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Mitologia em Português

30 de Junho, 2022

O que significa comer gato por lebre?

Seria muito interessante aqui contar uma qualquer lenda para a origem da expressão comer gato por lebre, mas hoje focamo-nos é no seu significado. Isto não porque não exista uma qualquer história por detrás de toda a ideia - ela já aparece, com contornos bastante satíricos, em obras da Idade Média, em que é criticada a qualidade da comida de determinadas tabernas - mas porque não parece existir uma qualquer história particularmente famosa que tenha contribuído para toda a popularização da famosa expressão na língua portuguesa. Por isso, o que significa esta expressão bem portuguesa, que ainda muito se utiliza nos nossos dias de hoje?

O que significa comer gato por lebre?

Na cultura portuguesa é comum que se coma coelho e lebre, até em virtude da grande facilidade que é caçar esses animais em meios rurais. Agora, o que menos pessoas saberão é que removido todo o seu pêlo, os dois animais ilustrados na imagem acima são bastante semelhantes, ao ponto de quase se confundirem, tanto em termos da cor da carne como até do próprio sabor da mesma. Agora, teoricamente, isto pode levar alguns donos de restaurantes como menos escrúpulos a matarem gatos e os servirem como lebres - isto porque os primeiros até são muitos mais fáceis de encontrar e de capturar que os segundos!

Nesse sentido, "comer gato por lebre" significa, pura e simplesmente, comprar algo que é mais barato ao preço de algo que tem um valor maior, como fazem muitos restaurantes quando nos servem a todos, por exemplo, pota em vez de polvo.  O cliente, quase sempre fruto da sua inexperiência em reconhecer determinadas espécies, é assim enganado sem muita dificuldade, ao ponto de - como já cá aludimos uma vez - já ter existido um restaurante na zona de Sintra que cozinhava, sem que ninguém parecesse saber, os dois animais que deram nome a esta expressão.

 

Mas... para quem se estiver a interrogar até um pouco mais sobre tudo isto, será que se comem gatos - "por gato", ou seja, sem que seja ocultada a sua origem animal - em Portugal? Mesmo que o leitor comum tenha alguma dificuldade em acreditar em toda a ideia, já existiu uma aldeia do nosso país em que o prato típico foi outrora chouriço de gato. Inicialmente o prato era cozinhado sem qualquer malícia, fruto apenas da grande pobreza da região, mas à medida que o tempo foi passando começou a descartar-se toda a ideia como puro e simples rumor, até porque eram muitos aqueles que se dirigiam ao local só com a intenção de ver se era mesmo verdade (o que ainda irrita os habitantes locais, daí não mencionarmos aqui o nome da aldeia em questão)... mas a confecção do prato, essa, manteve-se até há menos de meia dúzia de anos, altura em que faleceu uma das últimas idosas que ainda se atrevia a seguir a receita tradicional. Agora, em 2022, tanto quanto foi possível apurar na primeira pessoa essa estranha tradição culinária já terminou no local. Como tal, quem quiser comer os tais bichanos, só mesmo se os cozinhar em sua própria casa, ou naqueles estranhos casos em que os restaurantes ainda nos fazem comer o literal gato por lebre. Não recomendamos a dificuldade da experiência, até porque o seu sabor é mesmo muito semelhante ao da lebre!

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28 de Junho, 2022

A lenda de São Frei Gil (e o épico "Egidéa")

Se Frei Gil foi uma de aquelas figuras nacionais que em outros tempos eram muito famosas, hoje também está quase esquecido. E é pena, porque a grande aventura por que passou, segundo nos dizem as lendas, fazem dele uma espécie de Fausto nacional, numa história que parece ter fascinado tantos públicos ao longo dos séculos que há menos de 300 anos até lhe foi dedicado um poema épico, a Egidéa, que em versos de autoria anónima recontam a respectiva história. Agora, é provável que ele ainda seja um pouco conhecido em terras de Santarém, onde viria a falecer, mas para todos aqueles leitores que nunca ouviram falar dele - é Frei Gil, sim, mas também "São ...", "... de Valadares" (o apelido de seu pai), "... de Portugal", "... de Vouzela" (onde nasceu), etc. - iremos aqui recontar a sua lenda de uma forma sucinta.

Frei Gil e a Egidéa

Nascido Gil Rodrigues de Valadares em 1190, após alguns anos decidiu ir estudar Medicina na Universidade em Paris. Este elemento é factual, mas tudo o resto poderá tratar-se de uma estranha mistela de lenda e realidade, onde nem sempre é possível reconhecer onde termina um e começa o outro, sendo essa uma informação crucial a ter em conta nas linhas que se seguem.

Conta-se que este Gil, enquanto viajava para Paris, passou pela cidade espanhola de Toledo, em que um misterioso homem o convenceu que existia um curso para ele melhor que aquele que tinha escolhido - o da Necromancia ou Magia Negra. Primeiro intrigado, mas depois já convencido, o herói assinou um contracto em sangue e dedicou-se sete anos ao estudo das artes mágicas, antes de se dedicar a todo o tipo de maldades e concluir muito facilmente o curso que tinha planeado tirar em Paris, até dados os seus conhecimentos etéreos. Mas depois, um dia, quando estava fechado a estudar, surgiu-lhe em casa um cavaleiro misterioso, que lhe disse "Ó homem, muda a vida, muda a vida!"; ignorando-o, continuou os seus estudos, até que o misterioso cavaleiro lhe apareceu uma segunda vez e lhe disse "Ó homem, muda, muda a tua vida, senão com esta lança a tens perdida!"... e, meio por temor de um ferimento que pareceu sofrer, meio por arrependimento, Gil decidiu que tinha mesmo de mudar a sua vida.

