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Mitologia em Português

29 de Setembro, 2022

"Historia Animalium", de Conrad Gessner

A Historia Animalium de Conrad Gessner* é essencialmente uma enciclopédia dos animais que eram conhecidos em meados do século XVI. A uma primeira vista, o tema até poderia ter pouco interesse mitológico, mas quando se explora a obra encontram-se, aqui e ali e acolá, alguns pormenores e entradas muito interessantes, que são o que motivaram as linhas de hoje.

Um crocodilo e um elefante em Historia Animalium

Um dos elementos mais significativos de toda esta Historia Animalium é o facto do autor adornar (quase) cada entrada com gravuras que já existiam antes e que ilustram cada animal. Por exemplo, a imagem acima, provavelmente uma das mais estranhas dos cinco volumes da obra, mostra um "cavalo do rio" - ou, como lhe chamamos hoje, um hipopótamo - a combater contra o seu grande inimigo, o crocodilo, provavelmente algures nas águas do Nilo. O primeiro animal pega no segundo pela cauda, atira-o ao ar e provavelmente vai bater com ele numas rochas, ou algo do género.

 

Esta gravura aparece no primeiro dos cinco volumes da obra, dedicado aos quadrúpedes vivíparos, mas depois a obra continua com os quadrúpedes ovíparos (volume II), pássaros (volume III), peixes e animais marinhos (volume IV) e cobras e escorpiões (um incompleto volume V). Cada um dos volumes tem informação sobre os animais dessas categorias, com referências bibliográficas da Antiguidade e mais recentes... o que é interessante, para quem quiser investigar como as informações relativas a dados animais foram evoluindo ao longo dos tempos, mas em determinados momentos da Historia Animalium começam então a encontrar-se coisas muito menos vulgares, como estas:

Quatro animais lendários em Historia Animalium

Do centro do topo e no sentido dos ponteiros do relógio, pode ser visto aqui uma Hidra (a de Lerna, famosa de um dos trabalhos de Hércules), uma Mantícora, um Unicórnio e um Sátiro. Conrad Gessner encara a primeira de estas quatro criaturas com enorme cepticismo, mas ainda assim a sua obra inclui-as - entre muitas outras figuras lendárias e mitológicas - e fala delas como se se tratassem de animais verdadeiros, que existem algures no nosso mundo. E é a partir desse ponto que também se pode perceber uma característica verdadeiramente impressionante de toda a obra...

 

Conforme já referido acima, as gravuras presentes na Historia Animalium não foram criadas para esta obra. Muitas delas já existiam antes, e.g. o nosso rinoceronte de Lisboa, e em muitos casos foram desenhadas por pessoas que nunca viram os animais que pretendiam desenhar na primeira pessoa. Mas, mesmo assim, para as espécies que ainda nos são conhecidas nos nossos dias, é possível constatar que os autores das gravuras foram capazes de desenhar relativamente bem cada criatura - até aquelas que não poderiam ter visto, por não existirem verdadeiramente, como as já mostradas acima!

 

Enfim, esta Historia Animalium, que é como quem diz "História dos Animais", de Conrad Gessner, é uma obra que parece valer a pena, quanto mais não seja pela beleza das gravuras. Lê-la nem sempre é simples - existe apenas em Latim, mas uma espécie de adaptação inglesa pode ser encontrada na History of the Four-footed Beasts and Serpents de Edward Topsell - mas é uma obra deliciosa para quem tiver algum interesse em temas como estes.

 

 

*- O título desta obra é partilhado por um texto de Aristóteles, mas convém deixar claro que, com excepção de partilharem uma ligação comum aos animais, são obras completamente distintas.

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26 de Setembro, 2022

Segredos do brasão do Porto - a cidade e o clube de futebol

Falar sobre a origem do brasão do Porto implica, talvez mais que tudo, descortinar duas espécies de mistérios que se esconderam e continuam a esconder na sua representação, o da Nossa Senhora e o do Dragão. Como em vários exemplos que já cá abordámos antes - e.g. os casos do brasão de Coimbra ou da Sertã - em Portugal parece existir frequentemente, mas nem sempre (!), uma ligação entre o próprio símbolo da cidade e algumas lendas locais. E, assim o sendo, que potenciais lendas da cidade da Francesinha se escondem nestas representações associadas ao Porto? É esse o tema de hoje, que por motivos de simplificação iremos separar em dois momentos, nascidos de estas duas imagens:

Os brasões do Porto - o clube de futebol e a cidade - em duas lendas

A origem do brasão do Futebol Clube do Porto

Muito aqui poderia ser escrito sobre o brasão do Futebol Clube do Porto, mas ele pode ser dividido em três elementos essenciais. O mais óbvio é a bola de futebol azul, que dispensa explicações de maior, mas sobreposta a esta pode ser visto um emblema e um dragão, sendo esses dois os elementos mais notáveis de toda esta representação.

