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Mitologia em Português

30 de Maio, 2022

A origem e os poderes da Santa Muerte

Hoje em dia existe uma espécie de divindade, ou figura santa, no México e nos EUA que é conhecida como Santa Muerte. Claro que esta Santa Morte - como lhe poderíamos chamar em português - não é uma santa "oficial", reconhecida pela igreja católica, mas uma figura da religião popular mexicana. Porém, basta olhar brevemente para a sua figura - podem ver um exemplo abaixo, para quem ainda não a conhecer - para se perceber que esta não é uma santa como as outras, mas uma figura religiosa bastante única, que até é muitíssimo fácil de reconhecer pela sua face e corpo esqueletal. Face a essa invulgaridade da figura, que em Portugal provavelmente só é conhecida através de séries de televisão americanas, podemos ser levados a perguntar duas coisas - qual a origem desta figura, e que poderes se crê que ela tem?

Origem da Santa Muerte

A origem da Santa Muerte

Em relação a este primeiro ponto, sabe-se que o culto público a esta santa data de finais do século XX ou inícios do XXI, mas a devoção privada a esta figura antecede essa data... e assim, visto que se tratava, originalmente, de uma figura religiosa privada, que as pessoas até podiam ter em sua casa sem que o mencionassem a mais alguém, é difícil saber quais as suas verdadeiras origens. Mas, através de uma antiga recolha de depoimentos em terras do México, bem como de diálogos com alguns especialistas, descobrimos algumas teorias sobre a possível origem da Santa Muerte. Mencionamos aqui apenas três delas, as que nos pareceram mais interessantes, por motivos de tempo e espaço:

 

Uma hipótese é que ela seja puramente uma representação antropomórfica da morte, enquanto conceito. Isto porque, se existiam anteriormente várias divindades na América do Sul que estavam associadas ao culto dos mortos, e se esse culto ainda existe, hoje, no México com algumas alterações notáveis (recorde-se o chamado Dia de los Muertos, celebrado nesse país a dois de Novembro), a contínua popularidade desse conceito da morte poderá ter gerado esta figura quase humana.

 

Outra hipótese é que seja uma descendente da veneração de San Pascualito [Rey], uma versão de São Pascoal Bailão - esse sim, um santo católico, nascido e falecido em Espanha - que era venerada de forma não-oficial no México sob a forma de um esqueleto com uma coroa. Para quem tiver curiosidade sobre a origem da uma tão estranha representação, diz-se que foi sob essa estranha forma que o santo apareceu a um fiel doente, prometendo curá-lo se este instituísse a veneração dessa figura na terra em que vivia.

 

Uma terceira é que esta figura religiosa tenha descendido de La Catrina, uma figura mexicana criada em inícios do século XX que representa uma mulher-esqueleto vestida de uma forma rica, potencialmente para nos relembrar que os ricos e pobres têm todos o mesmo destino (algo que, muito infelizmente, está bastante esquecido nos dias de hoje). A isso nos leva, sem quaisquer dúvidas, o subtítulo original dessa representação num jornal de 1913 - Las que hoy son empolvadas garbanceras, pararán en deformes calaveras - num evidente sentido de memento mori, i.e. "lembrem-se que terão de morrer".

A Santa Muerte numa bela representação

Os poderes da Santa Muerte

Não sabemos qual destas três hipóteses estará correcta, até porque existem muitas outras, mas o que isto nos permite concluir é que sempre existiu, e continua a existir, na cultura do México uma espécie de obsessão (positiva?) com o próprio conceito da morte, e isso poderá ter suscitado a ideia de venerar esta Santa Muerte como uma figura digna de crédito, como em tempos da Antiguidade alguns decidiram fazer com Satanás. E, nesse seguimento, talvez seja importante frisar que não encontrámos qualquer lenda fidedigna por detrás desta santa - ela não parece ser uma mulher mortal que foi santificada após a morte em virtude dos seus bons actos em vida, como acontece com as outras pessoas que atingiram a santidade, mas sim uma entidade que não se crê que viveu entre nós e que existiu sempre num plano mais místico.

 

E, nesse sentido, é fácil compreenderem-se os próprios poderes desta figura da Santa Muerte - é uma entidade protectora, num sentido que poderá ser interpretado, muito simplificadamente e de forma metafórica, como "venera-me e não morrerás". Até assim se explica que em séries de televisão a santa apareça muito associada ao crime, ao tráfico de drogas, etc., à semelhança daquele Jesus Malverde de que já cá falámos antes. E, de facto,  em artigos sobre essa devoção religiosa nos EUA - um exemplo pode ser visto aqui - é até possível ver que os devotos desta figura também se associam a essa outra figura popular do protector dos traficantes, bem como à famosa Virgem de Guadalupe e ao próprio Jesus Cristo, demostrando uma fusão repetida de crença católica e crença popular que não pode deixar de ser mesmo muito curiosa...