 

Andou de terra em terra até dar por si em Palência (Espanha), em que se juntou a uma ordem religiosa, a dos Pregadores. Posteriormente viria para Portugal, vivendo numa casa de outra ordem (a dominicana?), em Santarém. Mas, por muitas penitências que realizasse, nunca deixou de se lembrar que os demónios ainda tinham o contracto da sua alma... até que um dia, enquanto rezava e contemplava uma estátua da Virgem Maria, lhe pediu a sua intercessão e - diz a lenda, repita-se bem isso - com a ajuda dessa famosa advogada acabou por ser capaz de se livrar, de uma vez por todas, da influência demoníaca que tantos anos o aterrorizou. Viria a morrer alguns anos mais tarde, a 14 de Maio de 1265, mas deixou-nos uma cinta de ferro que usava para sentir na carne o peso dos pecados que anteriormente tinha cometido (se ela ainda existe hoje, não conseguimos encontrar uma fotografia).

 

Esta é a lenda de Frei Gil, tal como tende a ser recontada e como foi adaptada para o poema épico Egidéa. É difícil saber onde estão os elementos lendários e a pura verdade em tudo isto - por exemplo, poderá ter sido o seu jeito para a Medicina que inspirou a ideia do pacto demoníaco - mas todas as versões que consultámos são peremptórias tanto em afirmar a existência de um pacto com o Diabo, como em proclamar que, depois, o herói veio a renegar a essa influência diabólica. É esse elemento, tão incomum em hagiografias nacionais (e até estrangeiras!), que o tornou especialmente famoso e o manteve nessa estranha posição ao longo dos séculos, ao ponto de o podermos resumir como o santo português que fez um facto com o demónio.

 

Mas, deixando agora de lado a lenda para nos focarmos no poema épico Egidéa, será que ainda vale a pena lê-lo? Apesar da presença de uma meia dúzia de estrofes com alusões mitológicas, a construção poética, em si mesma, não nos pareceu particularmente agradável. Se, por um lado, reconta toda a lenda de Frei Gil de uma forma relativamente simples, por outro, a forma como o faz tem pouco de belo, quase como se apenas se tivesse tentado fazer rimar uma história em prosa. E, na verdade, não encontrámos nos seus nove cantos uma única estrofe que sentíssemos que fosse particularmente bela, só merecendo a abaixo - retirada de um instante em que os demónios torturam o herói - uma referência pela alusão mitológica:

Tisífone aumentava a enfermidade
Que já desde Paris o perseguia.
Alecto mais perversa na verdade
Muito mais dura guerra lhe faria.
Dizendo que a Divina Piedade
Inexorável sempre lhe seria.
Mas a terceira irmão não dava a morte
Por ver se o concluía de outra sorte.

Por isso, a Egidéa merece ser recordada nestas linhas por se tratar de um dos poucos poemas épicos sobre as desventuras de um futuro santo, e por ter como seu tema uma lenda que, feliz ou infelizmente, parece estar mais e mais esquecida. Não é uma obra fácil de encontrar, mas talvez nem valha a pena o trabalho de tentar reencontrá-la, excepto para alguém que tenha um enorme interesse no tema. Para os outros, prefiram antes a mais-risonha Gaticanea!

 

E uma última curiosidade - se este São Frei Gil foi contemporâneo do Santíssimo Milagre e até parece ter vivido na mesma cidade de Santarém nessa altura, nenhuma versão da lenda parece fazer cruzar as duas ocorrências, o que pode fazer levantar algumas questões muito curiosas...

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24 de Junho, 2022

Danny, o fantasma do Natal da África do Sul?

Hoje focamo-nos no estranho tema de Danny, o fantasma do Natal da África do Sul. Ouvimos falar de todo este tema através de um amigo que tinha lido a respectiva história online e queria saber se ela era de facto verdade. Por isso, decidimos partir em sua busca... mas visto que o tema não é propriamente muito conhecido em terras de Portugal, parece-nos bastante apropriado que se comece por contar a sua breve história.

A história de Danny, o fantasma de Natal

Supostamente, existia na África do Sul uma criança muito jovem que se chamava Danny. Ele era muito guloso. Então, um dia, mesmo na véspera de Natal, a avó dele - cujo nome nunca é referido - cozinhou bolachas para deixarem ao Pai Natal. Incapaz de resistir ao sabor das mesmas, este Danny comeu-as todas às escondidas. Depois, quando a respectiva avó notou o que o neto tinha feito, zangou-se tanto que lhe deu uma enormíssima tareia, acabando mesmo por matá-lo. Ele transformou-se num fantasma que visita as casas na Consoada, castigando as crianças que se portam mal.

Esta história de Danny, o fantasma do Natal, é estranhíssima, no contexto de potenciais tradições dessa altura do ano, pelo que não podia deixar de suscitar o nosso interesse. Seria ela verdade? De onde vem? Será que é, de facto e como diziam as pouquíssimas fontes que encontrámos, uma história tradicional da África do Sul? Intrigados, e depos de muitas conversas sobre o tema, decidimos partir em sua busca.