Primeiro, porquê esse emblema? Ele não é senão um antigo emblema da cidade do Porto, que foi sofrendo diversas alterações ao longo dos séculos, mas que é fácil de identificar pela presença de duas torres (que não são a Torre dos Clérigos...), e de uma imagem de Nossa Senhora. Já voltaremos a esses elementos, para a secção abaixo, pelo que por agora bastará deixar claro que o que está lá representado é um antigo emblema da cidade.

 

Mas... e o dragão? De onde vem ele? Será que existe uma lenda portuense que une esta criatura lendária à cidade, como naquelas muitas lendas de São Jorge? O mais curioso face a esse elemento é que ele não aparecia nas versões mais antigas do símbolo da cidade, e depois tornou a desaparecer por volta de 1940. Parece aí ter sido colocado no tempo da Rainha Dona Maria II, aparentemente em homenagem à força das gentes do tempo em guerras de que já cá falámos antes. Não parece, por isso, ter uma lenda associada, mas sim tratar-se de uma espécie de metáfora da força local que o próprio Futebol Clube do Porto depois tomou para si mesmo.

 

A origem do brasão da Cidade do Porto

Se, conforme já referido acima, o brasão associado à cidade do Porto foi variando ligeiramente ao longo do tempo, um elemento sempre muito presente no mesmo foi uma Nossa Senhora com o seu Menino ao colo. O que a acompanha até foi variando, mas na versão mais recente, aquela que reproduzimos do lado direito ali em cima, é possível verificar que a santa é representada apoiada num pequeno nicho acima do que parece ser a porta de um castelo. Isto deverá, imperativamente, conduzir-nos a um espaço da cidade que, muito infelizmente, foi demolido em meados do século XIX, mas que em data desconhecida já se apresentou assim:

O Arco da Vandoma

Para quem não for Portuense, esta semelhança torna óbvio que a figura representada no brasão do Porto não é uma Nossa Senhora qualquer, mas sim a própria padroeira da cidade, a chamada "Senhora da Vandoma", que segundo a tradição ou lenda  local foi para aqui trazida em finais do século X por cavaleiros vindos da localidade francesa de Vendôme. E, como tal, depressa se compreende que a figura nesta iconografia local não representa directamente uma qualquer lenda da aparição da Virgem Maria no local, como seria de supor, mas sim a famosa padroeira da cidade!

 

O que mais podemos aqui dizer sobre a origem do brasão do Porto, i.e. a cidade, e do seu semelhante, o brasão do Futebol Clube do Porto? Talvez sejam aquela excepção que confirma a regra de que nem todos os brasões nacionais escondem lendas locais, podendo, em alguns casos, ser lidos e interpretados de uma forma muito mais simples...

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23 de Setembro, 2022

O mito chinês de Jingwei

Não fosse o nome desta sua protagonista e o mito de Jingwei facilmente se poderia confundir com uma das muitas metamorfoses de Ovídio. Porém, visto ser quase desconhecido na sociedade ocidental - na China, esta figura até emprestou o seu nome a uma expressão idiomática - devemos contá-lo por aqui.

O mito de Jingwei

Há muito, muito tempo atrás, viveu nas terras da China uma menina chamada Nuwa (o seu nome é partilhado com uma deusa primordial da mesma cultura, mas as duas figuras não devem ser confundidas). Ela gostava muito do mar, das ondas do oceano, e então passava horas e horas na praia, a contemplar a beleza que a circundava. Um dia, decidiu então meter-se nas águas e acabou por morrer afogada. Mas este não foi o fim da sua história - após a morte, ela foi transformada num pássaro que ficou conhecido com o nome de Jingwei, e que para impedir que outros viessem a sofrer o seu destino começou a transportar pedras e pequenos ramos para o mar local, tentando assim enchê-lo de tal forma que mais ninguém alguma vez viesse a falecer nessas águas.

 

Este pode até parecer um mito simples, mas encontrámos duas versões relativas ao porquê de esta Nuwa, a futura Jingwei, se ter colocado naquelas águas que a viram morrer. Na versão mais simples, ela fê-lo somente para aproveitar a frescura do oceano. No entanto, em outra versão a menina foi movida por uma enorme curiosidade relativa ao que existia além do oceano chinês; assim, montou-se num barco e tentou cruzá-lo, mas acabou por encontrar uma enorme tempestade que levou à sua morte. Em qualquer dos casos, esta razão parece ser completamente secundária para toda a história.

