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Mitologia em Português

30 de Outubro, 2022

Os Fenómenos do Entroncamento e a sua história

Se ainda hoje se fala ocasionalmente de Fenómenos do Entroncamento, já poucos se parecem interrogar sobre a sua origem, aquilo em que consistiam, e o porquê de (quase) terem deixado de fazer parte da nossa cultura portuguesa. Hoje, a expressão é usada quase somente como um sinónimo para "coisas estranhas", mas com a clara excepção dos habitantes de aquela que também é chamada a "cidade ferroviária", já poucos parecem saber de onde vem esta expressão. A título de curiosidade, tentámos que diversas pessoas, em várias cidades portuguesas, nomeassem pelo menos um destes fenómenos e (infelizmente) já ninguém foi capaz de o fazer... e é, portanto, dessa situação que nasceu o tema que aqui decidimos apresentar hoje de uma forma alongada.

 

O Entroncamento, a cidade portuguesa dos tais fenómenos, é relativamente recente. Nasceu, cresceu e obteve o seu nome a partir da linha de comboio que por ela passa, mas na qual poucos hoje ainda páram. Tem menos de dois séculos e, por isso, em comparação com muitas outras cidades e vilas portuguesas ditas históricas, não tem muito para se ver. Talvez tenha sido por isso que em meados do século XX um tal Eduardo O. P. Brito, que vivia no local, tomou a inspiração do que se ia vendo de estranho em países como os Estados Unidos da América - recorde-se, por exemplo, o famoso caso dos gémeos siameses, entre outros freaks - e decidiu que o nosso país também podia exibir coisas como essas. Seguindo essa ordem de ideias, procurou casos semelhantes na zona onde residia e encontrou um melro branco (para os menos inclinados ornitologicamente, os melros tendem a ser pretos), descoberta que posteriormente reportou para um jornal, o Diário Popular. Seguiram-se muitas outras descobertas locais, relativas ao reino vegetal e animal, que também foram sendo reportadas em jornais, e que teríamos todo o gosto em detalhar... mas foi aqui que surgiu o grande problema na nossa pesquisa para o tema de hoje - não parece existir qualquer grande livro ou estudo sobre os Fenómenos do Entroncamento, ou mesmo alguma listagem que os apresente a todos e/ou reproduza as pequenas notícias em que se inseriam, como nos dois exemplos da imagem abaixo*:

Algumas histórias dos fenómenos do Entroncamento

Ainda assim, visto que uma paixão por temas como estes é algo que nunca nos falta, decidimos ir procurar e compilar tudo aquilo que conseguíssemos encontrar sobre eles - normalmente, e como pôde ser visto acima, esses artigos não têm autor creditado, mas tendem a caracterizar-se por uma referência à cidade, uma representação gráfica do próprio "fenómeno" e a sua breve história. Para atingirmos esse objectivo queríamos consultar todos os jornais que apresentaram esses conteúdos entre os anos de 1950 e 1960 (a idade de ouro da expressão), mas no decurso da nossa pesquisa apercebemo-nos de que muitas edições não se encontravam em arquivos. Talvez já nem existam, a não ser que os familiares de Eduardo O. P. Brito, ou algum coleccionador mais ávido, tenham sentido o ímpeto de ir guardando estas referências à cidade. Por isso, passando à única alternativa que nos era possível em tempo útil, recolhemos informação relativa a estes Fenómenos do Entroncamento maioritariamente em fontes secundárias e conseguimos encontrar breves alusões a pelo menos alguns dos temas que os compunham:

"Abóbora com 60 kg" (esteve em exposição na Tabacaria Luanda)
"Árvore que dava cinco frutos diferentes" (eram tangerinas, laranjas, limões, pêras e maçãs)
"Batatas enormes"
"Cacto gigante" (parece ter morrido recentemente)
"Canária que teve 36 filhos em três meses"
"Cão que fala" (para quem estiver com curiosidade, já voltaremos a ele...)
"Carneiro com quatro cornos" (já reproduzido acima)
"Chica, a lebre que bebia leite de um biberão"
"Chuva amarela" (potencialmente incorrecto?)
"Corvo que falava como gente"
"Couve que dá cravos"
"Cravos verdes"
"Feijão com mais de um metro" (potencialmente incorrecto?)
"Um frango que morreu de desgosto"
"Homem com três rins"
"Laranja gigante"
"Melro branco" (de que já falámos acima, e que parece ter sido o primeiro de todos os casos reportados...)
"Oliveira com azeitonas brancas"
"Ovo de galinha com 800 gramas" (também já reproduzido acima)
"Pé de milho com vinte maçarocas"
"Pescador que pescou uma perdiz"
"Pinto com três patas"
"Pomba que acorda os hóspedes de um hotel"
"Raposa que enganou um caçador"
"Toureiro que morde no touro"
...