 

Começámos por perguntar a nativos da África do Sul se conheciam esta história - a resposta foi sempre peremptória, ninguém a conhecia. Procurámos depois em dezenas de livros sobre tradições de Natal, mas ela não era mencionada em nenhum deles. Tentámos ainda professores universitários desse país, bem como funcionários da embaixada, mas também eles nunca tinham ouvido absolutamente nada sobre esta história. Ou seja, se esta era, de facto, uma famosa história tradicional desse país, é muitíssimo curioso que absolutamente ninguém a tenha conhecido antes. O que seria possível - por exemplo, em Portugal poucos conhecem a história de Guesto Ansures - mas torna impossível que se trate de um famoso e tradicional conto de Natal desse país!

 

Decidimos então procurar mais informação sobre o seu nome, "Danny". O nome não se encontrava entre os 1000 mais comuns desse país, mas visto que "Daniel" ocorria na lista, o suposto nome do fantasma podia ser um diminutivo utilizado pela avó. Ou poderia apenas ter sido associado à história mais tarde. Como tal, decidimos pesquisar tradições natalícias desse país, e se encontrámos toda uma panóplia que nos poderá parecer mais ou menos estranha, absolutamente nenhuma delas se referia a algum fantasma. O que também não deixa de ser curioso, porque se encontrámos, de facto, um número significativo de histórias fantasmagóricas vindas desse país, a de hoje nunca se encontra entre elas. É como se, na verdade, absolutamente ninguém desse país a conhecesse, um ponto que devemos frisar de forma muito repetida, até porque todas as páginas que mencionam esta história ou o fazem sem citar quaisquer fontes, ou revelam que a obtiveram de um local que também não mencionava quaisquer fontes.

 

Mas... queiramos ou não, esta história de Danny, o fantasma do Natal da África do Sul, existe. Alguém terá de a ter inventado e escrito pela primeira vez. Ela terá vindo de algum lado. Seguimo-la cronologicamente até ao dia 13 de Dezembro de 2015, altura em que Siobhan Downes, da Nova Zelândia, publicou online um artigo sobre estranhas tradições de Natal, como a Befana e o Krampus, entre as quais menciona o seguinte:

Deep fried caterpillars, South Africa

On Christmas Day, some South Africans tuck into a particularly wriggly delicacy - the sundried Emperor Moth caterpillar, which is served deep-fried. But if you think that sounds bad, wait until you hear about what happened to Danny, a young South African boy who ate all the Christmas cookies before Santa Claus arrived. In a fit of rage, the tale goes, his grandmother murdered him. The story is apparently meant to teach children about the perils of being too greedy, and Danny is said to haunt homes on Christmas Day, making sure they got the memo. So, how about those caterpillars?

As lagartas comidas no Natal

A tradição de comer as lagartas é bem real, por estranho que possa parecer no nosso país, mas nada conseguimos encontrar sobre o resto da história, nem ela parece ser conhecida entre os nativos sul-africanos (que também confirmaram que comem mesmo as tais lagartas, acrescente-se). E se uma suposta tradição não é conhecida ou sequer praticada entre aqueles que se crê que a praticam, sê-lo-á por quem?!

 

Então, de onde vem toda esta história, afinal de contas? Contactámos Siobhan Downes em busca de mais esclarecimentos sobre este Danny, o fantasma do Natal da África do Sul, mas nunca obtivémos qualquer resposta dela ou da editora da secção de viagens do respectivo site, aquele onde toda esta história parece surgir online pela primeira vez. É portanto provável que se tenha tratado de uma prática editoral em que se incluem informações falsas num artigo para conseguir detectar quem é que anda a reproduzir ilegalmente os mesmos... o que é uma prática relativamente comum em algumas indústrias para impedir cópias de conteúdos, e poderá ter sido isso que aconteceu aqui, visto que ninguém parece conhecer a história original por detrás de uma tradição que se suporia famosa entre os locais.

 

Mas tudo isto ainda não fica por aqui. Se o artigo anterior era de 13 de Dezembro de 2015, um outro, o segundo sobre o mesmo tema, datado de 23 de Dezembro de 2015 e da autoria de uma tal Melanie Dimmitt, diz o seguinte:

Fried caterpillars and ghosts in South Africa

South African’s celebrate the holiday by dishing out a freshly fried batch of Emperor moth caterpillars (and you thought KFC was bad…), while children are also told the charming story of Danny, the young lad who ate all of Santa’s cookies – enraging his grandmother so much that she killed him, leaving his ghost to haunt homes at Christmas.

As semelhanças com o anterior são mais que muitas, mas é notável que esta segunda autora nada adicione ao tema, apresentando a história precisamente com os mesmos elementos gerais da sua antecessora. Terá sido plágio? Não diríamos tanto, pelo menos não com provas limitadas, mas se uma história não parece existir durante décadas e depois aparece em dois locais distintos num espaço de 10 dias, contada sucintamente e com diversos elementos comuns, é difícil negar que a autora do segundo conhecesse o artigo da primeira sobre esse mesmo tema.

 

Então, o que podemos concluir sobre Danny, o fantasma do Natal da África do Sul? Por muito que possam ter lido essa história em outros locais, ela parece ser desconhecida no país de onde se supõe que vem. Não encontrámos qualquer prova real e bem atestada da sua existência antes do dia 13 de Dezembro de 2015, tratando-se quase certamente de uma falsa tradição natalícia, talvez criada para detectar potenciais plágios num tema que tende a ser muito comum no período de tempo que precede a celebração do Natal.

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23 de Junho, 2022

O que é a Mantícora?