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26 de Maio, 2022

A lenda do Oceano de Leite

A lenda do Oceano de Leite não é simples. Tanto não o é que, apesar de já cá termos aludido a ela antes por diversas vezes (ver, por exemplo, o artigo sobre os avatares de Vishnu), só uma pesquisa intensiva tornou possível chegar-se à versão mais completa de toda esta história... o que nos pareceu importante, já que é muitíssimo conhecida na Índia, onde até chega a aparecer representada na pedra em diversos templos, mas em terras europeias não se pode dizer que seja famosa. Assim, iremos aqui contá-la através dos seus três momentos principais, para que potenciais leitores possam conhecer melhor este episódio que no original toma o nome de Samudra Manthana (समुद्रमन्थन).

Airavata, elefante de Indra

Os deuses perdem a imortalidade

Um dia, quando Indra, rei dos céus, passeava com o seu elefante Airavata (visto na imagem acima com as suas várias cabeças), encontrou um sábio. Este ofereceu-lhe uma flor com grande valor simbólico, colocando-a perto da face do elefante. As várias versões divergem no que aconteceu a seguir - nomeadamente, se o animal o fez de propósito, ou se por mero acidente, quando procurava afastar uma abelha - mas todas elas concordam que este elefante atirou a flor ao chão, ofendendo grandemente o sábio que a tinha oferecido. Este, incrédulo com o que viu passar-se à sua frente, e talvez até numa grande fúria, amaldiçoou todos os deuses - ou Devas, se preferirem o título original - condenado-os a perder todos os seus poderes, entre eles o da imortalidade. Assim, face a esta ocorrência, os deuses foram perdendo muitas das suas batalhas com os seus opositores, os Asuras, até que decidiram que não tinham nenhuma outra alternativa senão propor algo completamente inesperado.

O Batimento do Oceano de Leite

O Batimento do Oceano de Leite

Para não perderem os seus poderes, os deuses decidiram então juntar-se com esses seus opositores, os Asuras, para recuperarem o que tinham perdido, prometendo-lhes como recompensa uma imortalidade que estes nunca tinham tido até então. Pegaram na enorme cobra Shesha das mil cabeças, aproximaram-se do monte Madara e usaram esse réptil primordial para bater um oceano de leite que existia nessa altura, cada grupo de um lado diferente, como mostra a imagem acima... mas, quando o monte se começou a afundar, o deus Vishnu tomou a forma de Kurma, a tartaruga, e serviu de apoio a essa espécie de "poste", para que os dois grupos conseguissem continuar o seu trabalho.

Um outro episódio que teve lugar durante o processo, e que parece ser de alguma importância, é o facto de de Shesha, provavelmente descontente com o que estavam a fazer com o seu corpo, ter começado a vomitar veneno sem fim. Para impedir que este envenenasse tudo o que existe, um deus - alguns dizem que foi Vishnu, outros que foi Shiva - tomou todo esse veneno na sua boca; não morreu, como é óbvio, mas guardou-o durante tanto tempo na garganta que acabou por adoptar a cor azul, cor desse veneno,

Mas particularmente importante é o que foi acontecendo durante este batimento do oceano ou mar de leite. À medida que Devas e Asuras foram realizando o estranho processo, este estranho curso de leite foi atirando cá para fora muitas coisas. Descrevê-las a todas ultrapassa o carácter introdutório das linhas de hoje, mas podemos resumi-lo dizendo que além da Amrita, o tal licor da imortalidade que ambos os grupos tanto queriam obter, daí surgiram igualmente vários deuses e deusas, criaturas inimagináveis e tesouros incríveis.

Mohini, avatar feminino de Vishnu

Como os deuses obtiveram a Amrita

À medida que os deuses e estes seus opositores foram batendo o oceano de leite, a Amrita, esse licor da imortalidade, saltou cá para fora e foi rapidamente apanhado pelos Asuras. Porém, e apesar da sua anterior promessa, os Devas não queriam que estes seus inimigos se tornassem imortais, sob pena de virem a causar infindáveis problemas (recorde-se, por exemplo, o caso de Raktabija). Então, o deus Vishnu tomou a forma da belíssima Mohini - um avatar feminino (o conceito já foi explicado aqui), que não é contado entre os seus dez principais - e seduziu aqueles que tinham em sua posse o famoso licor, obtendo-o e partilhando-o somente com os deuses, que assim recuperaram todos os seus poderes e a sua anterior imortalidade!

 

Mais sobre esta lenda

Não encontrámos qualquer lenda que relate o que depois aconteceu a este oceano ou mar de leite. É, por razões um tanto ou quanto óbvias, provável que se tenha transformado numa espécie de queijo primordial, mas ele parece desaparecer dos relatos mitológicos após esta curiosa ocorrência aqui narrada hoje. Os deuses, como já referido, obtiveram tudo aquilo que tinham perdido, e a sua guerra eterna contra os Asuras - normalmente traduzidos como "demónios" na cultura ocidental - continuou como até então, apesar do breve interregno de hostilidades.