 

Para terminar as linhas de hoje, aponte-se que os Chineses têm um provérbio, ou expressão idiomática, que diz algo como "Jingwei tenta encher o mar". Na nossa cultura ocidental poderia parecer-nos uma espécie de tarefa de Sísifo, interminável e impossível, mas segundo nos foi dito ela é usada com um significado muito distinto do nosso - mais do que se referir à dificuldade da tarefa, tem em conta a enorme paixão deste novo pássaro para tentar cumprir a tarefa a que se dispôs, por muito difícil que ela possa parecer. Não pode deixar de nos relembrar da história, também ela chinesa, do "Idoso Louco que Removeu as Montanhas", em que com a ajuda dos céus até o maior impossível se pode acabar por realizar. O que importa é não desistir...

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21 de Setembro, 2022

O rinoceronte mais famoso do mundo

A ter de se eleger um rinoceronte mais famoso do mundo, essa poderá parecer-nos uma tarefa extremamente fácil. Os brasileiros até têm o seu Cacareco na competição, mas o animal de que falamos hoje é certamente capaz de colocar todos os possíveis outros na sua sombra. É até provável que já o tenham visto antes, num de incontáveis locais que insistem - justamente - em reproduzir a sua figura:

O rinoceronte mais famoso do mundo

Esta gravura de aquele que se tornaria depois o rinoceronte mais famoso do mundo foi desenhada por Albrecht Dürer em 1515, mas depois foi sendo reaproveitada em diversas obras - encontrámo-lo, para a reprodução acima, na Historia Animalium de Conrad Gessner. E quem é ele? Contamos hoje aqui a sua surpreendente história!

 

Se os Romanos da Antiguidade até conheciam animais como o rinoceronte e o elefante, após a queda do Império Romano eles foram sendo esquecidos e tornaram-se bastante incomuns na Europa. Depois, em 1515, Afonso de Albuquerque recebeu um destes animais em terras da Índia e enviou-o para Lisboa. É provável que o caminho marítimo tenha sido infernal tanto para o animal como para os navegadores que o acompanhavam, mas ele lá chegou à capital de Portugal - de onde veio a informação que levou à gravura de Albrecht Dürer e foi recebido pelo rei Dom Manuel I, que até tentou encenar uma batalha deste animal com o elefante que já possuía - segundo Plínio o Velho, os dois animais eram inimigos figadais, esperando-se uma gigantesca batalha entre eles - mas sem qualquer sucesso. Talvez pela desilusão, talvez por mera coincidência, o nosso monarca decidiu então oferecer este seu rinoceronte ao Papa Leão X, mas o barco que o transportava para Roma foi apanhado numa tempestade e o pobre animal veio a afogar-se...

Este rinoceronte na Torre de Belém

Mas a história do que foi este rinoceronte mais famoso do mundo ainda não fica por aqui, restando algo que pode ser resumido como mais dois capítulos. O primeiro deles é uma espécie de lenda, que nos diz que o corpo do animal foi recuperado das águas, empalhado e levado para outro local. Não sabemos se voltou para Lisboa, se foi para Roma, se foi guardado num qualquer terceiro lugar, ou se toda essa história não passou de um mero rumor, mas desconhece-se o seu paradeiro nos dias de hoje, se ainda existir.

O que sabemos, isso sim, é que o célebre animal não foi esquecido na sua época. Por exemplo, a Torre de Belém estava então a ser construída (a sua construção só terminou em 1520), e então optou-se por representar este rinoceronte abaixo de uma das guaritas. Ele pode ser visto ali na imagem, onde também é fácil reconhecer o resultado de séculos de influência marítima, cujas ondas maceraram o animal até ao corno quase já não o ser. Mas ele também foi repetido em algumas outras construções da época, e.g. o chamado "Rinoceronte de Alcobaça", fazendo deste o rinoceronte mais famoso do mundo, também conhecido por "Rinoceronte de Lisboa", por ter sido essa cidade a sua porta de entrada na Europa.

 

Será que já o conheciam? Será que, na vossa opinião, existe um que até possa ser considerado mais famoso do que este? Fica a pergunta no ar...

