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Mitologia em Português

30 de Outubro, 2022

Os Fenómenos do Entroncamento e a sua história

Se ainda hoje se fala ocasionalmente de Fenómenos do Entroncamento, já poucos se parecem interrogar sobre a sua origem, aquilo em que consistiam, e o porquê de (quase) terem deixado de fazer parte da nossa cultura portuguesa. Hoje, a expressão é usada quase somente como um sinónimo para "coisas estranhas", mas com a clara excepção dos habitantes de aquela que também é chamada a "cidade ferroviária", já poucos parecem saber de onde vem esta expressão. A título de curiosidade, tentámos que diversas pessoas, em várias cidades portuguesas, nomeassem pelo menos um destes fenómenos e (infelizmente) já ninguém foi capaz de o fazer... e é, portanto, dessa situação que nasceu o tema que aqui decidimos apresentar hoje de uma forma alongada.

 

O Entroncamento, a cidade portuguesa dos tais fenómenos, é relativamente recente. Nasceu, cresceu e obteve o seu nome a partir da linha de comboio que por ela passa, mas na qual poucos hoje ainda páram. Tem menos de dois séculos e, por isso, em comparação com muitas outras cidades e vilas portuguesas ditas históricas, não tem muito para se ver. Talvez tenha sido por isso que em meados do século XX um tal Eduardo O. P. Brito, que vivia no local, tomou a inspiração do que se ia vendo de estranho em países como os Estados Unidos da América - recorde-se, por exemplo, o famoso caso dos gémeos siameses, entre outros freaks - e decidiu que o nosso país também podia exibir coisas como essas. Seguindo essa ordem de ideias, procurou casos semelhantes na zona onde residia e encontrou um melro branco (para os menos inclinados ornitologicamente, os melros tendem a ser pretos), descoberta que posteriormente reportou para um jornal, o Diário Popular. Seguiram-se muitas outras descobertas locais, relativas ao reino vegetal e animal, que também foram sendo reportadas em jornais, e que teríamos todo o gosto em detalhar... mas foi aqui que surgiu o grande problema na nossa pesquisa para o tema de hoje - não parece existir qualquer grande livro ou estudo sobre os Fenómenos do Entroncamento, ou mesmo alguma listagem que os apresente a todos e/ou reproduza as pequenas notícias em que se inseriam, como nos dois exemplos da imagem abaixo*:

Algumas histórias dos fenómenos do Entroncamento

Ainda assim, visto que uma paixão por temas como estes é algo que nunca nos falta, decidimos ir procurar e compilar tudo aquilo que conseguíssemos encontrar sobre eles - normalmente, e como pôde ser visto acima, esses artigos não têm autor creditado, mas tendem a caracterizar-se por uma referência à cidade, uma representação gráfica do próprio "fenómeno" e a sua breve história. Para atingirmos esse objectivo queríamos consultar todos os jornais que apresentaram esses conteúdos entre os anos de 1950 e 1960 (a idade de ouro da expressão), mas no decurso da nossa pesquisa apercebemo-nos de que muitas edições não se encontravam em arquivos. Talvez já nem existam, a não ser que os familiares de Eduardo O. P. Brito, ou algum coleccionador mais ávido, tenham sentido o ímpeto de ir guardando estas referências à cidade. Por isso, passando à única alternativa que nos era possível em tempo útil, recolhemos informação relativa a estes Fenómenos do Entroncamento maioritariamente em fontes secundárias e conseguimos encontrar breves alusões a pelo menos alguns dos temas que os compunham:

"Abóbora com 60 kg" (esteve em exposição na Tabacaria Luanda)
"Árvore que dava cinco frutos diferentes" (eram tangerinas, laranjas, limões, pêras e maçãs)
"Batatas enormes"
"Cacto gigante" (parece ter morrido recentemente)
"Canária que teve 36 filhos em três meses"
"Cão que fala" (para quem estiver com curiosidade, já voltaremos a ele...)
"Carneiro com quatro cornos" (já reproduzido acima)
"Chica, a lebre que bebia leite de um biberão"
"Chuva amarela" (potencialmente incorrecto?)
"Corvo que falava como gente"
"Couve que dá cravos"
"Cravos verdes"
"Feijão com mais de um metro" (potencialmente incorrecto?)
"Um frango que morreu de desgosto"
"Homem com três rins"
"Laranja gigante"
"Melro branco" (de que já falámos acima, e que parece ter sido o primeiro de todos os casos reportados...)
"Oliveira com azeitonas brancas"
"Ovo de galinha com 800 gramas" (também já reproduzido acima)
"Pé de milho com vinte maçarocas"
"Pescador que pescou uma perdiz"
"Pinto com três patas"
"Pomba que acorda os hóspedes de um hotel"
"Raposa que enganou um caçador"
"Toureiro que morde no touro"
...

Por esta breve compilação de alguns dos fenómenos se pode depreender que, no seu geral, eles se tratavam de algo que pode ser designado como milagres da natureza, em termos de possuírem características, ou fazerem actos, invulgares nas suas respectivas espécies. Se, por exemplo, tivesse existido na cidade uma história de um homem que mordeu um cão, isso certamente que pertencia a estas mesmas categorias. E então, visto que notícias como estas eram reportadas por Eduardo O. P. Brito, mas nada de semelhante se lia com frequência sobre outros locais, gerou-se a (falsa) ideia de que o Entroncamento as tinha de uma forma bastante mais assídua que as outras localidades portuguesas. Note-se que estes fenómenos ditos estranhos nada tinham a ver com o sobrenatural, com monstros ou extraterrestres ou locais assombrados, como a expressão nos pode sugerir nos dias de hoje - eram apenas e exclusivamente coisas menos vulgares que iam sendo encontradas nessa cidade!

