As lendas do Corpo-Seco
As lendas do Corpo-Seco provêm de terras do Brasil, onde aparecem atestadas em diversos estados. Em todos eles o cerne da história parece ser sempre o mesmo ou, no mínimo, muito semelhante - dizia-se que esta hedionda criatura nascia do corpo de um ser humano falecido, quando este tinha cometido na sua vida algum pecado tão horrendo que nem os Céus ou o Inferno queriam aceitá-lo dentro das suas portas. Então, estava condenada a vaguear pelo mundo dos vivos até ao fim dos tempos (talvez na companhia do Judeu Errante). Naturalmente que, face a esta informação basilar, uma questão se impõe imediatamente - que pecado assim tão abominável terá essa pessoa cometido, para ser sujeita a um castigo tão invulgar?
Numa primeira versão da lenda do Corpo-Seco, o primeiro homem a sofrer este destino foi um agricultor que, inicialmente, era muito pobre. No mais completo dos desesperos fez uma promessa a Nossa Senhora, dizendo-lhe que caminharia até um determinado santuário se esta o fizesse rico. O pedido à santa acabou por se realizar, mas depois este homem, cujo tempo o nome há muito apagou, acabou por ir ao santuário mas não da forma que tinha prometido - fez a viagem a cavalo, num carro de bois, ..., com uma versão recente de toda a história a referir até um avião - o que o levou a ser castigado após a morte.
Uma segunda versão diz que este monstro nasceu do cadáver de um homem que era muitíssimo maldoso, que até batia muitas vezes na sua própria mãe, levando depois a que a mãe-terra recusasse recebê-lo no seu seio.
Já uma terceira história revela que o Corpo-Seco tinha sido, originalmente, um homem bastante rico mas muito sovina, que nem nunca dava qualquer esmola ao auxílio seja aos mais pobres, seja a membros da igreja católica. Então, quando um dia ele rejeitou auxiliar dois monges, insultando-os e quase até batendo neles, estes amaldiçoaram-no com um destino que parece ser mais terrível que a própria morte.
Mas, curiosamente, estas lendas não se referem somente a figuras do sexo masculino. Uma quarta versão refere que, numa dada altura, uma mulher estava para ser sepultada em terras do Brasil. Contudo, cada vez que tapavam o túmulo, horas depois o seu corpo era expelido pela própria terra, que parecia recusar tê-la no seu cerne (como numa das versões acima - será que estão relacionadas? Será que esta mulher também batia na sua mãe?). Tentaram-se várias alternativas, sempre sem qualquer sucesso, até que ela acabou por ter o seu descanso eterno apenas quando foi sepultada num local muito específico, que depois tomou o seu (novo) nome em virtude desta famosa falecida - uns dizem que isso se passou na Serra do Corpo-Seco, em Ituiutaba (no estado de Minas Gerais), enquanto que outros dizem que o local foi mesmo uma misteriosa "Caverna ou Gruta do Corpo Seco", de localização agora mais incerta.
Resumidas estas quatro versões, qual a origem de todas estas lendas do Corpo-Seco, nas suas diversas versões? Encontrámos algumas alusões demasiado vagas a uma proveniência portuguesa, mas não conhecemos qualquer lenda nacional semelhante a estas. Assim, é provável que estas narrativas tenham surgido da ideia de que alguns corpos se decompõem mais depressa que outros - o que, segundo a sabedoria popular, dependia do seu nível de pecados* - ou para incentivar certos comportamentos (bondosos) face a outros que eram vistos como muito negativos, como também acontecia com a famosa lenda da Mula Sem Cabeça, e como se pode depreender pelos actos (malvados) que foram motivo de punição nestas lendas.
*- Nesse contexto, há que esclarecer que se acreditava que os corpos dos santos permaneciam incorruptos após a morte, dada a sua pureza e como ainda hoje pode ser visto em diversas igrejas (e.g. o exemplo de São Torcato), enquanto que os dos pecadores voltavam muito rapidamente ao pó da terra.