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19 de Setembro, 2022

A Verdadeira Origem do Multiverso

Hoje em dia parece falar-se muito sobre o conceito de multiverso, mas igualmente pouco sobre a sua origem real. Isso dá, falsamente, a ideia de que todo este conceito é uma invenção moderna, completamente nascida já nos nossos dias. Assim, ele aparece na série animada Family Guy, em filmes como Spider-Man: No Way Home, Doctor Strange in the Multiverse of Madness, em repetidas fanfics, e em muitos locais como uma ideia já bem assente na nossa cultura popular, mas sem que alguma vez pareça ser explicado de onde nasceu. E, assim sendo, decidimos hoje tentar explicar de onde vem toda esta ideia, que parece ser cada vez mais popular nos nossos dias.

A Origem do Multiverso (e o Family Guy)

Na imagem acima pode ser vista uma cena do primeiro episódio da oitava temporada do Family Guy, em que duas das personagens principais viajam através de diversos universos, cada qual com as suas características particulares. Um dos mais intrigantes (e que optámos por mostrar aqui), é um em que todas as personagens são representadas como se vivessem num filme da Disney, em que até cantam músicas e outras coisas que tais. O episódio em questão é de Setembro de 2009, ainda uns anos afastado dos filmes de agora, mas acaba por levantar uma questão - se pudessemos seguir essa corrente de possíveis multiversos até à sua origem, onde iríamos dar? Qual é, pergunte-se, a primeira de todas as fontes para esta ideia que tanto reutilizamos hoje em dia?

 

Hanuman e a Origem dos Multiversos

Essa busca por respostas levou-nos, eventualmente, ao Ramayana. Por toda a Índia, e até por alguns dos países vizinhos, existem diversas versões do épico que divergem das versões, que até são as mais famosas, de Valmiki e de Tulsidas. Seria aqui difícil explicar quais são os elementos comuns e os divergentes em cada uma delas, mas o traço que as une é bem captado numa lenda indiana que é acessória à trama do épico. Relate-se aqui essa lenda, que encontrámos por mero acaso, para que se consiga, depois, compreender melhor todo o conceito de multiverso, bem como da sua respectiva origem.

 

Conta-se que nos últimos dias da sua vida Rama deixou cair um anel ao chão. Foi incapaz de o encontrar, e então pediu ao seu fiel companheiro Hanuman, o deus-macaco, que o fosse procurar. Nessa busca, esta figura, ainda hoje muito popular nas terras da Índia, desceu ao submundo e encontrou um dos seus monarcas. Quando lhe explicou o que andava a fazer por esses estranhos locais, Yama mostrou-se estupefacto, mas decidiu ajudar nessa procura pelo anel. Então, pediu a um dos seus servos que trouxesse um enorme prato onde estavam infindáveis anéis que tinham caído para o submundo. Todos eles eram muito parecidos, quase iguais. Hanuman não sabia o que fazer, não sabia qual deles era o do seu amado Rama, e então perguntou ao rei dos mortos qual era o correcto, aquele que procuravam. Este monarca, igualmente desesperado, disse-lhe: "Rama veio muitas vezes a este mundo. Em cada uma das suas vidas, pouco antes de morrer deixou cair um anel. Todos eles lhe pertencem."

 

O que esta lenda tem de muito especial é o facto de possibilitar a existência de um mundo em que não existe apenas um Ramayama, uma versão oficial de toda a história do épico, mas em que muitas versões tiveram lugar e em que todas elas podem ser apresentadas como igualmente válidas, por muito estranhas que até nos possam parecer - existem, por exemplo, algumas em que Ravana até é o herói da história, outras em que Sita não é rejeitada por Rama no final, e assim por diante, numa infinidade de possíveis narrativas em que as semelhanças e as divergências são sempre mais que muitas e bastante difíceis de traçar... e não é caso único - numa outra versão do poema épico, quando Sita deseja seguir Rama para a floresta, uma das razões que ela dá em favor da sua decisão é "já foram escritos tantos outros Ramayanas, conheces algum em que Sita não acompanhe Rama?!", e o herói acaba por dar-se por convencido face a esse invulgar argumento.

 

Mas, deixando de lado essas antigas lendas, podemos agora voltar ao tema da origem do multiverso. Parece ter sido, originalmente, um conceito asiático, derivado do Budismo e do Hinduísmo, em que se acredita numa infinidade de existências que nos precederam e incontáveis outras que se nos seguirão. Por essa perspectiva, cada um de nós viveu 300000 vezes e viverá 300000 mais, numa espécie de bailado eterno em que tudo aquilo que existe passa de existência em existência sem cessar. Poderá, nesse seguimento, existir um universo com um Porco Aranha, outro com uma Mulher Aranha, um terceiro em que Peter Parker é órfão, um quarto em que ele vive com o Batman, e assim por diante...