O Cão que Fala, um dos fenómenos...

E pode então perguntar-se... eram eles verdade, ou um mero fruto da imaginação humana? Não conseguimos afirmá-lo com total certeza e para todos os casos apresentados acima, mas existem provas da veracidade de pelo menos algumas daquelas histórias - o cacto supostamente gigante ainda existe; a dona da Chica ainda está viva e tem uma fotografia com a lebre; os vegetais e árvores incomuns eram enxertados no quintal de um conhecido do autor; alguém tentou comprar o melro branco, etc. Outras, pela sua própria natureza efémera, são impossíveis de provar - a história do cão falante*, por exemplo, termina dizendo que ele foi à Pastelaria Ribatejo, se colocou em duas patas e pediu "bolos" aos funcionários, por ter gostado de comer um que o dono lhe deu no dia anterior...

 

Fossem verdade ou não, porque caíram então estes Fenómenos do Entroncamento no esquecimento, ao ponto de já quase ninguém se recordar do que eles foram? Poderia ser um mistério insondável, mas em 2001 Eduardo O. P. Brito revelou a razão por detrás desse desaparecimento - parece que alguns habitantes locais, descontentes com a forma como o Entroncamento andava a ser representado nos jornais, se puseram a dizer mal do escritor dessas notícias e a incomodá-lo com cartas anónimas, levando-o a deixar de reportar notícias como as que tinha por hábito escrever até então... o que é muitíssimo irónico se tivermos em conta que a cidade, mesmo após mais meio século, continua a ter como um dos seus poucos motivos para fama estes fenómenos de antigamente. Ao mesmo tempo, é uma ideia triste mas muito tipicamente portuguesa, daquele famoso "não se faz e não se deixa ninguém fazer"...

Mas, felizmente, toda esta ideia não morreu por completo. Outros autores se seguiram a Eduardo O. P. Brito nessa história dos Fenómenos do Entroncamento (que se diz que continuam a aparecer nos nossos dias...!), e na cidade em questão a sua memória colectiva ainda parece perdurar. Há muito poucos anos foi feito o videoclipe acima, que celebra todo este tema e até mostra alguns dos artigos de jornal originais, enquanto que a Casa Carloto ainda vende produtos alusivos a alguns dos "fenómenos" mais famosos, de que até mostrámos um exemplo numa das imagens acima. Tentámos apurar se a Câmara Municipal já faz ou pretende fazer alguma coisa com este seu património cultural (ao longo dos anos foram sugeridas muitas alternativas para o seu reaproveitamento, inclusive um festival e um pequeno parque temático), mas não obtivemos qualquer resposta deles ou da tal casa comercial em tempo útil...

 

 

*- Para referência futura, ou por simples motivos de curiosidade, transcrevemos aqui três dessas notícias:

  • O cão que fala - "O rafeirito acompanhava sempre o seu dono, que, diariamente, ia à Pastelaria Ribatejo, na Rua 5 de Outubro, comer um bolo. Numa dessas vezes, já habituado à rotina, mas farto de não provar a iguaria, o cão ganiu insistentemente e o dono acabou por lhe dar a doçaria. O rafeirito gostou e conta-se que no dia seguinte foi à pastelaria sozinho e, determinado, empinou-se no balcão e proferiu a palavra 'bolo'."
  • O ovo de 800 gramas - "Um ovo com oitocentas gramas? Sim, é possível. Aconteceu no Entroncamento. Uma galinha de aspecto aparentemente normal, habituada a pôr o seu ovo diário, conseguiu a façanha, para espanto de todos, de deixar no ninho um ovo com 800 gramas."
  • Um carneiro com quatro cornos - "Nasceu e cresceu numa pensão em frente à polícia, na Rua 5 de Outubro. Espantava pela postura e pelo número e dimensão das suas hastes."
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27 de Outubro, 2022

A estranha existência dos Tsukumogami

Falar de Tsukumogami não é falar de uma criatura específica, mas sim de um conjunto de seres nipónicos que em virtude da sua grande longevidade atingem este estatuto. Mas, para o explicar talvez seja melhor começar por uma ligação que estas criaturas, hoje, até têm com a nossa cultura ocidental. Se já aqui falámos sobre o uso de criaturas da Mitologia Grega na série dos Power Rangers, quem prestar mais atenção a alguns dos monstros da série poderá notar que, em muitos casos, eles são inspirados em objectos bem reais.

A lenda dos Tsukumogami

Por exemplo, nas imagens acima podem ser vistos dois monstros dessa série, um deles baseado num batom e outro cuja inspiração veio de um sinal de trânsito. Mas o caso não é único, nem essa inspiração dos Power Rangers o é - até incluímos aqui um outro exemplo, vindo do Pokémon, de uma criatura que não é senão um porta-chaves que ganhou vida. Agora, em comum todas estas criaturas têm a sua proveniência japonesa, mas de onde vem mesmo toda essa ideia? Essencialmente, ela nasceu dos Tsukumogami!

 

Quando aqui falámos sobre a Kitsune, referimos que ela se vai tornando mais poderosa com o passar dos anos. De uma forma semelhante, os Tsukumogami não são mais do que objectos caseiros que com a passagem de um século ganham vida. As fontes literárias divergem nas razões que levam a isso, mas essencialmente dizem que após 100 anos de utilização (ou de abandono), esses objectos ganham vida e começam a assombrar os seus possuidores. Não parecem ser assombrações muito assustadoras ou malévolas, mas sim pequenas chatices que vão causando, como os nossos duendes ocidentais, apesar de não existirem exemplos muito concretos das chatices causadas por objectos específicos, e.g. talvez um gira-discos comece a tocar misteriosamente durante a noite, ou uma coleira de cão mude de sítio por magia, ou uma panela queime sempre a comida? Não sabemos, cabe ao leitor imaginar o tipo de "maldades" que estas criaturas vão fazendo.