Hoje, falar de uma criatura tão estranha como a Mantícora - ou Manticore, como outros lhe chamam - é quase imperativamente falar de videojogos. Isto porque, se este não se trata de um animal real, que possa ser encontrado algures no nosso mundo, é curioso aperceber-nos que ele é repetidamente representado de um forma muito consistente, quase como se fosse uma espécie animal que se encontre num qualquer jardim zoológico. Se o mesmo até se passa com outra criaturas lendárias, como o unicórnio ou o hipogrifo, mas é obviamente impossível que alguém as tenha visto, de onde nasceu a ideia horizontal de todos estes estranhos animais?

A origem da Mantícora ou Manticore

Procurar informação sobre a origem da Manticora requer uma espécie de viagem no tempo, até há cerca de 2500 anos atrás. Foi nessa altura que viveu um tal Ctésias de Cnido, que escreveu duas outrora-famosas obras sobre a Pérsia e a Índia. Elas já não nos chegaram numa forma completa, mas Fócio de Constantinopla, no século IX da nossa era, ainda as leu e resumiu parte do seu conteúdo. Nesse seguimento, o que essas duas obras têm digno de nota é que continham um espírito que é quase um elogio indirecto a Heródoto, na medida em que apresentavam tantas e tão grandes falsidades que até a famosa obra do historiador grego - e essa ainda nos chegou - parecia mais digna de crédito.

Seres humanos lendários

Então, entre as muitas falsidades contadas por Ctésias na sua História da Índia, apresentam-se relatos sobre uma imensidão de seres que, hoje, definiríamos como apenas e somente lendários, como os que podem ser vistos na imagem acima. Entre essas muitas figuras contava-se então a Mantícora, a que o autor dá tantos pormenores que poderíamos ser levados a julgar tratar-se de um animal real, com as seguintes características - Cara humana, com orelhas iguais às nossas e olhos azuis; do tamanho de um leão; pele vermelha; três filas de dentes; cauda como a de um escorpião, mas capaz de atirar projécteis mortais; e come humanos e animais.

 

Caso não seja óbvio, esta descrição da Mantícora não corresponde a qualquer animal real, que possa ser encontrado hoje, mas alguns autores dizem que poderá ter nascido de encontros com tigres, que não existiam na Europa mas eram comuns na Índia. Tudo é possível, claro, mas mesmo que ninguém alguma vez tenha visto esta criatura com os seus próprios olhos, ela não foi sendo esquecida - se Ctésias escreveu por volta do século cinco antes de Cristo, os autores que se lhe seguiram, como Plínio o Velho e Cláudio Eliano, continuaram a perpetuar esta história, atribuindo-a quase sempre à obra original de uma forma bastante directa, o que nos permite saber, sem quaisquer dúvidas, de onde conheciam esta criatura.

 

Da obra de Ctésias, a Mantícora - ou, com um nome alternativo que também lhe é dado, a "Martícora" - passou então para um conjunto de obras sobre História Natural, chegando à Idade Média, onde foi incluída em diversos bestiários, como se de um animal completamente real se tratasse. Daí chegou aos nossos dias, onde agora aparece em videojogos, filmes e livros, o que não deixa de ser um percurso ilustre para uma criatura que, na verdade, nunca existiu nem nunca pôde ser vista por ninguém...

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21 de Junho, 2022

A lenda do Barbadão

No norte de Portugal, mais precisamente na zona de Barcelos, pode ser encontrado o chamado Solar dos Pinheiros, em que está representada uma figura muito conhecida sob o nome de Barbadão. Que ela está, de alguma forma, relacionada com o fundador da casa (Pedro Esteves, em 1448), ou com o seu filho deste (Alvaro Pires Pinheiro Lobo, que ergueu as respectivas torres), parece-nos quase óbvio, mas que lenda se esconde neste local?

A lenda do Barbadão e o Palácio dos Pinheiros

Neste caso específico o problema não se prende tanto com encontrar uma lenda associada ao local, uma que possamos recontar aqui, mas com a existência de diversas histórias que lhe estão associadas, sendo difícil saber qual, se alguma, era a original, a "verdadeira", por detrás da famosa representação. Como tal, contamos aqui duas breves lendas que aparecem associadas ao local, e que parecem contar-se entre as mais famosas.

 

A primeira diz que o homem aqui representado era o fundador desta casa, que queria construir enormes torres no local, nem que para isso tivesse de "empenhar as suas barbas". Porém, o primeiro Duque de Bragança, Dom Afonso, não permitiu que isso fosse feito, por razões desconhecidas, e então as torres passaram a ter uma representação alusiva à expressão, como que a dizer "eu até teria empenhado as minhas barbas para as ter construído maiores".

 

Uma segunda diz que o Rei Dom João I se apaixonou por uma Inês Pires [Esteves?], que era desta família, no que poderá ter sido uma de muitas infidelidades do monarca. A relação extraconjugal manchou bastante a honra do pai dela, levando-o a proclamar que, em detrimento de vingar toda a afronta matando o novo monarca, jamais tornaria a cortar as suas barbas, que eram então um símbolo de honra. Depois, o rei lá veio a admitir a relação extraconjugal, e a dar nome ao filho nascido dela, mas o avô da criança jamais tornou a cortar as suas barbas, fruto da promessa que um dia tinha feito, ficando com o nome de Barbadão e tornando-se uma espécie de símbolo que depois viria a ser representado neste local.