 

Esta é, sem qualquer dúvida, uma importante e famosa lenda que diz muito sobre as crenças do Hinduísmo e os curiosos limites dos seus deuses. Um elemento importante a reter é o facto de um sábio poder obter um estatuto tão poderoso que até consegue rivalizar com os próprios deuses, conseguindo amaldiçoá-los - o caso relatado aqui não é único, existindo muitas outras lendas em que outros seres humanos e figuras semidivinas, enaltecidos por práticas meditativas, causaram muitos problemas até aos seres divinos (ver, por exemplo, a lenda de Narasimha). Outro exemplo poderá ser o dos Devas nem sempre terem um carácter completamente honesto, não estando acima de acções como mentir e iludir para atingirem a obtenção dos seus objectivos - e, na verdade, em outras histórias chegam até a matar para o conseguirem, como evidenciam muitas outras histórias da Índia.

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24 de Maio, 2022

Sobre a Nossa Senhora do Milagre da Cera

Entre os muitos nomes que Nossa Senhora já tomou no nosso país, alguns deles remetem-nos de forma indúbia para um determinado evento, e este milagre da cera é um deles. Mesmo que pouco ou nada se saiba sobre a figura, ou sobre a cidade de Évora em que estes eventos tomaram lugar, sem qualquer dificuldade se depreende que a santa obteve esse nome através de uma ocorrência miraculosa no local... mas o que se passou, então?! Até porque já lhe existem muito poucas referências online ou nos nossos dias de hoje, recorde-se uma história que tomou lugar no tempo do rei Dom Fernando, i.e. segunda metade do século XIV:

Imagem ilustrativa do Milagre da Cera de Évora

Conta-se então que no ano de 1372 a cidade portuguesa de Évora foi assolada por uma enorme tempestade, chovendo continuamente durante vários dias, o que poderia levar à perda completa das culturas que existiam nos campos em redor da cidade. Assustado, e talvez por pedido dos seus concidadãos, o bispo da cidade, que na altura era um tal D. Martim Gil de Britto, decidiu organizar uma procissão, talvez como forma de pedir o apoio divino, e todos os cidadãos locais foram à catedral da cidade. Aí, foram acesos 12 círios no altar, em honra do mesmo número de apóstolos de Cristo, e durante o sermão a chuva finalmente cessou, possibilitando a saída de uma procissão, em honra de Nossa Senhora, para o exterior do espaço religioso.

O que tem tudo isto de especial? Não terá já acontecido em muitas outras igrejas ao longo dos séculos? É certo que sim, nem isto seria digno de nota, não fosse o facto dos círios (uma espécie de velas grandes, que podem ainda hoje ser vistos nos altares de muitas igrejas), por milagre também terem durado muito mais tempo que o habitual e se terem tornado muito mais pesados, levando a que fossem preservados no local, em memória da ocorrência, pelo menos até ao século XVII, em que este "Milagre da Cera", bem como a santa que lhe tomou o nome, ainda eram conhecidos no local.

 

Infelizmente, não fomos capazes de encontrar qualquer vestígio real deste antigo milagre nos dias de hoje, sendo provável que toda esta breve história tenha sido esquecida ao longo dos séculos, contrariamente a ocorrências, quase da mesma época, como o do famoso Santíssimo Milagre de Santarém. Por isso, se alguém que leia estas linhas for de Évora, ou souber algo mais sobre o que aconteceu a estes vestígios da Nossa Senhora do Milagre da Cera, por favor deixe-nos um comentário, ou envie-nos um e-mail, e conte-nos mais!

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23 de Maio, 2022

Quem foi Maria do Carmo de Mello?

Hoje falamos de Maria do Carmo de Mello, cujo nome já teria sido esquecido não fosse a existência de um pequeno cruzeiro no Pai do Vento, Cascais. E não seria caso único - como o Sal da História mostrou há já uns anos, casos parecidos existem por todo o país, em que toda a vida de um ser humano, normalmente jovem, acaba, por mero acaso das circunstâncias, resumida na berma de uma qualquer estrada do nosso país. Assim, quem passar pela cascalense "Avenida de Sintra" poderá ver, muito próxima de duas bombas de gasolina, um pequeno cruzeiro circundado por uma pequena vedação, hoje quase abandonado e esquecido pelo tempo:

O Cruzeiro de Maria do Carmo de Mello

Este cruzeiro, como é aqui fácil de ver, dá-nos muito pouca informação. Contém apenas um nome - Maria do Carmo de Mello - e uma data, escrita como 20-9-1902, talvez porque quem o mandou erguer tenha pensado que não eram sequer necessárias mais explicações. E talvez nem o fossem, não fosse aquele eterno acaso do progresso alterar toda a zona circundante - onde outrora apenas existiam árvores, montes e vales, agora está tudo repleto de casas, como que fazendo esquecer o desastre de outros tempos.