Será o Mímico uma forma de Tsukumogami?

Qualquer que seja a resposta a essa questão, os Tsukumogami são considerados yokai, criaturas tipicamente japonesas, até porque só poderiam existir numa cultura em que, tradicionalmente, os objectos vão passando de geração em geração, por vezes até de avós para pais, filhos e netos. Talvez já não seja tão comum acontecer hoje em dia, fruto da chamada "obsolescência programada", mas esta espécie de seres continua a ser conhecida nos nossos dias e, como tal, continua a inspirar figuras como as já apresentadas ali em cima, entre outras que seguem a mesma inspiração oriental. Entre nós, talvez o mais famoso exemplo seja o do Mímico - Mimic, no original anglófono - uma criatura como a mostrada na imagem acima, que surge em muitos videojogos e se assemelha a um baú de tesouro, mas tem vida e ataca os heróis do jogador quando estes procuram obter uma recompensa que se supõe existir no seu interior...

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25 de Outubro, 2022

A lenda de Marco Cúrcio e o Lago Cúrcio

Quem já tiver ido à cidade de Roma provavelmente terá visto, no famoso Fórum Romano, um pequeno local que hoje é conhecido como o Lago Cúrcio. É um local pouco digno de nota, que nada impressiona no panorama em que hoje se insere, e que pode ser definido, de forma tosca, como um buraco circular no chão. Presume-se, pelo próprio nome, que já aí tenha existido um lago, ou que o espaço original tivesse alguma ligação com a Curtia gens, a família Cúrcia, mas não há quaisquer certezas de maior sobre a origem do espaço. Existe, isso sim, é uma famosa lenda associada ao nome de um tal Marco Cúrcio e que tenta explicar as razões por detrás da fama do local. Vamos recordá-la.

Marco Cúrcio e o Lago Cúrcio

Conta-se que numa data que o tempo já há muito fez esquecer surgiu em pleno Fórum Romano um enorme buraco no chão. Os sacerdotes da época foram consultados e surgiu-lhes uma predição oracular segundo a qual esse buraco se fecharia - e o Império Romano iria durar para sempre (!) - se os cidadãos de Roma atirassem para dentro dele aquilo que consideravam mais importante. Foram várias as tentativas para resolver essa espécie de enigma, sempre sem qualquer sucesso, até que um jovem de nome Marco Cúrcio pensou ter compreendido o que se pretendia e, armando-se como que para o derradeiro combate da sua vida, pegou no seu cavalo e saltou para o interior do (outrora enorme) buraco. Isto, como que a afirmar que o mais importante para Roma era a vida dos seus cidadãos. Tão misteriosamente como se abriu, este buraco fechou-se logo em seguida e passou a ser motivo de veneração sob o nome de Lago Cúrcio.

 

E isto poderá parecer tudo muito bonito, uma lenda como tantas outras do seu tempo, mas não explica o porquê da designação de "lago". Assim, outras tentativas de explicar esse nome dizem, por exemplo, que em outros tempos existiu um pântano no local e um tal Mécio Cúrcio aí ficou preso durante uma batalha. Não sabemos se ele terá morrido no local, mas em caso negativo levanta-se um problema - se os Romanos fossem dar nomes aos seus locais por razões assim tão comuns como esta, cada um dos campos das suas muitas batalhas seria uma enorme selva de designações, o que não pode deixar de parecer absurdo, não é?

Neste sentido, se até existem algumas outras histórias antigas associadas ao espaço deste Lago Cúrcio, a mais significativa de todas elas é, sem qualquer dúvida, mesmo aquela que se associa ao nome de Marco Cúrcio, a que já recordámos acima e de que até mostrámos uma representação. Se não é um mito que os Romanos herdaram dos Gregos, parece seguir um conjunto de ideias sobre a vida e a morte que entram em outros mitos antigos, como o de Cléobis e Bíton. Mas, ao mesmo tempo, a estranha desventura deste herói também pode ser uma alusão vestigial a uma de muitas tradições, entretanto quase esquecidas mas que existiram por todo o mundo, que requeria o sacrifício da vida de um ser humano no local em que se pretendia construir algo. Existem muitas explicações por detrás dessa ideia, mas a conhecida entre os Romanos provavelmente dizia que o sacrificado se tornava uma espécie de espírito protector do lugar, como o eram os Lares.

 

Porém, a ideia não era apenas Romana. Sabe-se que já os precedia, aparece igualmente em muitas outras culturas pelo globo fora (e.g. o Hitobashira nipónico), e foi-se mantendo ao longo dos séculos, com algumas evidentes adaptações. Basta que se pense, por exemplo, no "nosso" caso de Frei João da Barroca, que encerrado - por opção própria - num local como esse ganhou grande fama, ou que em inícios do século XX ainda se parecia manter a ideia de encerrar coisas de especial valor por baixo do local de construção de edifícios, como recentemente lemos no Sal da História em relação aos Paços do Concelho do Porto... e se não sabemos até que ponto terá existido, em tempos há muito esquecidos, uma verdadeira ligação desses antigos rituais com o Lago Cúrcio ou com a lenda de Marco Cúrcio, a ideia de um sacrifício da vida deste jovem num dos locais mais importantes da cidade de Roma pode, no mínimo dos mínimos, dar razões para se crer nessa possibilidade...

