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Mitologia em Português

17 de Fevereiro, 2022

O segredo da Sapataria A Deusa

Para este dia de hoje decidimos que também tínhamos mesmo que falar da Sapataria A Deusa, na cidade de Lisboa. Isto porque, se era uma das lojas históricas da cidade - fundada em 1951, ou seja, com já mais de 70 anos, e agora propriedade de José Fiandeiro - recebemos esta quarta feira a triste notícia de que ela ia encerrar definitivamente, vítima de uma ordem de despejo, para vir a dar lugar a mais um dos milhares e milhares de espaços quase exclusivos para turistas que já existem na capital portuguesa. É triste, indubitavelmente triste, que aquela que é provavelmente a mais antiga cidade de Portugal se esteja a tornar numa espécie de Disneyland só para visitantes estrangeiros, mas - deixando de lado essas inquietantes notas - o nome da loja, bem como a respectiva explicação por detrás dele, não pôde deixar de nos suscitar uma dúvida de curiosidade.

A imagem que dá nome à Sapataria A Deusa

A Sapataria A Deusa tem, segundo a sua informação no portal Lojas com História, como "ex-libris um baixo-relevo em verde de uma deusa hindu". Ele pode ser visto acima (as fotografias são do mesmo portal!), tanto no seu contexto original, que aqui pensámos em tentar ajudar a preservar, como em maior pormenor. Porém, a nossa questão - uma que curiosamente, muitos jornais ignoraram por completo - prende-se com esta representação, que aparenta ser de origem hindu. Se ela tem representada, de facto, uma "deusa hindu", qual é ela? Ou, de um modo até mais geral, se esta é uma representação de uma qualquer cena mitológica, qual será?

 

Relativamente a todo este tema da Sapataria A Deusa, fomos então inquirir - estes temas hindus, como já cá vimos anteriormente no caso de Ganesha, são pouco conhecidos em Portugal - e descobrimos que, curiosamente.... havia muitas opiniões, mas uma única certeza - que, por enorme ironia, não se trata de uma deusa hindu (já que essas são quase sempre representadas com mais de dois braços!), mas de algo um pouco diferente. Aqui ficam algumas opiniões:

  • Uma disse-nos que esta é uma Salabhanjika, uma representação de uma mulher ao pé ou debaixo de uma árvore.
  • Outra, que se trata de uma Gopika, uma devota de Krishna, reencarnação do deus Vishnu, que honra essa sua divindade através da dança.
  • Uma terceira sugeriu que, em alternativa, esta representação é budista, com base nas orelhas e no corte de cabelo das duas crianças que estão do lado esquerdo (ver a representação do Buda que incluímos quando cá contámos a sua história).
  • Uma quarta lançou a ideia de que esta até poderá ser uma intersecção de arte hindu com a budista, originária do norte da Índia.
  • Ainda outra disse tratar-se de Sita, esposa de Rama, no período de exílio que passou com os seus dois filhos na floresta (após ter sido abandonada pelo herói).
  • ...

 

Ninguém parecia conseguir concluir nada sobre esta representação patente na Sapataria A Deusa, até que um leitor do site Reddit, de nome "_uggh", nos enviou uma pista preciosíssima, cujo verdadeiro valor pode ser visto abaixo:

A mesma representação que está na Sapataria a Deusa

É extremamente fácil ver a semelhança desta imagem com a anterior, a que está na loja - e, de facto, elas até são quase iguais, salvo pequeninas diferenças! Então, o que representam ambas? Como este selo do Nepal indica no seu lado direito, a cena representada aqui é, na verdade, o nascimento de Buda! A figura feminina, em grande plano, não é nenhuma deusa, mas sim a rainha que deu à luz o fundador do Budismo, a que parece ser dado o nome de Maia (entre outros), e que deu à luz este seu filho agarrada a uma árvore cuja tradição diz ser a shorea robusta. Nesse sentido, as duas "crianças" na parte traseira são, aparentemente, dois seres celestiais - ou devas, no contexto original - que a ungiram antes desse nascimento!