Quem já tiver visto esta zona do Pai do Vento, em Alcabideche, tal como a região era há mais de 100 anos atrás, vê-la-ia quase completamente vazia de ocupação humana. Havia, no entanto, uma pequena estrada de terra batida, onde ocasionalmente passavam carroças, dirigindo-se quase certamente para a zona de Cascais, tendo por isso de suportar os enormes ventos que deram nome ao local - e ele ainda hoje é ventoso, mas talvez agora menos pelas casas que circundam o local.

 

Nesse contexto, a 20-9-1902 passava esta Maria do Carmo de Melo pelo local, acompanhando o pai numa viagem de charrete, quando um enorme vento se levantou e causou um acidente. O pai, António Maria Vasco de Melo Silva César e Meneses, que até era o nono Conde de Sabugosa, sobreviveu, apenas macerado na carne, mas a sua filha faleceu no local - e o seu elemento paterno, com uma óbvia e notória tristeza, depois erigiu este pequeno monumento, hoje já quase esquecido, no local em que tinha visto a sua amada filha a perder a vida. Hoje, talvez seja relembrada por ele e por pouco mais.

 

Talvez esta espécie de tradição se tenha perdido ao longo dos anos, talvez as pessoas já não sintam o sofrimento como em outros tempos, mas quantos mais monumentos semelhantes existirão, ainda, pelo país fora? Quantos deles já terão sido esquecidos e feitos perder pela crueldade do tempo? Como nos casos da Cruz da Popa e da Arranca-Pregos, também geograficamente próximos da história e hoje, é provável que também esta pequena história acabe esquecida mais tarde ou mais cedo...

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19 de Maio, 2022

A lenda das Crianças Verdes de Woolpit

A lenda das Crianças Verdes de Woolpit vem de uma pequena aldeia inglesa, no condado de Suffolk, leste de Inglaterra. Diz-se que a sua história tomou lugar em finais do século XII, mas o curioso é que parecem existir provas de que ela poderá ter sido bem real. Mas, como já é costume, já lá iremos, por agora convém introduzir sucintamente toda a lenda.

As Crianças Verdes de Woolpit

Conta-se então que numa data agora desconhecida do século XII alguns habitantes da zona de Suffolk andavam a passear nas florestas locais quando aí encontraram duas crianças, as tais que ficariam conhecidas sob o nome de Crianças Verdes de Woolpit. Elas eram completamente iguais às humanas, excepto pelo facto de terem uma pele verde, de terem umas roupas que nunca ninguém tinha visto, e falarem uma língua completamente desconhecida. Mas, apesar de estas diferenças, ainda eram crianças e, por isso, os cidadãos locais decidiram recolhê-las e protegê-las. Se, inicialmente, elas nem comiam nada, às tantas lá se descobriu que gostavam de feijões verdes. Depois, foram crescendo (e perdendo a cor verde), até que uma delas - a do sexo masculino - faleceu por razões desconhecidas. A outra, que se supõe ter sido sua irmã, foi baptizada com o nome de "Agnes", aprendeu a língua inglesa e acabou por revelar que vinha de uma misteriosa "Terra de São Martinho" (seria o santo de Tours? Não é claro...), nos subterrâneos da terra. E, muito inesperadamente, diz-se até que ela casou e teve pelo menos um descendente...

 

Se este último elemento poderia atestar a veracidade de pelo menos uma parte da história das Crianças Verdes de Woolpit, há também que notar que histórias portuguesas da mesma época contêm elementos semelhantes. Tanto Dona Marinha como as Damas de Pés de Cabra tiveram descendentes, mas é seguro pensar que ninguém as considera como personagens históricas de existência bem real. Será, por isso, que estas crianças vieram do mesmo sítio que essas suas companheiras nacionais, de aquela eterna terra da imaginação humana? Talvez sim, talvez não, mas duas crónicas da época asseguram-nos da sua existência, ao ponto de ainda hoje, quase 800 anos depois, a vila inglesa de Woolpit ainda ter esta história como um dos seus elementos mais emblemáticos...

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16 de Maio, 2022

O mito do Mogwai (e os Gremlins)

Na cultura ocidental o nome do Mogwai é particularmente famoso do filme Gremlins, de 1984, em que é o de uma criatura bastante fofinha que pode ser vista, já com má cara, na imagem abaixo. Porém, o que muito menos leitores provavelmente saberão é que a ideia por detrás desta singela criatura vem dos mitos e lendas da China, com o próprio filme a adaptar parte dos mitos originais.

O mito do Mogwai (e os Gremlins)

No vídeo abaixo, por exemplo, pode ser vista uma sequência inicial do filme Gremlins, em que uma das personagens se depara com um mogwai (魔鬼) numa loja. Ficamos sem saber bem porque razão ele lá estava, visto que o proprietário nem parece muito interessado em vendê-lo, mas ele lá é vendido e ao novo dono da criaturinha são dadas três regras basilares - o "bicho", que depois adoptará o nome de "Gizmo", não deveria ser exposto ao sol, não deveria entrar em contacto com a água, nem deveria ser alimentado após a meia-noite. Essas regras até podem levantar todo um conjunto de grandes questões filosóficas, mas, na verdade, provêm de uma adaptação de alguns elementos da criatura chinesa original.