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24 de Outubro, 2022

As Guerras do Alecrim e da Manjerona

Talvez estejam quase esquecidas nos dias de hoje, mas pelo menos o muito curioso título destas Guerras do Alecrim e da Manjerona, da autoria de António José da Silva no século XVIII, mantém-se famoso nestes nossos dias de hoje. O que nos deve levar, necessariamente, a uma boa pergunta - se o seu título ainda nos é bastante conhecido, afinal, qual é o verdadeiro tema que se esconde por detrás de um nome tão críptico como este hoje parece ser?

As Guerras do Alecrim e da Manjerona

Essencialmente, as Guerras do Alecrim e da Manjerona são uma peça de teatro, de conteúdo jocoso e com alguns versos ocasionais, em que dois homens, aparentemente amigos na vida mas rivais nos sempre eternos conflitos de paixões e do amor, se apaixonam por duas mulheres. Os dois amantes passam por diversas desventuras para as conseguirem namorar, até porque elas já estavam prometidas em casamento, na sequência da qual a peça de teatro lá acaba por terminar em ambiente de festa, com a quase-realização de três casamentos. Pelo caminho vão surgindo algumas menções ocasionais a coisas agora menos famosas, mas que outrora eram bem conhecidas entre o povo. A título de exemplo, e também no contexto dos mitos e lendas do nosso país, aponte-se a seguinte troca de palavras, que hoje pode ser difícil de compreender:

D. Lancerote - [Quem lhe bateu] Era um fantasma?
Sevadilha - O que é um fantasma?
D. Lancerote - É uma coisa branca, que põe os olhos em alvo.

 

Esta é então uma jocosa peça de teatro, como muitas outras que foram compostas em português ao longo dos séculos, mas qual é mesmo a origem do seu agora-famoso nome? Quais são essas tais guerras do alecrim e da manjerona aqui mencionadas? Nesse ponto, o título parece referir-se à associação das duas mulheres principais a dois grupos diferentes, sob o signo do alecrim e da manjerona (i.e. duas plantas); foi-nos explicado que eles eram dois grupos como os que ainda hoje muito vemos nos Santos Populares, e daí a existência de uma espécie de rivalidade entre as duas plantas, que serviu de base ao título e que é repetidamente mencionada ao longo da trama, até porque - como pode ser visto na imagem acima - a primeira representação de toda esta peça teve lugar na altura do Carnaval de 1737.

 

Talvez, mais que tudo, o título de estas Guerras do Alecrim e da Manjerona seja um bom exemplo de como o nome de uma obra, por si só, pode contribuir para a sua popularidade ao longo do tempo. Fosse outro o título de toda esta peça de teatro e ela estaria hoje esquecida, como tantas outras peças nacionais que foram sendo produzidas ao longo dos séculos e de que hoje já ninguém se lembra...

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21 de Outubro, 2022

Os mitos de Agdistis, Cibele e Átis

O tema de hoje, dos mitos que unem Agdistis, Cibele e Átis, é sem qualquer dúvida muito inapropriado para os mais novos. Como tal, tenderíamos a evitar recordá-lo, por razões já cá mencionadas, mas ao mesmo tempo esta é claramente uma história de grande importância na Antiguidade, não só por se assemelhar a alguns mitos vindos de terras outrora distantes, mas também porque parece ter nascido de uma adaptação dessas famosas histórias de outras culturas a todo um novo contexto. E, portanto, apesar do seu carácter problemático para uma audiência mais nova, decidimos que tínhamos mesmo de contar esta história de três partes a quem nos vai lendo.

Agdistis, Cibele e Átis

Em dada altura das suas aventuras, o deus Zeus uniu-se com Gaia, personificação da terra. Como isso aconteceu não é totalmente claro, varia mediante a versão consultada, mas em comum parecem ter o elemento de que esta união não foi planeada ou deliberada, simplesmente tomou lugar. Dela nasceu Agdistis (ou Agdiste, se preferirem), um grotesco ser com órgãos sexuais masculinos e femininos. Visto que os deuses temiam esta criatura tão pouco natural (talvez pelas razões apontadas no Simpósio de Platão), Dioniso embebedou-a, prendeu-lhe uma corda entre o pé e o pénis, e quando esta acordou auto-emasculou-se, derramando algum sangue no chão (de onde nasceu a primeira amendoeira) e repondo a normalidade de toda a situação. Agora apenas feminina, esta figura divina poderá então ter-se tornado a deusa Cibele.

 

O tempo foi passando. Um dia, uma filha de um rei local apanhou algumas amêndoas e colocou-as no seu regaço. Estes frutos da amendoeira desapareceram e a jovem ficou grávida, dando depois à luz o belíssimo Átis. Agdistis/Cibele apaixonou-se por ele (apesar de tecnicamente ser uma espécie de sua avó...), mas ele estava destinado a casar com outra pessoa. Então, a deusa apareceu no casamento e conduziu à loucura muitos dos presentes, que foram levados a emascularem-se, juntamente com o próprio Átis. Acabaram todos por morrer, mas Agdistis/Cibele pediu a Zeus que não deixasse o belíssimo corpo do jovem desaparecer para sempre, algo que o pai do Olimpo lhe decidiu conceder. Reza a história que o corpo deste belíssimo jovem ainda hoje jaz no monte onde foi enterrado, algures na Frígia (actual Turquia).