 

Em suma, qual é mesmo a origem do conceito de multiverso? Seguindo os fundamentos de todo o conceito até ao nosso passado cultural mundial, é bastante provável que toda esta ideia tenha originado no Budismo ou no Hinduísmo, religiões em que ainda hoje se acredita numa infinidade de existências, que começaram com um de muitos inícios do universo e terminarão, um dia mais tarde, com uma das suas quase-infinitas extinções. De todo esse conceito é um excelente exemplo a lenda indiana que reproduzimos acima, em que o deus Hanuman é confrontado com o mistério das repetidas existências humanas e se mostra tão estupefacto como nós em virtude da existência, passada e futura, de tantos homens a que ele também poderia chamar Rama.

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16 de Setembro, 2022

"A Montanha Pariu um Rato", origem e significado

A expressão de que aqui falamos hoje, A Montanha Pariu um Rato, é uma de aquelas que se mantém muito utilizada nos nossos dias de hoje, mas que parece ter tomado um significado muito críptico. Sim, as pessoas vão-na usando, aqui e ali, e ela até surge com alguma relativa frequência no discurso político, mas já muito pouco se parece pensar na origem e no verdadeiro significado de toda a expressão. Como tal, e quase por mera coincidência - já lá iremos - decidimos investigar de onde vinha a expressão.

A Montanha Pariu um Rato... e o Rato Mickey?!

Há alguns dias tivemos uma espécie de debate interno sobre um poema medieval espanhol, o Libro de Buen Amor. Em si mesma, essa obra terá de ficar para outro dia, mas entre as histórias alegóricas que contém conta-se, de uma forma muito breve, a de uma montanha que pariu um rato. Aí, é uma história atribuída a Ysopet, ou seja, ao nosso Esopo, mas é curioso constatar que não aparece em nenhuma compilação de fábulas esópicas da Antiguidade. Estaria por isso Juan Ruiz, o autor do tal livro espanhol, enganado? Na dúvida, partimos então em busca da origem de toda expressão.

 

Ela não aparece nas fábulas de Esopo, ou pelo menos não naquelas que chegaram aos nossos dias, mas a expressão já era usada na Arte Poética de Horácio e surge - aí já como uma pequena história - entre as fábulas de Fedro, no primeiro século da nossa era. Podemos até relembrar o que diz o autor, dado se tratar de uma história muito curta:

Uma montanha estava prestes a dar à luz e gemia de uma forma horrível. Esses barulhos geraram grande expectativa nas áreas em redor, mas no final ela acabou por dar apenas à luz um rato. [Moral:] Esta fábula foi escrita para todos aqueles que após proferirem muitas ameças, não fazem nada de especial.

 

É uma história muitíssimo simples, talvez até gerada por um qualquer antigo mito da deusa Gaia, a proverbial Terra, mas é particularmente importante notar que esta história que ainda hoje nos faz dizer que a montanha pariu um rato já vinha com uma moral associada, o que não acontecia nas fábulas originalmente atribuídas a Esopo. Era de outro autor, mas pela sua forma foi ficando, ao longo dos séculos, atribuída a quem mais popularizou esse mesmo género literário.

 

E então, para terminar, se já falámos da origem da expressão, qual é o verdadeiro significado por detrás de se dizer que a montanha pariu um rato? A resposta é muito simples, como até já pôde ser visto na moral acima - significa que muitas vezes as pessoas dão a entender que irão fazer algo de muito impressionante, prometem demasiado, mas depois os seus actos não são nada de especial!

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15 de Setembro, 2022

Já alguma vez viram uma Truta com Pêlo?

A Truta com Pêlo é um daqueles peixes que muito raramente se consegue encontrar nas peixarias do nosso país. De facto, nem alguma vez conseguimos encontrar um exemplar desta raríssima espécie em nenhuma peixaria pelo mundo fora, mas em alternativa encontrámos algo de muito interessante num museu, que até aqui merece ser reproduzido com uma fotografia que foi tirada nessa altura:

Quem já viu uma Truta com Pêlo?!

Supostamente, esta truta com pêlo foi capturada em Lake Superior, numa fronteira entre os Estados Unidos e o Canadá, e ao longo do tempo foi-se tornando tão famosa que diversas reproduções foram feitas e podem ser encontradas um pouco por todo o mundo. A forma mais famosa da sua lenda revela que este raríssimo peixe apenas pode ser encontrado nas águas mais frígidas, onde ele desenvolveu esta sua curiosa característica para protecção contra o frio, mas uma versão alternativa diz que toda a espécie foi criada quando bastantes garrafas de um qualquer tónico capilar caíram num rio próximo.