 

Não sabemos, repita-se, qual destas duas lendas terá sido a "verdadeira", aquela que gerou a representação que hoje ainda pode ser vista no Solar dos Pinheiros. Poderá ter sido uma delas, ou o busto poderá ter ido parar ao local por uma qualquer outra razão que o tempo fez esquecer. Porém, o que sabemos é que esta representação de um homem com longas barbas, numa pose em que parece quase querer arrancá-las, ou terá inspirado diversas lendas, ou terá de alguma forma obtido a sua inspiração por elas. É uma de aquelas situações do ovo e da galinha, em que é muito difícil saber-se se a representação veio de alguma lenda do Barbadão ou vice-versa, só restando concluir que existe, sem quaisquer dúvidas, uma relação palpável entre ambas, mesmo que já não se consiga (agora) ter a certeza de qual é ela...

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20 de Junho, 2022

A criação na Mitologia Coreana

Falar sobre a criação na Mitologia Coreana, no seu momento inaugural, é provavelmente um dos desafios mais complexos que já passaram por este espaço. Isto porque, segundo todas as fontes que consultámos e todos os coreanos com que falámos, nos foi dito que nenhuma fonte literária primária antiga fala de qualquer espécie de criação do universo e do nosso mundo (se hoje até existem relatos do episódio, são muito mais recentes e foram criados para colmatar essa falha original). É certo que terá existido uma, potencialmente composta por uma mescla de crenças hindus, budistas e taoistas, mas o grande problema é que nenhum texto que nos chegou preserva essa criação tal como se pode depreender que ela tomou lugar. Em alternativa, o que acontece é que a cronologia mitológica coreana, tal como nos chegou, começa com um conjunto de episódios em que está claro que já existiram várias criações substantivas, mas sobre as quais absolutamente nada nos é dito. Como tal, é com base nesses episódios que são escritas as linhas de hoje.

A criação na Mitologia Coreana

Conta-se que um dia Hwanung, o filho do Rei dos Céus, olhou para baixo e viu a belíssima península que um dia viria a ser a Coreia. Cativado por essa enorme beleza, pediu a seu pai autorização para descer do reino em que viviam, mas este estava relutante em deixar que isso tomasse lugar. Acabou por ser convencido, e então Hwanung desceu dos céus, juntamente com os seus barões da chuva, das nuvens e do vento, e estabeleceu-se na zona, posteriormente ensinando aos seres humanos todas as artes, começando com a da Agricultura.

Um dia, uma ursa e um tigre aproximaram-se deste deus, pedindo-lhe que fossem transformados em seres humanos. Insistiram muito no pedido, até porque Hwanung estava relutante em concedê-lo, até que esse deus lhes fez uma oferta irrecusável - se conseguissem viver no interior de uma caverna durante 100 dias, sem nunca verem a luz do sol e comendo apenas alho e artemísia (i.e. uma espécie de planta), ele transformá-los-ia em seres humanos. As fontes não são completamente claras no que aconteceu imediatamente a seguir, mas é dito que a ursa se transformou em mulher após apenas "três vezes sete dias", enquanto que o tigre depressa se chateou com a tarefa e saiu da caverna, mantendo para sempre a sua forma de animal.

O tempo foi passando, e a mulher - agora chamada Ungnyeo, i.e. mulher-ursa - que um dia tinha sido uma ursa começou a sentir-se cada vez mais sozinha e triste. Pediu então a Hwanung que lhe desse um companheiro, e então este deus, movido por uma grande compaixão, transformou-se em homem, casou com ela e gerou-lhe um filho, Dangun, que veio posteriormente a criar o primeiro de todos os reinos da Coreia.

Ungnyeo, a primeira mulher da mitologia coreana

A falarmos de uma criação na Mitologia Coreana, este é o período mitológico mais antigo a que ainda temos acesso, com a descida dos céus de Hwanung e a fundação de aquela que pode ser considerada a primeira civilização que ocupou a península da Coreia. É natural que levante bastantes questões - por exemplo, quem criou a terra e os animais? Como sabiam o tigre e a ursa da existência de seres humanos? - mas, muito infelizmente e como já frisado acima, as fontes literárias que nos chegaram já nada contam sobre isso.

Ainda assim, há um pormenor curioso em toda esta história - se existem, nos mitos da Coreia, diversas outras histórias em que ursos se transformam em seres humanos, ou vice-versa, nos exemplos em que surgem tigres eles parecem ser sempre considerados como simples animais, que apesar do seu natural poder físico não sofrem transformações. Será pura coincidência, ou uma alusão a este primeiro mito? Não o conseguimos descobrir até à presente data.

 

Mas toda esta história da criação na Mitologia Coreana ainda não fica por aqui. Conforme já aludido acima, existem todo um conjunto de elementos nos mitos da Coreia antiga que nos remetem para crenças hindus, budistas e taoistas. Nesse sentido, é possível que o pai de Hwanung tenha sido, originalmente, aquele deus a que na Índia chamam Indra, também ele "rei dos céus" e a que já cá fizemos uma alusão anteriormente. Nos mitos hindus esse deus, originalmente muito pujante, foi perdendo importância ao longo dos séculos, face a figuras como Vishnu, Shiva ou Ganesha, mas esta interrelação poderá indicar que em tempos mais antigos os mitos coreanos tiveram alguma espécie de criação, uma com contornos mitológicos semelhantes aos dos seus vizinhos. Não sabemos como era, mas as fontes que ainda temos permitem depreender que foi sendo abandonada devido a um conteúdo que poderíamos descrever sucintamente como incrível ou inacreditável. E mais que isso já não nos é possível conhecer neste momento...

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19 de Junho, 2022

O curioso filme "Winds of Change"

Hoje falamos de um filme curioso, Winds of Change, com que nos deparámos há algumas semanas. Ele também é conhecido por vários outros nomes, nomeadamente Metamorphoses e Orpheus of the Stars, naturalmente referindo-se ao facto de conter histórias adaptadas das Metamorfoses de Ovídio, mas este acaba por ser um daqueles casos em que o próprio filme tem tanta ou  mais história que a sua própria trama.

