"O que é a felicidade?" - Um conto português
O tema da felicidade, bem como aquela constante busca humana por ela, é talvez tão antigo como a própria humanidade. Por isso, se já cá falámos anteriormente de temas como esse - recorde-se, por exemplo, o mito grego de Sólon e Creso - hoje abordamo-lo com recurso a um conto bem português, de título O que é a felicidade?, que nos chegou pelas mãos de Ana de Castro Osório, escondida entre aventuras de Olharapos e do João Ratão. Deixe-se, portanto, a autora - cuja fotografia pode ser vista abaixo - falar-nos sobre uma opinião trazida pela tradição oral nacional:
Havia uma vez um Príncipe que se julgava o mais desgraçado dos mortais. Triste, triste, não fazia senão chorar e lamentar-se. Escondia-se de todos, fugia dos demais rapazes da sua idade, e os passeios que dava eram só para os montes onde não havia fôlego vivo. Quem o visse diria que era um velho, tão curvado andava sempre, tão pálido e magro tinha o rosto, outrora belo e radiante.
O Rei seu pai consultou médicos e adivinhos, chamou ao seu reino todos os sábios do Mundo, mas ninguém dava com a causa nem com a cura do mal que minava o Príncipe. Só um velho sábio, que sobre os livros tinha passado os dias e as noites queimando as pestanas em aturado estudo, falou assim ao aflito pai:
— Para que teu filho se cure e te venha a suceder no trono, é necessário, ó Rei, que lhe vistas a camisa dum homem que se considere completamente feliz e satisfeito com a sorte. Porque o mal de teu filho é a ambição de tudo possuir e o desgosto de tudo quanto possui.
O Rei tremeu, porque há muitos doidos por este Mundo de Cristo, que ninguém pode curar, só porque desejam aquilo que não podem obter. Mas, seguindo o conselho do sábio, umas poucas de embaixadas partiram em procura do homem feliz a quem pedissem a camisa para a cura maravilhosa. Nem nos palácios dos reis, nem nos casebres dos pobres, encontraram, porém, quem se julgasse inteiramente feliz com a sua sorte. Cidades, vilas, aldeias, tudo foi visitado. E as embaixadas iam recolhendo ao palácio, trazendo o desânimo ao pobre pai, que via morrer o filho sem lhe poder valer.
Até que a última, voltando ao país, se perdeu pelas serras. Foram andando, andando, até chegar à cabana de um pobre pastor. Viram-no recolher do trabalho, que sem descanso levava, de sol a sol. Ouviram-no cantar e rir. E, à noite, quando se sentou à lareira junto da mulher e dos filhos, ouviram-no agradecer a Deus a felicidade que lhe era concedida, desejando que assim continuasse sempre. Os embaixadores, como não sabiam o caminho, aceitaram a hospitalidade que lhes oferecia aquela pobre gente e toda a noite se divertiram com a alegria que reinava ali. Por fim, o mais velho dos cortesãos tirou-se dos seus cuidados e disse ao pastor:
— Bom homem, julgas-te ditoso aqui neste ermo e nesta desolada pobreza longe de tudo quanto nos torna preciosa a vida ?
— Senhor, que mais posso desejar se tenho saúde, amor e alegria ?
— Mas, diz a verdade, consideras-te feliz e nada mais desejas?
— Sim, considero-me feliz en não desejo mais do que tenho.
— Bom, vende-me, então, a tua camisa. Pede o que quiseres, que tudo dará um pai que vê morrer seu filho sem ter outro remédio para o salvar.
Afastando a camisola feita com a lã das suas ovelhas, o pastor mostrou com orgulho o rijo peito de trabalhador e respondeu, rindo:
— Eu não uso camisa!
De orelha murcha voltaram os mensageiros do rei e contaram a este o que lhes sucedera. Ouvindo o Príncipe esta história, clamou:
— O quê, pois o único homem que no Mundo se considera feliz, não usa camisa?! Quero ir vê-lo e praticar como ele pratica.
Dito e feito, levaram-no ao pastor, que muito bem o recebeu, sem querer saber se era Príncipe ou mendigo.
— Que receita tens para ser feliz, bom homem? — perguntou o agoniado moço.
— Contento-me com o que tenho e agradeço como um favor tudo quanto gozo. Não invejo os mais ricos nem desprezo os mais pobres.
— O quê, pois há quem seja mais pobre do que tu? — perguntou ainda o Príncipe olhando para a nudez daquela cabana.
— Há mais pobres do que eu, todos os que não podem, não querem ou não sabem trabalhar.
O Príncipe voltou para o palácio mais satisfeito, e daí em diante, seguindo os conselhos do pastor, contentou-se com a sua sorte, viveu com saúde e foi feliz.
A grande ideia que aparece exposta nesta história não é nova. Já aparecia, há bem mais de 2000 anos, em histórias como as de Telo de Atenas ou de Sidarta Gautama, mas tenta ensinar-nos uma moral que continua sem ser ouvida e interorizada por quem a vai lendo. Até quando...?