Até existem versões de toda esta história da Truta com Pêlo, como a da Lodsilungur da Islândia, que atribuiu a sua criação aos pecados dos homens... e, em comum, essas diversas lendas parecem ter o facto de, em muitos casos, até explicarem o porquê de ela ser tão rara - por exemplo, na versão mais curiosa que encontrámos, diz-se que muitas outras trutas até têm pêlo, mas quando são retiradas das frígidas águas de onde são originárias, perdem-no quase completamente.

 

Mas será isto verdade? Será que a Truta com Pêlo é mesmo um animal real, que com muita dificuldade poderá voltar a ser capturado num qualquer curso de água deste nosso mundo, e talvez até vendido numa qualquer peixaria do nosso bairro?

Bem, em toda a verdade merece ser admitido que não conseguimos encontrar nenhuma prova indisputável da sua existência real. Encontrámos, isso sim, foi todo um conjunto de puras lendas e relatos locais, em alguns casos com já cerca de 300 anos, que já no século XX parecem ter levado à criação de uma primeira espécie como a mostrada acima, em que o pêlo de um coelho foi colocado numa truta "normal", gerando aquela estranha representação que depois contribuiu ainda mais para a popularização de toda uma antiga história pelo mundo fora. E é apenas isso que podem ver ali em cima, na imagem - uma pura fantasia trazida ao mundo como que para legitimizar o que até então se pensava ser nada mais que uma pura lenda.

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12 de Setembro, 2022

O mito grego de Órion

Falar do mito grego de Órion é quase imperativamente falar das constelações que podemos ver nos céus nocturnos, e que até fazem um pouco parte do final da história do mesmo herói. Mas, infelizmente, é hoje também difícil recordar a totalidade das suas aventuras. Isto porque, se muitos dos mais famosos mitos da Grécia Antiga nos chegaram por intermédio dos Romanos, e mais precisamente através das composições de poetas eminentes como Ovídio, já esta é uma história que ninguém parece ter desejado contar-nos de uma forma completa, ou numa versão que até possamos considerar como especialmente fidedigna e digna do maior crédito... mas porquê?

 

Curiosamente, até temos uma resposta para dar a essa questão, porque Ovídio, num dos seus trabalhos menos lidos, nos confessa ter vergonha de alguns dos episódios que aparecem nesta história. Em pelo menos um caso específico nem o conta, deixando apenas muito subentendido o que poderá ter acontecido, talvez com alguma esperança de que quem lhe lia as linhas já soubesse o resto. É, portanto, evidente que alguns elementos de todo este mito eram vistos, séculos após a sua composição, como muito inapropriados - recorde-se, por exemplo, o mito de Licáon, em que existe a possibilidade de que, na versão original, fossem sacrificadas crianças a esse rei (ou a Zeus), algo que causou desagrado em tempos mais tardios. E, nesse seguimento, é aqui quase possível distinguir duas tramas, que divergem em alguns dos pontos que podemos considerar mais problemáticos.

O mito grego de Oríon

Uma versão conta-nos como foi o nascimento de Órion e de onde veio o seu nome. Segundo ela, quando alguns deuses andavam a passear pela terra (talvez naquele mesmo tempo em que também visitaram Baucis e Filémon?), foram à corte de um tal Hirieu. Por lá, foram servidos um bom banquete, comeram um enorme touro, e até ficaram tão satisfeitos com esse petisco que decidiram conceder um desejo ao monarca. Este tinha apenas um pequeno pedido, face ao falecimento da esposa que muito tinha amado. Pediu-lhes apenas um filho. Então - e é aqui que as coisas se tornam estranhas... - eles arrancaram a pele do touro, mijaram-lhe em cima, enterraram-na durante alguns meses, e de toda essa estranha sequência veio a nascer o herói, sem qualquer intervenção feminina, recebendo até o seu nome da urina divina que o gerou. Mas outra versão, talvez para evitar toda esta estranha trama, faz dele apenas filho de uma mortal e de Poseidon, deus dos mares, dizendo que em virtude dessa partenidade o herói conseguia caminhar sobre as águas!