Winds of Change ou Metamorphoses

Na sua forma original, que aparentemente tinha o título de Metamorphoses, este filme distribuído pela Sanrio - a tal empresa mais famosa por Hello Kitty - foi lançado em 1978 como uma espécie de animação musical, na tradição de Fantasia da Disney. Não tinha uma trama contínua, mas sim cinco histórias não relacionadas umas com as outras que, no seu geral, foram retiradas da famosa obra de Ovídio - os mitos de Perseu e a Medusa; Acteon; uma história aparentemente inventada, em que as personagens principais nem têm nome; Orfeu e Eurídice; e Faetonte. Toda a ideia até é interessante, mas quem tiver ido ver esse filme deparou-se com alguns problemas, nomeadamente a ausência de qualquer diálogo (o que tornava difícil perceber as histórias), a reutilização constante das personagens principais (o que dava a falsa ideia de que eram sempre as mesmas); e o facto das músicas não captarem o espírito do que se ia passando no ecrã.

 

Para corrigir estes problemas, uma nova versão do filme foi produzida, aparentemente com o título Winds of Change no Ocidente e Orpheus of the Stars no Japão. À versão original foram cortadas algumas cenas, foi adicionado um narrador, este passou a tentar explicar que existia uma reutilização das personagens mas em papéis diferentes, e as músicas - originalmente muito mais interessantes - foram alteradas para serem condizentes com o que podia ser visto no ecrã.

 

Para a escrita destas linhas fomos ver ambos os filmes, um depois do outro, e o cerne da sua trama é essencialmente o mesmo. Tem algumas cenas bastantes bonitas, como o momento em que Faetonte perde o controlo dos cavalos solares de Hélio, mas em determinados momentos esta até parece ter sido uma criação composta pelos restos de dois filmes diferentes, com heróis muito infantilizados, mas algumas criaturas mitológicas e deuses a serem apresentadas como monstros assustadores. A ideia pode confundir um pouco a audiência, mesmo em Winds of Change, porque se fica um pouco com a ideia de que os seus criadores não sabiam bem a quem queriam destinar o seu filme.

 

Vale então a pena ver Winds of Change, Metamorphoses, Orpheus of the Stars, ou como queiramos chamar às diversas versões deste filme? Não. O filme merece aqui ser mencionado pela sua tentativa de adaptar as histórias de Ovídio para os nossos dias, numa altura em que isso ainda não era muito comum no audiovisual, mas fora isso este já não é um filme que poderá agradar bastante às audiências de hoje em dia.

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17 de Junho, 2022

A lenda de Tamamo-no-Mae (e Daji)

Não estava planeado hoje aqui falarmos de Tamamo-no-Mae ou de Daji, mas uma sequência de coincidências que teve lugar há alguns dias levou à escrita destas linhas, agora bastante presas entre lendas do passado e histórias dos nossos próprios dias.

Daji, a Huli Jing

Quando aqui falámos sobre uma criatura mística chinesa conhecida como Huli Jing, contámos parte da história de uma figura muito famosa na China, conhecida como Daji, que na altura resumimos assim:

Na Investidura dos Deuses (uma novela chinesa de título original Fengshen Yanyi), a principal antagonista é Daji, uma criatura como as que discutimos aqui hoje. Ela matou uma mulher, tomou o seu lugar, e ao longo de toda a obra vai usando os seus poderes místicos e de sedução para manipular o grande monarca da época, levando-o a realizar todo um conjunto de actos absolutamente bárbaros que, em limite, o fazem ordenar a morte de três grávidas somente para lhes abrir as barrigas e poder ver a posição das crianças no seu interior (se acham isto sórdido, convém deixar claro que a mesma novela apresenta diversos actos ainda mais horrendos). É, de facto, ela a grande responsável pela eventual queda do monarca e de toda a sua linhagem, através de um conjunto de mais de 10 grandes crimes que fomentou.

Os actos desta personagem ainda hoje são recordados na China - ainda há algumas semanas uma jovem chinesa nos dizia que quando era criança via filmes sobre isto na televisão e ficava sempre maravilhada com a tremenda beleza física desta vilã - ao ponto de Huli Jing ser também hoje o nome dado às prostitutas (presumivelmente, em virtude da beleza mas também de todas as malvadezas desta mulher). Porém, nessa Investidura dos Deuses, que nos parece ser uma das mais interessantes histórias da China, Daji nunca acaba por ser punida convenientemente. Ela, o poderosíssimo espírito de uma raposa de nove caudas, escapa com vida, naquilo que hoje poderíamos até chamar uma espécie de sequel bait - e admita-se que nem pensámos muito mais nisso até há umas horas atrás!

Parte da lenda de Tamamo-no-Mae

Vieram então dizer-nos que depois de abandonar o corpo falecido desta vilã chinesa, o espírito malévolo desta raposa ocupou o corpo de muitas outras figuras, usando sempre a sua enorme beleza para conquistar muitos outros homens poderosos, que foi levando a cometer novos e horrendos crimes. Andando de corpo em corpo, causando a paixão de diversos outros monarcas, em inícios do século XII foi parar ao Japão, em que adoptou a forma de uma belíssima mulher chamada Tamamo-no-Mae e se tornou uma das amantes do Imperador Toba. Depois tentou matá-lo, procedendo como sempre o fazia, mas acabou por ser derrotada e expulsa do palácio. E continuou viva.