Essencialmente, este Mogwai não devia ser exposto à luz porque apesar da sua forma toda bonitinha, é uma criatura demoníaca, uma das muitas do séquito de Mara (que já conhecemos da história de Sidarta Gautama), e por isso fazia muitas maldades. Depois, não devia comer após a meia noite porque isso lhe dava força e pujança reprodutiva - o que leva ao último elemento, já que no mito original era a altura das chuvas que causava o seu período reprodutivo. E porquê as chuvas? Simplesmente porque podem ser interpretadas, metaforicamente, como as antecessoras de um bom período de colheitas, onde irá existir muita comida (o que, novamente, nos leva ao ponto anterior). Mas, curiosamente, não encontrámos qualquer história em que este monstrinho se transforme em outras criaturas*, sendo essa parte da história uma mera adaptação para a história do próprio filme.

 

Agora, poderíamos ainda tentar contar aqui alguma história associada ao próprio Mogwai , uma provinda da China, que o afastasse do nosso filme Gremlins, mas muito infelizmente não conseguimos encontrar nenhuma. Isto porque as histórias sobre a própria criatura chinesa se parecem ter esquecido progressivamente ao longo dos séculos - como, por exemplo, as de Zigu, que já poucos chineses parecem conhecer - sendo ela hoje quase somente um dos (muitos) sinónimos para aquele conceito que na cultura ocidental chamaríamos pura e simplesmente "demónio".

 

 

*- O que são, então, os tais "Gremlins"? Talvez regressemos a esse tópico um outro dia, mas por agora podemos resumi-los como criaturas mitológicas europeias que nasceram no século XX e a quem se atribui a função geral de causar danos em equipamentos electrónicos, e.g. se o vosso telemóvel deixou de funcionar sem razão aparente, foram eles!

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13 de Maio, 2022

"Da Fábrica que Falece à Cidade de Lisboa", de Francisco de Holanda

Falar sobre esta obra, Da Fábrica que Falece à Cidade de Lisboa, de Francisco de Holanda, implica necessariamente abandonar os processos habituais de todo este espaço para aqui contar uma história que me é bastante pessoal. In illo tempore uma amiga pediu-me que lhe encontrasse uma cópia da obra a que se referem as linhas de hoje. "Que terá isso de complicado?", pensei eu, e depressa consegui encontrar uma edição, penso que de inícios do século XX, que continha todo o texto adaptado de duas das obras deste autor. Porém, quando a entreguei à minha amiga, ela explicou-me que o grande problema não era o de encontrar uma edição textual desta obra, mas sim uma em que constassem os desenhos originais, feitos pelo autor, que em quase todos os casos apresentam as suas sugestões para melhorias que poderiam vir a ser feitas na cidade de Lisboa, e onde são apresentadas pérolas como esta, para a renovação de uma ponte sobre o Tejo na zona de Abrantes:

'Da Fábrica que Falece à Cidade de Lisboa', de Francisco de Holanda

Na altura não foi possível localizar a obra em questão, numa edição que tivesse os respectivos desenhos, mas prometi-lhe que, custasse o que custasse, lhe arranjaria um dia uma cópia da mesma...

 

De que fala, portanto, esta Da Fábrica que Falece à Cidade de Lisboa, da autoria de Francisco de Holanda? O seu título não é muito claro, em virtude da forma como a língua portuguesa foi evoluíndo ao longo de mais de quatro séculos, mas ele refere-se a uma sugestão de construções que, segundo o próprio autor, muito beneficiariam a cidade de Lisboa - fortificações, pontes, locais religiosos, etc., que o autor diz ter testemunhado no exemplo de outras grandes cidades europeias e que pareciam faltar na capital de Portugal. O rei Dom Sebastião acabará por nunca as realizar, por razões que nos são bem conhecidas, mas o interesse da obra é essa sugestão de novas construções para a cidade, que não só o autor deixou por escrito, como também desenhou, em jeito de uma proposta mais concreta. Talvez não sejam desenhos tão belos como os que o autor nos deixou no seu De Aetatibus Mundi Imagines, mas pelo menos referem-se a temas mais reais e que muito teriam embelezado a nossa capital de Portugal.

 

Também, é importante frisar que, aqui e ali, o autor desta Da Fábrica que Falece à Cidade de Lisboa faz brevíssimas alusões a mitos e lendas da sua época, desde a fundação de Lisboa por Ulisses até ao famoso caso de São Vicente, passando por uma estranha violação da hóstia no ano de 1552. Esta não é, muito claro está, uma obra de grandes conteúdos mitológicos, mas por essas ténues referências podemos construir uma ideia geral das histórias que se contavam sobre - e em - Lisboa nessa segunda metade do século XVI.