 

O tempo foi passando e o herói foi crescendo, até que um dia foi à ilha de Quios. Por lá apaixonou-se por Merope, filha do monarca local, podendo tê-la violado (nas versões mais recentes apenas tenta fazê-lo, mas nas mais antigas parece tê-lo concretizado!), o que fez com que o pai desta o cegasse, possivelmente com a ajuda divina do avô da jovem, o deus Dioniso. Depois, em busca de redenção, Órion fez muitas viagens, conheceu Hefesto (deus que lhe deu auxílio através de um companheiro Cedálion), até que chegou à mítica terra em que o sol nasce, aí recuperando miraculosamente a sua vista. Ainda quis voltar a Quios, para vingar o que lhe tinha sido feito antes, mas já não conseguiu encontrar aquele homem que um dia o cegou.

 

Talvez por irritação, talvez por cansaço, talvez por ter decidido fazer outra coisa da sua vida, Órion decidiu então ir para Creta, onde se começou a dedicar à caça e passou a viver entre o séquito da deusa Ártemis. Pode ter tido 50 filhos com as ninfas de um rio, todos eles grandes caçadores, mas foi durante a sua permanência nessas florestas que surgiu a sua morte. Como foi ela? Existem pelo menos quatro versões:

  • A deusa Aurora apaixonou-se por ele e quis levá-lo para o Olimpo. Isso enfureceu os restantes deuses, levando a que Ártemis o matasse com uma das suas flechas.
  • Ele era especialmente amado por Ártemis, o que ofendeu o deus Apolo, irmão dela. Enganando-a, o deus de Delfos fez com que essa sua própria irmã matasse este homem, desafiando-a a atingir um ponto negro no oceano, que era, na verdade, a cabeça deste herói. Ela conseguiu fazê-lo, como é óbvio.
  • Ele poderá ter tentando violar essa mesma deusa da caça, ou uma das suas companheiras, ofendendo a primeira de tal forma que ela teve de o matar, por muito que gostasse dele.
  • Um dia, vangloriou-se que era capaz de caçar qualquer tipo de animal que a terra produzisse. Então, a deusa Gaia, personificação desse elemento, enviou o maior de todos os escorpiões que o mundo já viu, e este acabour por matar o herói.

O mito grego de Oríon

Qualquer que tenha sido esse desfecho na versão mais antiga do mito, há ainda três elementos curiosos em toda esta trama. Um diz-nos que Esculápio ainda quis trazer de volta ao mundo dos vivos este herói, mas Zeus puniu-o, matando-o por sequer considerar essa ousadia. Outro ensina-nos que, posteriormente, Órion foi perdoado pelos deuses e colocado entre as estrelas do céu, juntamente com o cão que em tantas caçadas o tinha acompamhado e com o escorpião que o matou. E, finalmente, segundo os Poemas Homéricos, este homem foi um dos maiores que já existiu, em termos de estatura física, juntamente com os Aloidas.

 

Enfim, este é um mito que dificilmente conseguimos saber como era nos períodos mais antigos da Grécia Antiga. Talvez pela necessidade de excisar alguns dos seus elementos que foram sendo considerados mais ofensivos, toda a história foi sofrendo diversas alterações ao longo do tempo, não sendo sequer possível apurar até que ponto alguns dos seus elementos já faziam parte da história original. Se, por exemplo, o herói nunca se vingou da cegueira causada pelo pai de Merope, terá existido uma versão antiga em que o fez (nas actuais, o idoso esconde-se num palácio no interior da terra), ou será que, face ao crime do "herói", os deuses decidiram proteger um pai cujo único "crime" foi o de proteger uma amada filha? Não sabemos, o que bem serve para atestar o quanto já ninguém sabe sobre o mito que aqui tentámos recontar hoje...

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08 de Setembro, 2022

A lenda de Nossa Senhora dos Covões

Nossa Senhora dos Covões é (hoje) a designação dada a uma capela na zona de Alvaiázere, no distrito de Leiria, em Portugal. Iremos então contar a lenda que lhe costuma estar associada, antes de avançarmos para um pequeno segredo que alguns locais parecem desconhecer.

A Nossa Senhora dos Covões

Sobre a lenda que veio a originar esta capela, diz-se então que numa data desconhecida andava por estes montes e vales uma pastora com o seu rebanho. Já aí tinha passado muitas vezes antes, voltaria a fazê-lo tantas outras no futuro, mas nesse dia apercebeu-se da existência de um covão, i.e. uma espécie de gruta pequena, no local. Quando espreitou para o interior, encontrou aí uma imagem de Nossa Senhora, que tentou levar para sua casa. Porém, por muitas vezes que o tentasse, a imagem regressava sempre a este seu nicho natural. Ás tantas a pastora lá desistiu e falou com um padre local, que levou a que fosse erigida uma pequena capela no local.