Por esta breve compilação de alguns dos fenómenos se pode depreender que, no seu geral, eles se tratavam de algo que pode ser designado como milagres da natureza, em termos de possuírem características, ou fazerem actos, invulgares nas suas respectivas espécies. Se, por exemplo, tivesse existido na cidade uma história de um homem que mordeu um cão, isso certamente que pertencia a estas mesmas categorias. E então, visto que notícias como estas eram reportadas por Eduardo O. P. Brito, mas nada de semelhante se lia com frequência sobre outros locais, gerou-se a (falsa) ideia de que o Entroncamento as tinha de uma forma bastante mais assídua que as outras localidades portuguesas. Note-se que estes fenómenos ditos estranhos nada tinham a ver com o sobrenatural, com monstros ou extraterrestres ou locais assombrados, como a expressão nos pode sugerir nos dias de hoje - eram apenas e exclusivamente coisas menos vulgares que iam sendo encontradas nessa cidade!

O Cão que Fala, um dos fenómenos...

E pode então perguntar-se... eram eles verdade, ou um mero fruto da imaginação humana? Não conseguimos afirmá-lo com total certeza e para todos os casos apresentados acima, mas existem provas da veracidade de pelo menos algumas daquelas histórias - o cacto supostamente gigante ainda existe; a dona da Chica ainda está viva e tem uma fotografia com a lebre; os vegetais e árvores incomuns eram enxertados no quintal de um conhecido do autor; alguém tentou comprar o melro branco, etc. Outras, pela sua própria natureza efémera, são impossíveis de provar - a história do cão falante*, por exemplo, termina dizendo que ele foi à Pastelaria Ribatejo, se colocou em duas patas e pediu "bolos" aos funcionários, por ter gostado de comer um que o dono lhe deu no dia anterior...

 

Fossem verdade ou não, porque caíram então estes Fenómenos do Entroncamento no esquecimento, ao ponto de já quase ninguém se recordar do que eles foram? Poderia ser um mistério insondável, mas em 2001 Eduardo O. P. Brito revelou a razão por detrás desse desaparecimento - parece que alguns habitantes locais, descontentes com a forma como o Entroncamento andava a ser representado nos jornais, se puseram a dizer mal do escritor dessas notícias e a incomodá-lo com cartas anónimas, levando-o a deixar de reportar notícias como as que tinha por hábito escrever até então... o que é muitíssimo irónico se tivermos em conta que a cidade, mesmo após mais meio século, continua a ter como um dos seus poucos motivos para fama estes fenómenos de antigamente. Ao mesmo tempo, é uma ideia triste mas muito tipicamente portuguesa, daquele famoso "não se faz e não se deixa ninguém fazer"...

Mas, felizmente, toda esta ideia não morreu por completo. Outros autores se seguiram a Eduardo O. P. Brito nessa história dos Fenómenos do Entroncamento (que se diz que continuam a aparecer nos nossos dias...!), e na cidade em questão a sua memória colectiva ainda parece perdurar. Há muito poucos anos foi feito o videoclipe acima, que celebra todo este tema e até mostra alguns dos artigos de jornal originais, enquanto que a Casa Carloto ainda vende produtos alusivos a alguns dos "fenómenos" mais famosos, de que até mostrámos um exemplo numa das imagens acima. Tentámos apurar se a Câmara Municipal já faz ou pretende fazer alguma coisa com este seu património cultural (ao longo dos anos foram sugeridas muitas alternativas para o seu reaproveitamento, inclusive um festival e um pequeno parque temático), mas não obtivemos qualquer resposta deles ou da tal casa comercial em tempo útil...

 

 

*- Para referência futura, ou por simples motivos de curiosidade, transcrevemos aqui três dessas notícias:

  • O cão que fala - "O rafeirito acompanhava sempre o seu dono, que, diariamente, ia à Pastelaria Ribatejo, na Rua 5 de Outubro, comer um bolo. Numa dessas vezes, já habituado à rotina, mas farto de não provar a iguaria, o cão ganiu insistentemente e o dono acabou por lhe dar a doçaria. O rafeirito gostou e conta-se que no dia seguinte foi à pastelaria sozinho e, determinado, empinou-se no balcão e proferiu a palavra 'bolo'."
  • O ovo de 800 gramas - "Um ovo com oitocentas gramas? Sim, é possível. Aconteceu no Entroncamento. Uma galinha de aspecto aparentemente normal, habituada a pôr o seu ovo diário, conseguiu a façanha, para espanto de todos, de deixar no ninho um ovo com 800 gramas."
  • Um carneiro com quatro cornos - "Nasceu e cresceu numa pensão em frente à polícia, na Rua 5 de Outubro. Espantava pela postura e pelo número e dimensão das suas hastes."
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