 

Já aqui citámos uma versão do mito da primeira de estas figuras; e a ideia, muito popular entre os autores cristãos, de um Átis como um mortal divinizado; mas a introdução do seu culto em Roma, com a ajuda de Cláudia Quinta, merece aqui uma especial referência, porque os sacerdotes dessa deusa tinham, tradicionalmente, de ser eunucos. Esse até pode parecer um elemento de fácil compreensão, face ao próprio contexto do mito da deusa, mas há que deixar muito claro que nem todos acreditavam que Agdistis e Cibele fossem uma só figura divina. Para uns eram-no, para outros não, mas pelo menos a história mitológica apresentada acima aparece muito associada a esta figura, sendo importante deixar aqui essa ressalva parcial.

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18 de Outubro, 2022

A origem do nome dos gémeos siameses

Hoje, ouve-se falar ocasionalmente de gémeos siameses, talvez até sem que se pense muito nessas palavras e na sua verdadeira origem. É, como bem nos informa o dicionário da Priberam, uma expressão usada para "cada um dos gémeos que nascem ligados por uma parte do corpo", mas de onde vem toda a expressão? Claro que ela pode ser associada, sem muita dificuldade, com o reino de Sião - actual Tailândia - mas porquê? Como chegou a este nome? É isso que, de forma sucinta, aqui explicamos hoje.

Os gémeos siameses originais, Chang e Eng Bunker

Claro que gémeos sempre existiram - já eram referidos em obras da Antiguidade Clássica como as de Aristóteles - e provavelmente sempre existirão, mas os que levaram à origem do nome que ainda lhes damos são relativamente recentes. As figuras que nos ficaram conhecidas como Chang e Eng Bunker nasceram no século XIX, mais precisamente a 11 de Maio, na província de Samut Songkhram, na Tailândia, e depressa se tornaram famosos no seu país. Depois, por volta dos 17 anos de idade começaram a ser exibidos pelo mundo fora e chegaram até a trabalhar com P. T. Barnum quando já eram bastante famosos. Às tantas, estes gémeos siameses decidiram viver nos EUA, obtiveram o apelido "Bunker" em suposta homenagem a um amigo americano, casaram cada qual com sua mulher, tiveram um total de 21 filhos (eram outros tempos...), e faleceram a 17 de Janeiro de 1874, estando hoje enterrados na White Plains Baptist Church, no estado da Carolina do Norte.

Os famosos Gémeos Siameses

Agora, o que este breve história tem de particularmente digno de nota é aquela parte, quase inicial, em que estes gémeos saíram do seu país natal e foram exibidos nos continentes americano e europeu. Se alguns os antecederam e muitos mais os seguiram, naquele tipo de entretenimento outrora conhecido como freak shows (a que aqui fizemos outra alusão recentemente), estes parecem ter sido os mais famosos numa época em que esse tipo de exibição era muito popular. Desta forma, os gémeos originários de Sião tornaram-se gémeos siameses (por compressão do seu país de origem), que pela sua grande fama passaram depois a dar nome a todos aqueles que se lhes seguiram e que se mostraram igualmente unidos como estes - para quem ainda não o tiveram notado na pintura e no poster acima, estes dois irmãos estavam juntos na área da barriga, com uma banda de pele e cartilagem em que muitos médicos mostraram especial interesse... não se sabe, hoje, se teria sido possível separá-los, algo que não foi tentado na época e que até levou a uma possível morte prematura de Eng, cerca de duas horas após o falecimento do seu irmão Chang.

 

Assim sendo, a origem do nome dos gémeos siameses, expressão que continua a ser utilizada hoje, advém da fama que Chang e Eng Bunker, nascidos na Tailândia(o antigo reino de Sião), obtiveram no século XIX. Eles não foram os primeiros gémeos que correspondem a esta designação, nem sequer os últimos (e.g. pense-se no caso de Abby e Brittany Hensel, nascidas em 1990 nos EUA), mas é agora claro que foram os mais conhecidos numa época em que o conhecimento se começava a espalhar entre países de uma forma mais fácil, e poderá ter sido essa possibilidade que contribuiu para a sua fama e para a adopção da sua designação para a generalidade de todos os irmãos gémeos que partilham da sua característica tão singular.

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16 de Outubro, 2022

Mariana Alcoforado e o mistério das Cartas Portuguesas

Hoje, falar de Mariana Alcoforado é obrigatoriamente falar das Cartas Portuguesas. Isto é um tanto ou quanto paradoxal, já que não se tem uma certeza absoluta de uma ligação entre essa suposta autora e a autoria das cinco cartas que compõem a obra, mas a verdade parece ser que, hoje, os dois elementos se encontram tão embrenhados que tentar separá-los é absolutamente impossível. E, por isso, comece-se pela realidade de toda esta história, antes de se avançar para uma espécie de mito que dela nasceu.

A janela de Mariana Alcoforado, suposta autora das Cartas Portuguesas

Nasceu a 22 de Abril de 1640 uma mulher portuguesa que nos ficou conhecida sob o nome de Mariana Alcoforado. Por volta dos 11 anos de idade foi forçada a entrar para um convento, o de Nossa Senhora da Conceição, na sua terra-natal de Beja. E toda esta história poderia ter ficado por aí, como aconteceu a muitas outras mulheres da sua época, não fosse o facto de ela ter vivido um tórrido amor com um oficial francês, que muitas vezes poderá ter visto através de uma janela bejense semelhante à representada acima. As datas são sempre difíceis de precisar, nestas coisas das paixões humanas, mas é provável que esse amor tenha tomado lugar algures entre os anos de 1656, em que a jovem tomou o hábito, e de 1668, em que a Guerra da Restauração terminou. E depois, um dia e por alguma razão incerta, tiveram de se separar - e aqui parecem terminar os factos comprováveis em toda esta história!