 

Não sabemos até que ponto toda esta história será verdade - a capela parece datar-se do século XVIII - mas podemos apontar que ela já teve outro nome, o de Nossa Senhora da Apresentação dos Covões, talvez por ter sido pela sua influência que foi possível encontrar todo o local. Depois, ao longo do tempo, por simplificação, é que o seu nome se tornou somente o de Nossa Senhora dos Covões, em virtude do local em que a sua padroeira foi encontrada.

 

Até aqui tudo bem, este tipo de lenda é extremamente frequente em Portugal - relembrem-se, por exemplo, os casos da Peninha, de Matacães ou de Nossa Senhora da Piedade da Merceana, entre infindáveis outros que existem até pelo mundo fora - mas parecem ser relativamente poucos os casos em que o próprio local onde se diz que a imagem foi encontrada continua a ser motivo de culto. Agora, se os habitantes locais dizem que tendem a encontrar sempre esta capela encerrada - e, infelizmente, também nós não conseguimos visitar o seu interior em tempo útil - pelo menos existe uma fotografia que mostra uma imagem da santa no seu contexto, e que foi tirada por Dias dos Reis no ano de 2008:

Imagem da Nossa Senhora dos Covões

Desconhecemos se esta será a imagem original, aquela que se diz que a pastora encontrou nos agora famosos covões, até porque tem aqui o nome de "Nossa Senhora da Memória", possivelmente - e passamos a expressão - em memória dos eventos que a lenda diz que tomaram lugar no local. A fotografia permite-nos ver como é que o espaço original, que ainda existe, foi readaptado para conciliar uma espécie de caverna com um recanto religioso, permitindo-nos pelo menos imaginar como poderia ter sido antes, nos tempos da suposta descoberta desta imagem da mãe de Cristo. Por isso, se neste caso a lenda nem tem muito de único, o facto de este pequeno recanto continuar a existir é certamente digno de nota.

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05 de Setembro, 2022

Vespúcio e a origem do nome da América

Se se costuma dizer, de uma forma um tanto ou quanto incorrecta, que o descobridor da América foi Cristóvão Colombo, qual é a origem do nome desse continente? Europa, Ásia e África já apareciam como personificações femininas nos mitos gregos da Antiguidade Clássica, estando os seus nomes bem estabelecidos na cultura ocidental, mas a que se deve este nome para todo um continente que se crê que só foi descoberto pelos europeus em finais do século XV? É isso que iremos explicar hoje.

Vespúcio e origem do nome da América

Em meados do século XV nasceu em Florença um homem que ficou conhecido na nossa língua portuguesa como Américo Vespúcio. Foram muitas as peripécias da sua vida, mas para o tema de hoje bastará contar que em dado momento ele empreendeu pelo menos três viagens de exploração a pedido de monarcas da Península Ibérica. Não é muito claro que percurso seguiu em cada uma delas (e já lá iremos...), mas uma espécie de tradição diz que, seguindo esse seu objectivo de puramente encontrar nossas terras, ele terá chegado a umas mais a oeste que as descobertas por Colombo, onde viviam homens que pareciam ter pele vermelha e que se pintavam de diversas cores.

 

Como sabemos disto? Porque este Américo Vespúcio escreveu algumas cartas (privadas?) sobre as suas viagens, que posteriormente se tornaram famosas, e nas quais descreve, de forma muito sucinta e como a um amigo, os locais por que passou e o que viu por lá. Alguns desses locais são relativamente fáceis de identificar, até dado o percurso que vai mencionando, mas outros nem tanto, o que terá contribuído para a atribuição dessas descobertas a este Vespúcio, aparentemente o primeiro a se aperceber que os locais próximos dos descobertos por Colombo eram, na verdade, todo um novo continente, e não parte da Ásia (como esse seu antecessor tinha pensado). Depois, com a passagem do tempo, a designação geral de "terras descobertas por Américo ...", então ainda sem um nome mais real, foi sendo alterada nos mapas para algo bastante mais simples, "América", originando o nome que o continente ainda tem nos nossos dias.

 

É essa a verdadeira origem do nome da América - o continente americano tomou esse nome em homenagem a este Américo Vespúcio, que parece ter sido o primeiro de todos os navegadores europeus a aperceber-se que as grandes terras encontradas a oeste e a sudoeste da Europa eram todo um novo continente. Se Colombo até encontrou algumas ilhas nessa área, como referimos anteriormente, nunca parece ter imaginado - pelo menos com base nas provas que recolhemos até agora - que tinha chegado a um local muito próximo de terras que não eram, de todo, a Ásia a que um dia esperava chegar...

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