 

Mas... porquê falar desta obra agora? Para terminar a história presente no início da publicação de hoje, há uns meses contactei a Biblioteca de Ajuda, onde está hoje o único manuscrito desta Da Fábrica que Falece à Cidade de Lisboa, e fui informado que foi recentemente produzido um fac-símile da obra original, que também inclui todos os desenhos. Infelizmente, parece que (agora) até já está em ruptura de stock, mas pelo menos consegui adquirir, para uma biblioteca privada, uma cópia da obra antes de ela se voltar a tornar inacessível ao cidadão comum.

 

Por isso, para ti... que nunca irás ler estas linhas, consegui o que te prometi. Um dia prometi-te que encontraria uma cópia desta obra e acabei por fazê-lo. Demorei alguns anos, já não poderás vê-la aí onde estás, isso macera-me o coração e a alma, mas cumpri a minha promessa (!), e que me perdoem todos aqueles que queiram levar a mal o tema (pessoal) deste dia de hoje. Feita então esta ressalva pessoal, volto, com os meus colegas, aos temas habituais no início da semana que vem!

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11 de Maio, 2022

Adolf Hitler tinha sangue judeu?

Se, há uns anos atrás, alguém nos viesse perguntar se Adolf Hitler tinha sangue judeu, a pergunta pareceria muitíssimo estranha. Seria respondida com algo como "O quê? Estás maluco? Claro que não!" Mas, desde há uns tempos para cá, como aludimos recentemente, essa sugestão parece ter-se tornado mais frequente, razão pela qual achámos que seria muito apropriado dedicar algumas linhas ao tema, seja para confirmar toda esta estranha ideia, ou para a negar de uma vez por todas. Nesse seguimento, qual é mesmo a verdade por detrás de toda essa questão? Para que ela possa ser compreendida há que, talvez mais que tudo, tentar procurar as respostas num breve passo a passo, como faremos abaixo, para deitar este tema por terra de uma vez por todas.

 

Em que consiste 'ter sangue judeu'?

Saber se o ditador alemão "tinha sangue judeu" implica, muito naturalmente, começar por definir esse estranho conceito. É certamente possível que pelo menos um dos seus muitos ascendentes fosse judeu (como os nossos ou os de qualquer outro leitor...), porque é impossível traçar o percurso das nossas famílias até ao início dos tempos. Porém, desde tempos da Inquisição que esta mesma expressão e conceito foram sendo adoptados num sentido muito concreto - não o de uma ascendência quase eterna e impenetrável, mas uma que se prolonga por apenas três gerações, em que bastaria a pequena presença de, por exemplo, um único judeu entre os oito bisavós de Adolf Hitler para considerar que esta figura histórica tinha ascendência judaica. Seria esse o seu caso, ou nem por isso?

 

O que sabemos sobre a família de Adolf Hitler?

Hoje, é muitíssimo fácil abrir um qualquer motor de busca e tentar pesquisar a família do ditador alemão, com a intenção de saber se pelo menos um oitavo dos seus antecessores era de origem judaica. Sem muito trabalho, depressa se consegue encontrar um diagrama como o reproduzido abaixo (provindo da Wikipedia), que aqui foi adaptado para mostrar os pais, avós e bisavós dessa figura.

A família de Adolf Hitler

Muito poderíamos escrever sobre toda esta família, mas o mais importante para o tema de hoje concentra-se no lado esquerdo, relativamente à verdadeira identidade do avô paterno de Adolf, a figura com quem uma tal Maria Schicklgruber teve o seu único filho, a quem deu um nome que acabou imortalizado sob a forma de Alois Hitler. Explicar tudo o que aconteceu com esta família seria uma verdadeira telenovela do século XIX, mas podemos resumi-lo assim - quando este jovem nasceu, a mãe deixou claro, de forma oficial, que não queria revelar a identidade do pai do menino. Posteriormente, isto levaria a imensas confusões, e então, após a morte de um tal Johann Georg Hiedler, foi declarado que este tinha sido o seu pai para todos os motivos legais - quanto mais não fosse, para que pudesse vir a receber a sua devida herança!

Face a este problema, saber a ascendência de Adolf Hitler passa, mais que tudo, por saber com quem a sua avó, Maria Schicklgruber, gerou o pai do ditador. Não há qualquer informação completamente fidedigna, irrefutável, mas as três grandes teorias dos nossos dias dizem que ele terá sido: a) Johann Georg Hiedler; b) Johann Nepomuk Hiedler, irmão mais novo do anterior; ou c) um judeu de nome Leopold Frankenberger.

 

Quem foi Leopold Frankenberger?

Se o avô de Adolf foi um dos irmãos Hiedler - depois "Hitler", tendo o nome sido alterado por razões agora obscuras - tudo bem, eles não tinham sangue judeu. Mas, a tratar-se de um tal Leopold Frankenberger, cujo próprio nome até indica ascendência judia, isso queriria dizer que o ditador tinha, efectivamente, sangue judeu, o que era um problema muito significativo para a carreira política de Adolf - para fazer uma espécie de comparação com os dias de hoje, seria como um partido político ter um dirigente cigano e mesmo assim querer exterminar todos os ciganos!