Sesshoseki, a misteriosa Pedra da Morte

Contudo, é também aqui que toda esta história se torna ainda mais fascinante - quando a misteriosa raposa mística escapou do corpo de Tamamo-no-Mae, fugiu para a zona japonesa de Nasu, onde sofreu um golpe quase fatal. Forçada a escolher entre a vida e a morte, decidiu então transformar-se em pedra, de certa forma vivendo entre os dois mundos. Mas ela não se tornou uma pedra qualquer - com os seus eternos poderes místicos foi destruíndo todos aqueles seres que dela se aproximavam, ganhando por isso o nome de "Pedra da Morte" (殺生石, ou Sesshoseki). Segundo uma versão de toda a história, isto continuou a ter lugar até cerca de finais do século XIV, em que um monge budista exorcisou a pedra e lhe colocou um selo protector em redor, para garantir que esta malévola figura nunca mais causava problemas a absolutamente ninguém.

Como pode ser visto na fotografia acima, tirada no ano de 2016, a famosa pedra ainda existia e ainda tinha esse selo protector. Mas depois, por volta do dia 5 de Março de 2022, aconteceu com ela algo de inesperado (a fotografia veio do Twitter e foi aqui adaptada):

Sesshoseki, a misteriosa Pedra da Morte, como está agora

É curioso constatar que já existe há alguns séculos uma história nipónica em que isto tinha lugar. De nome A Roda de Fiar e a Raposa de Nove Caudas (糸車九尾狐, ou Itoguruma Kyubi no Kitsune), nessa história esta famosa pedra partia-se em duas e o espírito que um dia tinha sido o de Tamamo-no-Mae escapava do local, ocupando depois o corpo de uma idosa que aí passava, com o qual se pretendia, antes de mais, vingar da família do homem que lhe tinha morto o corpo anterior. O que, queiramos ou não, só pode ser muito mau sinal!

Como o povo costuma dizer, "não acreditamos em bruxas, mas que as há, há". Será que aquele malévolo espírito, que se dizia que outrora ocupou corpos femininos lindos, como os de Daji e de Tamamo-no-Mae (entre outros para aqui menos relevantes), está agora livre, escapou do local e se prepara para causar infindáveis problemas outra vez?! Só o tempo o dirá...

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15 de Junho, 2022

O mito de Bhasmasura

A história de Bhasmasura merece aqui ser contada, talvez mais que tudo, pelo facto de exemplificar aquele carácter quase humano, para nós inesperadamente falível, dos deuses do Hinduísmo, que já cá apontámos quando falámos da lenda de Kurma e o Oceano de Leite, que é muito famosa na Índia. Talvez este outro mito, a que dedicamos as linhas de hoje, não o seja tão popular, mas tem um elemento tão inesperado quanto particularmente belo, como iremos mostrar mais à frente.

Bhasmasura e Mohini

Conta-se que Bhasmasura era um grande devoto do deus Shiva, procurando agradar-lhe com a realização constante de inúmeras meditações e de inumeráveis bons actos. Então, um dia o deus decidiu compensá-lo com a oferta de um desejo. O devoto, contente com a inesperada proposta, pediu para obter a capacidade de destruir, transformando em cinzas, todos aqueles a quem tocasse na cabeça, o que lhe foi rapidamente concedido.

Porém, depois, por uma qualquer razão que até parece variar mediante a versão da história, este homem quis então tocar na cabeça de Shiva. Talvez quisesse apenas testar o seu poder recém adquirido, talvez quisesse conhecer os limites do poder dos deuses, talvez estivesse apaixonado pela esposa de Shiva, ... mas a verdade é que, qualquer que tenha sido a razão por detrás do seu acto, desejou fazê-lo! Assustado com a possível destruição (?), o deus que este homem tanto tinha admirado procurou então a companhia de Vishnu e pediu-lhe ajuda. Assim, para auxiliar o seu companheiro, este último deus converteu-se em Mohini (um avatar feminino de que já cá falámos antes) e de alguma forma seduziu Bhasmasura - na que parece ser a versão mais famosa do episódio, eles até dançam juntos - levando-o a colocar a mão na própria cabeça, conduzindo-o assim à sua inevitável destruição.

 

É, admita-se, uma história relativamente simples, fácil de resumir, mas nem por isso menos bonita. Nela, talvez o momento mais digno de nota seja até o desse curioso confronto de Vishnu, sob a forma de Mohini, com Bhasmasura, como pode ser visto neste belíssimo vídeo provindo de terras da Índia, e que até resume toda a história de hoje.

Bastante bonito, não é?

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12 de Junho, 2022

A lenda do Bom Jesus de Matosinhos

Terminam hoje as festas anuais do Bom Jesus de Matosinhos, com a sua famosa imagem de Cristo que, segundo a lenda, data do primeiro século da nossa era. Agora, se são muitos os nomes que lhe foram sendo associados ao longo dos séculos (como Senhor de Matosinhos), talvez poucos sejam mais famosos que o original, o "de Bouças", em virtude de um concelho, hoje já desaparecido, na zona do Porto em que existiu um mosteiro em que esta famosa imagem foi guardada durante séculos, então sob o nome de São Salvador de Bouças. Conte-se, então, a história desta representação de Cristo, tão famosa que até é venerada em Congonhas, nas terras do Brasil!

