uma obra política, mais do que filosófica ou mitológica, de uma importância significativa para quem quiser compreender alguns aspectos da cultura chinesa dos nossos dias.

Mas... Será que a devem ler? Debatemos esse ponto várias vezes, até nos apercebermos que se trata de uma obra que, entre nós, apenas apelará a quem tem interesse nas Ciências Políticas ou na cultura chinesa. Os restantes leitores até poderão encontrar nela algum interesse ocasional, aqui e ali, mas de um modo geral este Livro Vermelho terá provavelmente pouco apelo para os leitores lusófonos.

 

 

*- Como a obra que lemos estava em tradução inglesa, é portanto provável que esta última frase seja uma adaptação do texto original, referindo-se originalmente a uma qualquer divindade da China e respectivo séquito divino.

Gostas de mitos, lendas, livros antigos e muitas curiosidades?
Recebe as nossas publicações futuras por e-mail - é grátis e irás aprender muitas coisas novas!
16 de Novembro, 2021

Os poderes do Bruxo de Fafe são verdadeiros?

Desde há uns anos para cá que se ouve falar nas notícias desportivas de uma tal figura chamada Bruxo de Fafe. De nome Fernando Nogueira, ele é provavelmente um dos mais famosos ocultistas de Portugal - talvez a par do Professor Bambo e de um tal Mestre Alves - mas nunca é muito bem explicado o que ele faz ou deixa de fazer. Normalmente a questão seria fácil de resolver, se ele tivesse um site na internet ou uma página nas redes sociais com os contactos - o que não parece ser o caso - mas na ausência dessa informação foi-nos colocada uma questão inesperada - afinal, em que acredita esta figura? Ou, se assim preferirem, se o famoso Professor Bambo se diz um "prestigiado médium vidente", em que consistem os alegados poderes desta outra figura do ocultismo nacional?

Quem é o Bruxo de Fafe?

Quem procurar algumas imagens do senhor depressa se aperceberá que ele não é padre católico, nem estudou Teologia, mas rodeia-se sempre de uma iconografia essencialmente cristã, o que é comum em diversas religiões da América do Sul. Esta ideia parece até ser confirmada por uma entrevista muito recente em que, ameaçando Joana Marques, disse as seguintes palavras:

Ela está-se a meter com o bruxo de Fafe... Ou pára ou tem o Inferno atrás para toda a vida. Nunca mais se vai ver livre do Diabo. (...) Com o meu trabalho, invocarei todos os exus do mar e dos cemitérios e ela vai ter a maldição dos mortos-vivos.

A palavra mais importante nestas ameaças e estranhas crenças é provavelmente "exus". Usada assim, no seu plural, não se refere a um orixá, mas a um conceito da Umbanda - uma religião afro-brasileira, constituída por uma espécie de fusão de crenças africanas com o Cristianismo - que pode ser resumido na nossa cultura portuguesa como um espírito intermediário entre os vivos e os mortos. Esse tema, em si, é até muito interessante, mas terá de ficar para outro dia, face a uma questão mais relevante - será que este Fernando Nogueira viveu no Brasil, num qualquer país africano, ou estudou com alguém que perceba dessas religiões?

Infelizmente, não parecem existir entrevistas em que ele revele o seu passado de forma fidedigna, mas conseguimos encontrar uma intervenção televisiva de 2013 que revela alguns elementos muito interessantes... mas cuidado, este vídeo pode ser impróprio para os mais sensíveis, até porque tem alguns momentos que fazem relembrar exorcismos como o de Anneliese Michel:

Neste vídeo Fernando Nogueira não diz ter aprendido o que sabe no estrangeiro, nem nos informa que o seu conhecimento lhe foi transmitido por uma outra pessoa, o que é muito curioso... E ainda mais porque no vídeo refere conceitos como "porta aberta", "chakras" e "incensos", faz alusão ao acto de "incorporar", a "poderes espirituais", "conhecimentos bíblicos", e a muitas outras coisas que... para quem perceber pouco ou nada destes temas, são ideias e conceitos que pertencem a religiões e crenças místicas completamente diferentes. É, por exemplo, importante frisar que mesmo na Umbanda a cura é normalmente feita por intermédio dos exus, mais do que pela intervenção humana, o que não acontece nos exemplos deste vídeo, em que o dito bruxo até diz transportar os espíritos malévolos para o seu corpo. Assim, aquilo em que o Bruxo de Fafe acredita, a origem e fonte dos seus poderes, é supostamente uma miscelânea de crenças completamente díspares, em que, para citar uma expressão bem portuguesa, "não bate a bota com a perdigota"*, tomando-se proveito do grande desconhecimento, ou mesmo receio, que o público nacional tem desses temas.

 

Portanto, como nos podia perguntar algum leitor, serão os poderes do Bruxo de Fafe dignos de algum crédito? Será que as pessoas no vídeo foram verdadeiramente curadas por ele? Será que ele consegue exorcizar demónios e afastar feitiços malévolos, enquanto também os ameaça fazer aos seus próprios inimigos, como se diz que uma dia até fez ao Benfica? Será ele um novo Luís de La Penha? Nestas coisas de crenças a resposta fica sempre para os leitores, mas deixamos também uma questão que nos parece fulcral - onde aprendeu ele todo aquele conjunto de terminologias que utiliza, que provêm de crenças religiosas totalmente distintas? Mesmo que se pretenda acreditar que os seus conhecimentos lhe foram dados por uma qualquer entidade divina (desconhecida, já que nunca a nomeia), como se compreende essa constante discrepância de crenças, que num momento fala de "exus", no seguinte recorre a incensos de múltiplas variedades, num terceiro já denota crenças espíritas, e depois até fala de ideias relacionadas com vodu ou com a Bíblia? Não vos parece estranho?!

Se as coisas são para ser assim, tentemos até algo de completamente novo - em virtude dos nossos notórios conhecimentos de Misticismo, os próximos dez leitores que nos contactarem ali em baixo nos comentários, expondo problemas e questões místicas, poderão vir a ter o seu problema resolvido de uma forma completamente gratuita... é mesmo grátis, uma oportunidade única a aproveitar (!), mas não se deixem é enganar por quem vos promete mundos e fundos!

 

 

*- Para quem tiver alguma curiosidade sobre a origem da expressão "não bate a bota com a perdigota", fazemos aqui um pequeno aparte - uma "perdigota" é uma perdiz muito jovem, e a frase parece referir-se à ideia de que esse animal, escolhido apenas por motivo de rima, não faz par com uma bota (até por serem duas coisas completamente diferentes).

Gostas de mitos, lendas, livros antigos e muitas curiosidades?
Recebe as nossas publicações futuras por e-mail - é grátis e irás aprender muitas coisas novas!

Pág. 1/2