 

Muito interessante, até porque é certamente uma das poucas representações budistas deste episódio em terras de Portugal, mas é também igualmente curioso que em mais de meio século ninguém pareça ter conseguido apurar tudo isto, que esta não era uma deusa hindu mas uma figura feminina significativa da história do Budismo - ou, se por acaso até alguém o fez, pelo menos parece que nenhum jornal nacional se importou em saber melhor quem era esta suposta "deusa" que habitava numa loja lisboeta e cuja Câmara Municipal falhou em proteger, em prejuízo dos que ali trabalharam... e assim se perdem as verdadeiras histórias e se criam as lendas, que pelo desconhecimento tornaram a Rainha Maia da Sapataria A Deusa numa vaga "deusa hindu"...

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17 de Fevereiro, 2022

O mito da deusa Salácia (a Anfitrite dos Gregos)

A deusa Salácia, assim conhecida entre os Romanos, não é senão a mesma figura que a Anfitrite dos Antigos Gregos. Ela é, talvez até mais do que tudo o resto, a esposa do deus dos Oceanos, Neptuno / Poseidon, e se até parece ser referida aqui e ali na literatura da Antiguidade, existe essencialmente um mito significativo relacionado com ela que podemos contar aqui.

Resumo do mito da deusa Salácia, ou Anfitrite

A deusa Salacia e Neptuno ou Anfitrite e Poseidon

Na imagem acima pode ser vista a deusa Salácia, ou Anfitrite, com o seu marido (fácil de reconhecer pelo tridente). Como já referido, na maior parte das referências mitológicas eles estão casados, mas há um pequeno mito que conta como isso aconteceu. Segundo essa história, ou esta deusa não queria casar com o monarca dos oceanos, ou simplesmente queria preservar a sua virgindade de forma perpétua. Então, para conseguir esse seu objectivo, fugiu do pretendente e não queria mais voltar... até que um golfinho a encontrou e a convenceu a aceitar os amores do rei dos mares! Depois, como forma de agradecimento por todo esse serviço, o par de amados - supõe-se que já casados, nessa altura - decidiu fazer do golfinho um dos seus animais simbólicos, mas também o colocou entre as estrelas, onde é hoje a constelação do Golfinho (ou Delfim, segundo um nome próprio dado ao animal personagem do mito).

 

Este pequeno mito explica o porquê da deusa Salácia, ou Anfitrite, bem como o seu marido - Neptuno / Poseidon - serem ocasionalmente representados num carro puxado por golfinhos, mas também explica como é que eles se conheceram e casaram. O mito ainda não aparecia nos poemas de Homero, parece ser tardio, mas pode ter nascido da necessidade de explicar o casamento do deus, tal como os seus dois irmãos, Zeus e Hades, também tinham histórias relativas aos seus.

 

A deusa Salácia e Alcácer do Sal

Alcácer do Sal, a antiga Salacia?

Porém, o tema de hoje ainda não fica por aqui, porque ainda há dias falávamos sobre Salácia no Sal da História. Existiu, na Península Ibérica, no tempo dos Romanos uma povoação de nome Salácia, de cognome "Cidade Imperial", i.e. a Imperatoria Urbs. Pensa-se, segundo uma lenda local e aparentemente sem provas de maior (excepto a distância de outras povoações nacionais, mencionadas no chamado Itinerário de Antonino), que ela terá sido em Tróia ou na actual Alcácer do Sal. Diz-se ainda que aí existiam muitas salinas e um templo à deusa. Será esta a origem do nome? Ou seja, trocando por miúdos, se a deusa certamente veio primeiro, a cidade recebeu o nome desta divindade, de um possível templo dela, ou das salinas? Como no caso do Larouco, também aqui nos deparamos com uma espécie de situação do ovo e da galinha, em que é quase impossível responder a isto com base nas provas que ainda temos hoje em dia. Como tal, o mais correcto é dizer que a cidade e a deusa partilhavam um mesmo nome, mas que também pouco mais se sabe sobre essa relação entre ambas - por isso, quem preferir informação mais académica sobre o tema poderá até ler o que o Professor José d'Encarnação escreveu sobre ele.

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