As lettres portugaises ou Cartas Portuguesas

... Mas algum tempo depois foi publicado em Paris uma obra que ficou conhecida, na forma mais sucinta do seu título, como Lettres Portugaises (que é como quem diz, na nossa língua, Cartas Portuguesas). Datada de 1669, a obra contém cinco cartas que uma religiosa de Portugal escreveu a um seu amante originário de França. Pelo conteúdo podemos depreender que as primeiras três ficaram sem resposta, mas que uma suposta resposta à quarta terá irritado bastante esta freira, o que a levou a terminar, definitivamente, toda a relação. Provavelmente jamais saberemos o que aconteceu, mas... terão sido estas cinco epístolas verdade, um misto de ficção e realidade, ou nada mais do que uma mera invenção de algum autor francês?

 

As informação presentes nas cartas não nos permitem concluir, com absoluta certeza, quem eram os seus supostos intervenientes, mas a cultura popular da época diz-nos que a amante era esta Mariana Alcoforado, o seu amado um tal Noel Bouton, e que se separaram por uma decisão completamente unilateral, quando o francês recebeu uma carta de um irmão, aparentemente pedindo-lhe que voltasse ao seu país-natal, algo que ele parece ter feito demasiado rápido para o gosto da religiosa. Então, por algo que ele terá dito em resposta à quarta destas cinco cartas - é provável que outras as tivessem antecedido, mas não há quaisquer provas reais da existência de uma seguinte à última do quinteto - ela preferiu acabar toda a relação amorosa. Depois, como que desaparece de toda esta história até à data de 28 de Julho de 1723, em que sabemos que faleceu.

 

Mas terão sido as Cartas Portuguesas escritas por Mariana Alcoforado? Serão da autoria de uma outra religiosa que também avistava, da sua janela, as metafóricas portas de Mértola? Ou serão uma simples e completa ficção, talvez baseadas em relatos de soldados franceses que se poderão ter envolvido com freiras do nosso país? Por um lado, a tratarem-se de epístolas completamente reais, há, muito naturalmente, de se perguntar como é que elas foram obtidas para publicação - terão sido desviadas por algum mensageiro, ou terá sido o destinatário masculino a trazê-las a público, numa espécie de versão antiga de revenge porn? Por outro lado, a serem falsas, como se explica a pureza das palavras de amor, o conteúdo (quase) inofensivo, e uma declarada ausência de respostas a três das cartas*, ideias que parecem destoar quase por completo numa tradição epistolar que por essa altura já tinha mais de quinze séculos?

 

Estas epístolas não são as Heroides de Ovídio. Parecem reais, como se fossem verdadeiras cartas de amor escritas por uma mulher a um homem que já não a parece amar mais. Preservam todo um tipo de escrita amorosa que ainda hoje podemos encontrar em circunstâncias semelhantes. Elas soam a verdade, o que não corresponde, obrigatoriamente, a dizer que foram mesmo escritas por Mariana Alcoforado. Mas se o foram, ou não, é um mistério agora quase impossível de resolver, deixando-se a quem lê estas linhas o desafio de as ler e formular a sua própria opinião sobre o tema...

 

 

*- Quando estas epístolas foram publicadas em França, depressa se tornaram muito populares entre as suas elites. Então, posteriormente foram publicadas diversas "sequelas", e uma das mais curiosas diz que Noel Bouton até respondeu às epístolas desta freira, mas que a abadessa do convento interceptou essas cartas e as impediu de chegar à sua destinatária. Não temos quaisquer provas reais de que isso tenha sido mesmo verdade, mas essa pura lenda diz que as tais respostas foram passando de mão em mão até retornarem ao seu país de origem, onde foram publicadas... naquela que é, naturalmente, uma história apócrifa e destinada a isentar o cavaleiro francês de quaisquer culpas em toda esta situação.

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14 de Outubro, 2022

Saida Galla, uma feiticeira(?) esquecida

Por muito interessantes que possam ser algumas das histórias que vão sendo partilhadas por cá, por vezes elas podem levar-nos a todos àquele enormíssimo mistério do conhecimento que já se foi perdendo. Especificamente, falamos de todo um conjunto de coisas que em outros tempos até poderiam parecer óbvias para quem as foi escrevendo e lendo, mas que com o passar dos anos foram quase completamente esquecidas. Este caso de Saida Galla, de que aqui falamos hoje, cai precisamente nessa categoria.

Saida Galla, um mistério?

Já cá falámos antes sobre P. T. Barnum, por exemplo na história do elefante Jumbo, que em anos recentes foi relembrado entre nós através do filme musical O Grande Showman (ou O Rei do Show, título no Brasil). Mas, ao longo do seu tempo de vida, esse homem ficou conhecido pelas mais diversas razões, entre as quais a exibição de freaks (seres humanos particularmente invulgares), e a forma então-invulgar como os foi promovendo, que se perpetuou mesmo após a sua morte. Entre os muitos materiais de marketing criados nesse contexto conta-se, por exemplo, uma espécie de catálogo de exposições, datado de 1898, em que eram sucintamente descritas as personagens humanas e os animais que os visitantes podiam ver no local. Algumas delas ainda são relativamente conhecidas hoje (como Jo-Jo ou Queen Mab), e outras nem tanto...

 

Um dos exemplos mais intrigantes é o de uma mulher a que um catálogo em questão chama Saida Galla. Hoje, mesmo que se faça uma pesquisa pelo seu nome na internet (e que era quase certamente um pseudónimo...), nada nos é revelado sobre ela, enquanto que as linhas do próprio catálogo apenas referem o seguinte:

  • Ela era definida como uma "Egyptian Enchantress", uma espécie de Feiticeira do Egipto.
  • Praticava juggling, ou seja, malabarismos.
  • Habitualmente terminava cada truque com as palavras "very clever, Galla, Galla", fazendo rir os espectadores.
  • Trabalhou no Shepherd's Hotel no Cairo, Egipto.
  • Parece ter-se juntado às exposições no Outono (de 1897?), mas anteriormente já tinha sido exibida em outro local de Londres.
  • Os seus truques eram considerados semelhantes aos de um (agora também desconhecido?) Mr. Bertram.