Mas será isto um mito, ou a mais pura realidade? Existiram, na altura da sua ascensão, diversas controvérsias sobre a ascendência do futuro ditador, mas não pode deixar de se considerar curioso que nunca ninguém tenha levantado a possibilidade directa de ele ser filho de um judeu, ou pelo menos não com o surgimento de um nome ou identidade concreta, de alguém que se tenha chegado à frente e dito que sabia que o verdadeiro avô era a pessoa X. Só depois da guerra é que surgiu, pelas palavras de Hans Frank (sem qualquer relação com a famosa Anne Frank!), antigo advogado do ditador, uma história intrigante...

 

Segundo ela - e recordamo-la aqui por mero título de curiosidade - numa dada altura alguém tentou chantagear Adolf Hitler, pedindo dinheiro em troca de ocultar a sua ascendência judia. O político parecia desconhecer por completo essa estranha possibilidade, até por nunca ter conhecido os avós paternos, e então pediu que ela fosse investigada. Hans Frank disse tê-lo feito, e supostamente encontrou informação que dizia que quando Maria Schicklgruber engravidou trabalhava na cidade de Graz, em casa de uma família judaica de nome "Frankenberger", e se envolveu com um jovem de 19 anos, Leopold (outras versões falam de uma verdadeira violação, até porque a senhora já tinha cerca de 41 anos aquando dessa sua única gravidez).

 

Leopold Frankenberger foi avô de Adolf Hitler?

Claro que esta possibilidade é muito intrigante, sem qualquer dúvida, mas quando se começa a explorar a sua possível veracidade depressa começam a surgir diversos problemas, que nos impedem de afirmar, com certezas, que este Adolf Hitler tinha sangue judeu. Não iremos falar de todos eles, por motivos de tempo e espaço (e até porque este é um espaço de mitos e lendas!), mas talvez os três mais notáveis sejam o facto dos Judeus terem sido expulsos de Graz vários séculos antes; de não existir registo de qualquer família "Frankenberger" com um filho de nome "Leopold" cuja data de nascimento bata certo com toda esta ideia; e de Hans Frank só ter mencionado toda esta história após a guerra, quando nada tinha a perder (nem ninguém para o refutar), e tudo a ganhar para a sua causa anti-semita, ao inventar esta estranha possibilidade.

Alois Hitler, pai de Adolf Hitler, tinha sangue judeu?

Conclusão: Afinal, Adolf Hitler tinha sangue judeu?

Se sabemos que a família de Adolf Hitler teve uma história complicada, também está comprovado que aproximadamente sete oitavos dos seus ascendentes não eram judeus. Não sabemos com quem é que a sua avó materna, uma tal Maria Schicklgruber, teve o filho Alois (visível na imagem acima), pai de Adolf, mas é importante notar, nesse ponto, que salvo uma única história, claramente ficcional e que não é suportada por quaisquer provas reais, e que até só apareceu no pós-guerra por via de uma fonte enviesada, não existem provas de que este senhor de bigode farfalhudo tenha tido ascendência judaica. Ao mesmo tempo, existem algumas provas circunstanciais de que ele tenha sido filho de um dos irmãos Hiedler, Johann Georg ou Johann Nepomuk, quanto mais não seja porque a mesma senhora depois casou com o primeiro.

Portanto, a maior parte dos constituintes de família hoje-conhecida como "Hitler" era comprovadamente cristã, e se Maria Schicklgruber, avó de Adolf, nunca parece ter revelado quem foi o pai do seu único filho, não temos qualquer prova real para afirmar que ele era judeu. Claro que também não temos grandes provas concretas em contrário, mas pelo menos existem alguns indícios de que a mãe tinha alguma ligação notável à família Hiedler, que não era judia.

 

Como tal, dizer que Adolf Hitler tinha sangue judeu é falso, na medida em que não existem quaisquer provas reais dessa possibilidade, com excepção de uma história falsa e inviesada, certamente inventada por Hans Frank, antigo advogado do ditador, por volta do ano de 1946. Não fosse essa infame história - que, relembre-se ainda mais uma vez, é falsa e não tem provas reais a suportá-la - e ninguém ousaria dizer, hoje, que o responsável pela morte de tantos judeus era, também ele, seu consanguinário. Afirmá-lo assim, de uma forma tão pouco suportada por quaisquer provas reais, é uma completa abominação, e deveria ser feito com muito mais prudência e cautela nos nossos dias, dadas as horrendas implicações que pode gerar...

