O estranho final do "Evangelho de Barnabé"
Foram muitos os evangelhos que foram sendo escritos desde o primeiro século da nossa era até aos nossos dias (relembre-se, por exemplo, o Evangelho Segundo Jesus Cristo de José Saramago). Já cá fomos referindo alguns antes, mas este Evangelho de Barnabé merece aqui ser referido, talvez mais que tudo, em virtude do seu estranho final.
Explique-se. Ninguém parece pensar que o Evangelho de Barnabé, na forma actual em que nos chegou, foi escrito na Antiguidade (apesar do uso do nome de um apóstolo o sugerir), até porque contém diversas referências a Maomé, que viveu no início do século VII. Mesmo que se tenha baseado em fontes antigas, já esquecidas, é agora uma composição pós-islâmica. Foca-se muito, talvez demasiado, numa passagem de conhecimentos teológicos retirados do Antigo Testamento e do seu confronto com o Novo. Mantém muitas das histórias que podemos encontrar nos Quatro Evangelhos Sinópticos. Até aqui, nada de especial, só algumas divergências menores aqui e ali... até que se chega ao momento em que Judas Iscariotes se prepara para trair Jesus Cristo.
Então, quando neste Evangelho de Barnabé Judas se prepara para reencontrar Jesus e trai-lo, algo de completamente inesperado toma lugar - um grupo de anjos transporta o traído para o Reino dos Céus, enquanto que o traidor adopta a sua forma. A trama prossegue com Judas, que aqui tomou a forma de Jesus Cristo, a negar uma e outra vez ter a identidade que lhe atribuem, existindo até uma recontextualização de algumas frases presentes nos Quatro Evangelhos. Assim prossegue a história, até que o famoso traidor, aqui traído, acaba ele próprio crucificado. Jesus, esse, calmo e seguro na presença de Deus, às tantas lá volta para contar aos amigos e familiares o que se passou, enquanto que o corpo do crucificado - que, relembre-se, é aqui o de Judas! - foi roubado por apóstolos (desconhecidos), gerando-se então a ideia de que Jesus regressou ao mundo dos vivos.
Se tudo isto poderá parecer um pouco estranho e confuso aos crentes cristãos, há que interpretar toda esta ideia no seu contexto islâmico, em que, relembre-se, Jesus é apenas um profeta, mais do que uma figura potencialmente divina. Ele é aqui salvo da morte por Deus, mas tal feito implicava uma necessidade de crucificar outra pessoa; talvez retirando a ideia de outros textos apócrifos, os autores optaram então por crucificar o traidor de Cristo, naquele que é provavelmente um dos mais estranhos finais das histórias que se associam a estas figuras bíblicas.
Uma última questão - mas afinal, quem foi a figura que deu nome a este estranho Evangelho de Barnabé? Pela sua presença na trama depreende-se que se tenha tratado de um dos doze apóstolos, um dos menos conhecidos do séquito do Messias. É provável que o nome tenha sido escolhido porque já era conhecido de outras fontes, e.g. a Epístola de Barnabé e os Actos de Barnabé, mas por ainda não se conhecer um evangelho associado a essa figura. O que acaba por levantar uma questão curiosa, que deixamos para outro dia - será que existiram, numa dada altura, textos associados a cada um dos doze (+ um) seguidores de Jesus?