 

Quem terá sido esta misteriosa mulher? Já o próprio catálogo admitia que na altura se sabia muito pouco sobre a sua história - talvez fosse uma clássica jogada de marketing, destinada a jogar com os mistérios típicos do Próximo Oriente? - mas ela parece estar hoje completamente esquecida. Nada mais conseguimos encontrar, associado a este nome de Saida Galla, e não fossem a fotografia reproduzida acima, além das quatro frases que a descrevem na mesma página, e já absolutamente nada se saberia sobre ela nestes inícios do século XXI...

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13 de Outubro, 2022

Sobre a origem dos Kamikaze

Hoje, quando pensamos na palavra kamikaze, lembramo-nos dos pilotos suicidas japoneses da Segunda Guerra Mundial. E isso pouco teria de relevante para este espaço, não fosse o facto da mesma palavra japonesa - no original, 神風 ou かみ​かぜ - ter um significado muito específico e que pode ser traduzido para português como "vento divino". Nesse sentido, se a ligação entre a própria expressão e os tais pilotos não é evidente, de onde vem ela? Que história se esconde por detrás de tudo isto? São as verdadeiras razões por detrás dessa palavra que aqui explicamos hoje!

A origem dos Kamikaze

Diz-se então que em finais do século XIII os Chineses tentaram invadir o Japão com uma frota naval. Essa tentativa de invasão inicial foi repelida e foram construídas infraestruturas para dificultar qualquer possibilidade de invasão marítima futura. Ainda assim, alguns anos mais tarde os Chineses voltaram a tentar atacar, desta vez com uma frota que se diz que teria mais de 4000 barcos e 140000 homens, um valor imenso para a altura. Não esperavam que a situação tivesse sido alterada significativamente - os nativos tinham-se unido e construído uma espécie de muralha em redor de toda a costa, impedindo o atracamento de navios - e quando confrontados com a situação não souberam o que fazer. Esperando então no mar por novas ordens, depressa foram atingidos por furacões, que destruíram a maior parte da sua frota, e que ficaram conhecidos como kamikaze.

 

E porquê chamar-lhe kamikaze, esse tal "vento divino"? Porque, face às ocorrências da altura, os Japoneses começaram então a acreditar que os deuses locais, face à grande união que os nativos mostraram para com um invasor estrangeiro e teoricamente muito superior (algo que nunca tinha acontecido até então...), os decidiram premiar com a sua ajuda etérea, com algumas versões a mencionarem até explicitamente a presença divina de Raijin e Fujin, divindades padroeiras dos ventos e das trovoadas.

 

Salte-se agora para o século XX. Em que medida é que os tais pilotos suicidas japoneses da Segunda Guerra Mundial tiveram este nome de "kamikazes" associado a eles? Essa ideia é fácil de compreender face a todo o contexto da história contada acima. Se, outrora, todo o Japão se tinha unido contra um adversário vastamente superior, e em virtude dessas acções os deuses lhe concederam a derradeira vitória, neste confronto mais recente os Japoneses acreditaram, até certo ponto, que se voltassem a demonstrar uma tal união, estando dispostos a abdicar das suas próprias vidas em prol do país, os deuses lhes voltariam a conceder a vitória. Não é claro, hoje, até que ponto é que eles acreditavam verdadeiramente nisso, se achavam que os deuses iam mesmo intervir ou se esta era apenas uma lenda antiga que foi reaproveitada na altura por motivos políticos, mas há que deixar claro que existem muitas lendas semelhantes por todo o mundo - recorde-se, por exemplo, a nossa lenda da Batalha de Ourique, de um Portugal destinado por Deus a ser o grande império cristão do mundo - nas quais as pessoas parecem ter acreditado verdadeiramente até um momento fulcral, como o do nosso desaparecimento de Dom Sebastião. É possível que também o Japão, o antigo Yamato, essa "terra dos deuses", tenha mesmo acreditado numa lenda semelhante, de que os deuses os auxiliariam novamente contra um opositor muito superior, neste novo caso os Estados Unidos da América, levando-os a estarem dispostos a sacrificar as suas vidas por aquilo que viam como um bem maior.

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09 de Outubro, 2022

A lenda de Maria Severa Onofriana e a origem do fado

Falar das origens do Fado português é, quase imperativamente, falar de uma lenda da Severa. Claro que não foi ela que inventou este estilo musical, mas foi essa a figura, talvez até a primeira de todas, que contribuiu para lhe dar uma cara real e uma história que é tão visível quanto audível. Portanto, na sequência de uma conversa informal sobre qual terá sido a prostituta mais famosa de Portugal, decidimos então abordar hoje um tema que já estava planeado há alguns anos mas que acabou por não se ir concretizando, o da breve história que une esta conhecida figura feminina àquele que é provavelmente o mais famoso estilo musical nascido em Portugal.