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09 de Maio, 2022

O mito dos Aloidas

Falar do mito dos Aloidas implica, quase obrigatoriamene, falar de um ciclo mitológico da Grécia Antiga conhecido como a Gigantomaquia. As fontes originais para essa sequência de mitos perderam-se ao longo dos séculos, mas chegaram-nos, de uma forma parcial, em obras como a Gigantomaquia de Claudiano, que nos permitem saber, curiosamente, que Camões se terá inspirado nestes episódios mitológicos para o seu Adamastor. Mas então, perdida essa grande maioria dos relatos da guerra entre os Gigantes e os deuses do Monte Olimpo, o que podemos dizer sobre estas duas figuras que dão título à publicação de hoje?

O mito dos Aloidas

Oto e Efialtes eram dois gigantes irmãos, filhos do deus Poseidon e da mortal Ifimedia, que seduziu o monarca dos oceanos derramando muitas vezes as águas do mar sobre os seus seios; porém, como esta já era casada com um tal Aloeu, os seus filhos receberam o nome comum através do marido dela, em vez de do deus. Depois, os dois gigantes foram crescendo continuamente, até que atingiram uma enorme estatura, comum à sua espécie, e decidiram pôr em prática um plano bastante invulgar - quiseram empilhar diversas montanhas para, subindo depois para cima de todas elas, conseguirem atingir o Olimpo celeste e destronar os seus habitantes.

 

Infelizmente, a ausência de fontes literárias que contem todo o episódio torna difícil conseguir reconstituir toda a sua aventura, mas sabemos que os Aloidas não foram capazes de atingir esse seu objectivo. E existem duas grandes versões para explicar o porquê de não o terem conseguido. Numa delas, possivelmente a mais famosa, Zeus precipitiou-se dos céus com o uso do seu famoso raio. Numa outra, que até diz que os dois irmãos eram imortais excepto aos seus próprios golpes, a deusa Ártemis tomou a forma de uma corça e interpôs-se entre eles; esperando capturar o belíssimo animal, ambos o visaram como destino das suas flechas, acabando por, numa estranha coincidência, se atingirem mutuamente. E, assim, Oto e Efialtes faleceram!

 

Como os mais famosos mitos de Tífon e Equidna, esta aventura dos Aloidas peca, hoje, pelo facto de sabermos muito pouco sobre ela. Temos o seu início, sabemos parte do seu desenvolvimento, conhecemos até como terminava toda a aventura, mas mesmo assim desconhecemos a forma como ela tomava lugar na fontes originais da Mitologia Grega. Portanto, tem de nos bastar um breve relato do que se passou, como o descrito acima...

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05 de Maio, 2022

Uma profecia portuguesa do século XVI

Quando aqui falámos sobre o Rei Rodrigo mencionámos uma de muitas profecias do regresso de Dom Sebastião e/ou da monarquia portuguesa. Supostamente encontrada em Alenquer, e também alegadamente do tempo de Dom Sancho II - ou seja, do século XIII - esta é uma de muitas profecias que foram surgindo no século XVI, procurando inspirar o povo português a não aceitar o domínio de Espanha. Já cá falámos de exemplos semelhantes, como o Pretinho do Japão e as famosas Profecias do Bandarra, mas o que este outro exemplo tem de notável é o facto de ser uma profecia muito curta mas nem por isso menos interessante - o manuscrito, que pode ser visto na imagem abaixo, tem um (grande) título no primeiro parágrafo, o texto em Latim no segundo, e uma tradução para Português, num total de oito linhas, no terceiro. E ela diz mais ou menos o seguinte:

Profecia portuguesa do século XVI

Isidoro e Cassandra, filha do Rei Príamo de Tróia, concordando juntamente em um parecer disseram, "E nos derradeiros dias reinará na Maior Espanha um rei duas vezes, dado piadosamente. Ele reinará por meio de uma fêmea cujo nome começará [por] Y e acabará por L. E reinará sendo moço, e limpará os [uma ou duas palavras ilegíveis] e maus costumes dos Espanhóis, e o que o segue não será consumido. [palavra ilegível] o porá por terra. E visitará a Terra Santa e porá o final do crucifixo sobre o Santo Sepulcro e será o Maior Supremo Monarca e toda a igreja [palavra ilegível] renovará."

Claro que toda esta profecia é uma clara ficção - não aparece em qualquer texto real atribuído na Antiguidade a Cassandra de Tróia (o mais notável será certamente Alexandra de Licofron), nem parece ocorrer nos de Isidoro de Sevilha - mas ela não deixa de suscitar algumas boas questões. Que o nome começado por Y e terminado em L seria "Isabel", então grafado "Ysabel", é provável, mas porquê esse nome em concreto e porquê a necessidade de incluir os outros elementos, de um rei católico supremo que viria da Península Ibérica no final dos tempos para controlar todo o mundo? Era uma ideia relativamente comum na época, até em terras de Portugal, mas como todas essas ideias foram surgindo na fantasia popular já não é completamento claro.

 

Pelo sim, pelo não, se um dia voltar ao poder monárquico uma regente de nome Isabel, não se esqueçam desta profecia portuguesa...

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