O Bom Jesus de Matosinhos

Na fotografia acima pode ser visto o chamado Bom Jesus de Matosinhos. É uma representação um tanto ou quanto estranha, como é fácil constatar. Se as imagens que o acompanham são muito mais recentes (se a memória não nos engana terão cerca de quatro séculos), a principal, a do próprio Jesus Cristo, diz-se que data do primeiro século da nossa era. Isto porque, seguindo a lenda, ela foi feita pelas mãos de Nicodemos, um contemporâneo de Cristo que foi o responsável pela sepultura do filho de Deus. Depois, em tempo de perseguição e segundo uma versão da lenda, ela foi atirada aos mares, onde viria a dar à costa nesta cidade do norte de Portugal, dizendo parte da história que isso aconteceu por volta do dia 3 de Maio do ano 124. Na altura faltava-lhe um braço, o esquerdo, que foi encontrado na mesma praia a 25 de Maio de 174. Reconstruída então a totalidade da representação original, diz-se depois que a imagem foi escondida no tempo dos ataques muçulmanos, só tendo sido recuperada no século de Afonso Henriques, e assim se pode resumir o cerne de toda a sua história.

 

Mas... quem tiver mais interesse nestes temas poderá fazer-se uma questão bastante óbvia - como sabemos tudo isto? Que provas há de todas estas coisas? A verdade é que.... nenhumas, ou quase nenhumas, porque em dada altura os registos da chamada Igreja de Bouças foram destruídos num incêndio, e então nada de muito real e comprovável se pode afirmar sobre esta misteriosa imagem do Bom Jesus de Matosinhos. É provável que tudo isto se trate de pura lenda e nada mais, até porque Alexandre Manuel Viegas Maniés, na sua tese de mestrado O Crucificado Bom Jesus de Matosinhos: Estudo técnico – conservação e restauro de uma escultura medieval, demonstra um conjunto provas que atestam que a imagem foi produzida após o século VII da nossa era, sendo por isso medieval. A cruz é mais tardia.

 

Mas, por um momento esqueça-se isso. Suponha-se que apesar da imagem parecer um tanto ou quanto estranha (o que até pode atestar, de forma indirecta, a sua idade significativa), data mesmo do primeiro século da nossa era. Se assim o fosse, como explicar que a cruz, e Cristo crucificado, só se tenham tornado símbolos cristãos vários séculos mais tarde? Ou como explicar que, também nesse primeiro século da nossa era, já existissem crentes dessa nova religião em Portugal? Surpresa, surpresa (!), é também para explicar isso que surge uma outra lenda associada a esta!

 

Matosinhos e a Origem da Vieira de Santiago

Conta-se então que em meados do século I vivia na zona que é hoje Matosinhos um tal Gaio ou Caio Cárpio. Enquanto festejava o seu casamento numa zona próxima da praia avistou no mar uma estranha barca. Tentando aproximar-se dela, reparou que o seu cavalo conseguia correr miraculosamente sobre as águas, chegando até à embarcação que transportava o corpo de Santiago (famosa de uma lenda do norte de Espanha que já cá contámos antes). Ficou maravilhado com o prodígio, claro está, convertendo-se posteriormente ao Cristianismo, mas ainda nessa altura - presume-se que quando estava a voltar do local de barca... - caiu às águas e saiu delas "matizado" de vieiras (ou seja, coberto delas!), levando não só ao (então futuro) nome da cidade de Matosinhos, mas também à suposta introdução da religião cristã em Portugal, e ainda à subsequente associação dos famosos moluscos com as terras de Compostela!

 

 

Claro que também tudo isto é pura lenda, da qual não existem quaisquer provas reais, mas falar-se do Bom Jesus de Matosinhos é, talvez mais que tudo, falar-se de uma constelação de lendas que foram sendo contadas, recontadas e adaptadas ao longo dos séculos, quase sempre sem provas reais. Por exemplo, os mais atentos poderão ter notado que se passaram cerca de 50 anos entre o momento em que foi encontrada a imagem de Cristo e a recuperação do seu braço; como se soube disto, tantos séculos mais tarde? Um autor da primeira metade do século XVIII, António Cerqueira Pinto, explicou-o dizendo que foram encontradas nas antigas ruínas de São Salvador de Bouças um monumento com dois números inscritos, um 124 bem visível e um 50 quase apagado... e que apesar da ausência de qualquer contexto para a numeração, se tomou então estes números como os do ano descoberta da representação cristã e do respectivo braço, o que soa quase a uma absurda brincadeira!

 

Hoje, fruto de estudos como os de Alexandre Manuel Viegas Maniés, sabe-se que esta representação de Jesus Cristo é medieval, precedendo em alguns séculos a cruz que ainda a acompanha. Como tal, não pode ser do primeiro século da nossa era, não pode ter sido feita por Nicodemos, ou pelo menos não sem que se tentem inventar todo um conjunto de absurdos para, na senda do tal António Cerqueira Pinto, se tentar descartar - ou evitar miraculosamente - as provas que agora temos. Em pior caso, pode sempre recorrer-se à infame ideia de "o Diabo falsificou todos os testes e provas para iludir os crentes", o que é sempre muito triste...

Mas, mesmo que as histórias de hoje se tratem de meras lendas, continuam a ser importantes na cultura portuguesa, sendo celebradas (quase) todos os anos nos locais em que se crê que aconteceram. E isso não é mau, desde que se saiba reconhecer onde termina a pura lenda e começa o culto religioso propriamente dito. Talvez seja a essa reflexão, mais que tudo o resto, que nos dias de hoje nos convida este Bom Jesus de Matosinhos, aquele antigo São Salvador de Bouças que já era bem conhecido nos longínquos tempos do nosso primeiro rei...

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