A lenda da Severa

A figura que nos ficou conhecida sob este simples nome nasceu com o nome de Maria Severa Onofriana a 26 de Julho de 1820, tendo depois falecido a 30 de Novembro de 1846, ou seja, aos 26 anos de idade. Pelo caminho, sabemos que era considerada muito atraente fisicamente, que deverá ter sido prostituta, que cantou o Fado, que mudou de casa várias vezes (sempre em Lisboa, frequentemente na zona da Mouraria), e que se envolveu romanticamente com Francisco de Paula de Portugal e Castro, o 13.º Conde de Vimioso. Terá sido essa associação romântica, ou talvez apenas puramente sexual, com esse nobre que contribuiu para a sua fama, mas... além destes elementos muito vagos, parece que tudo o mais que a envolve está cerrado numa neblina difícil de afastar. Isto porque, face à falta de informação mais fiável sobre esta figura, se parecem ter indo inventando todo um conjunto de histórias ficcionais(?) sobre ela - o pai era sido um cigano, ela envolveu-se com vários outros membros da nobreza, teve um conjunto enorme de peripécias sexuais, e tantas outras coisas que tais, ideias aparentemente nascidas da sua morte prematura e da própria natureza do Fado, que então lamentava a crueldade que a vida nos pode trazer a todos. É uma ideia bem captada no chamado Fado da Severa (posteriormente vários outros tomaram este mesmo nome), cuja versão registada ainda em 1847 reza a seguinte história:

Chorai, fadistas, chorai,
Que uma fadista morreu,
Hoje mesmo faz um ano
Que a Severa faleceu.
Morreu, já faz hoje um ano,
Das fadistas a rainha,
Com ela o fado perdeu,
O gosto que o fado tinha.
O Conde de Vimioso
Um duro golpe sofreu,
Quando lhe foram dizer,
Tua Severa morreu!
Corre à sua sepultura,
O seu corpo ainda vê:
Adeus ó minha Severa,
Boa sorte Deus te dê!
Lá nesse reino celeste
Com tua banza na mão,
Farás dos anjos fadistas,
Porás tudo em confusão.
Até o próprio S. Pedro,
À porta do céu sentado,
Ao ver entrar a Severa
Bateu e cantou o fado.
Ponde nos braços da banza
Um sinal de negro fumo
Que diga por toda a parte:
O fado perdeu seu rumo.
Chorai, fadistas, chorai.
Que a Severa se finou,
O gosto que tinha o fado,
Tudo com ela acabou.

Estes versos foram sofrendo as mais diversas alterações ao longo do tempo, existindo hoje em múltiplas versões, como este exemplo recente permite atestar, em que apenas foram cantados os versos presentes a negrito na letra acima, composta menos de um ano após a morte da lendária heroína:

 

Neste seguimento, se parece ser mesmo essa a própria natureza deste estilo musical, a intenção de cantar um triste destino de alguém, que até podemos tradicionalmente associar à própria pessoa que canta, somos levados uma questão adicional, mas nem menos importante - se não foi esta famosa figura nacional a inventar o próprio estilo, qual é mesmo a origem do Fado?

Sobre a origem do Fado

Sobre essa origem do fado, seria muitíssimo interessante dar-se aqui uma resposta como "Ah, foi inventado em inícios do século XIX pela pessoa X", mas de facto não se parece ter uma completa certeza da sua origem. Terá sido a heroína de que já falámos acima a primeira a popularizar este estilo musical entre as massas nacionais e internacionais, mas ninguém parece argumentar, com conhecimento de causa, que terá sido ela própria a inventá-lo. Em alternativa, se até parecem existir muitas teorias sobre a sua génese, entre as que fomos lendo em diversas obras são três as que têm aqui especial interesse.

 

Uma dessas teorias sobre a origem do fado diz que este nasceu nos muitos caminhos marítimos viajados pelos portugueses, talvez entre criminosos desterrados para o além-mar, que se lamentavam dos caminhos a que a vida os tinha conduzido. Uma outra diz que estas canções eram verdadeiros lamentos das classes mais desfavorecidas, como na agora-famosa canção Povo que lavas no rio, cantada por Amália Rodrigues. Uma terceira diz que esta forma musical veio do "fado" brasileiro, que era um tipo de dança sobre a qual pouco se parece saber sobre as letras. Em todos os casos, a própria designação que lhe é dada - o "fado", no sentido de destino, sorte, fortuna, como no caso das fadas de outros tempos... - parece apoiar pelo menos as duas primeiras hipóteses, ainda para mais se se tiver em conta que, originalmente, ele era cantado em tabernas frequentadas por gente pobre. Se sabemos que Ana Gertrudes Severa, mãe da heroína de que falámos hoje (o pai, esse, parece ter sido um quase-esquecido Severo Manuel de Sousa), até tinha o seu estabelecimento, é provável que tenha sido isso que conduziu a própria filha para estas artes... mas já não se parece saber, infelizmente, que letras cantava ela nessa altura. Só poderão ter sido tristes, como a própria vida das classes baixas lisboetas da sua época.

 

Bem, mas as linhas de hoje já vão longas. Conclua-se. Faz todo o sentido falar-se de uma lenda de Maria Severa Onofriana porque, se ela até foi uma figura bem real, os contornos mais precisos da sua vida são hoje quase desconhecidos, o que gerou uma construção da sua vida que assenta mais na ficção e no pressuposto do que em factos comprováveis. O que sabemos é que ela terá tido uma vida difícil e faleceu cedo, elementos inspiradores de um primeiro fado que tomou o seu nome (reproduzido ali em acima), e que, de um modo mais geral, parecem estar frequentemente envolvidos na própria origem do fado. Isto, apesar de já não se saber quando ou onde nasceu este estilo musical, por se ter tratado, na sua forma original, de algo ligado às classes mais desfavorecidas, a que as elites anteriores ao tempo de vida de Francisco de Paula de Portugal e Castro, 13.º Conde de Vimioso (viveu em 1817-1865), parecem ter prestado muito pouca atenção...

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