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Mitologia em Português

19 de Dezembro, 2022

A origem do Sebastianismo

Se já cá falámos anteriormente sobre o Sebastianismo, hoje decidimos ir um pouco mais longe e falar sobre a sua origem em concreto. Claro que já quase ninguém acredita que El-Rei D. Sebastião irá voltar um dia, naquela utopicamente famosa manhã de noveiro, mas a ideia ainda nos é conhecida da Mensagem de Fernando Pessoa, entre outras fontes. Mas, de facto, de onde vem ela? Já lá iremos, principie-se com uma das faces mais visíveis de toda esta história lendária portuguesa.

O túmulo de Dom Sebastião no Mosteiro dos Jerónimos

Hoje em dia, quem for ao Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa, poderá lá encontrar um túmulo onde se diz que está alojado o corpo do falecido Dom Sebastião. É um espaço como tantos outros no mesmo templo, mas quando se presta alguma atenção prolongada pode ver-se nele uma área, que até assinalámos a verde na imagem acima, com o seguinte texto em Latim:

Conditur hoc tumulo si vera est fama Sebastus
Quem tulit in Libicis mors properata plagis
Nec dicas falli regem qui vivere credit
Pro lege extincto mors quasi vita fuit.

As palavras mais importantes aqui são Si vera est fama, algo como "se é verdade o que se diz" o corpo de D. Sebastião está neste túmulo. Mas como poderia não estar? Será que ninguém se certificou da verdadeira identidade do falecido? Como é isso sequer possível, tratando-se ele do mais importante dos cidadãos da pátria portuguesa nessa altura? A mera sugestão pode levantar centenas de estranhas perguntas, mas visto que é ela a mais significativa semente do Sebastianismo, decidimos que tínhamos de descobrir uma resposta. Para tal, partimos em busca das fontes literárias da época, fomo-las seguindo, e chegámos a um panorama geral da origem de uma crença que quase chegou aos nossos dias. Portanto, indo agora ao que importa:

 

No ano de 1578 o rei português Dom Sebastião partiu para terras de África, onde queria lutar pela Cristandade. Foram muitíssimos aqueles que o tentaram dissuadir, inclusive quem mais teria a ganhar com a sua morte, mas não conseguiram fazê-lo. As crónicas da época representam-no como um monarca profundamente imprudente, que até tentou liderar pessoalmente os combates no campo de batalha. Falando-se da Batalha de Alcácer Quibir, foram vários os nobres que o viram em combate, mas ás tantas todos eles deixaram de o ver. Isto levanta três grandes possibilidades - ou ele morreu, ou escapou da batalha, ou foi capturado. A terceira opção parece improvável, porque diversos nobres o ouviram a dizer que preferia morrer a sofrer o triste destino da captura, pelo que sobram as duas restantes... e como pelo menos uma pessoa afirmou ter visto o corpo do rei morto, já despojado do seu equipamento guerreiro e com algumas feridas, faz sentido que o monarca tenha morrido! Mas, infelizmente, demorou algum tempo até que outros o pudessem tentar identificar, e nessa altura o corpo já estava tão degradado que era difícil ter a certeza absoluta de quem ele era. Mas, mais uma vez, visto que pelo menos uma pessoa já o tinha identificado, acreditou-se que o corpo recuperado, aquele que ainda hoje está no túmulo do Mosteiro dos Jerónimos, era o do monarca desaparecido.

O Dom Sebastião e o seu Sebastianismo

Mas... depois, começaram a surgir rumores de que o rei tinha escapado da batalha e estava vivo. Maluquices, pensaríamos, até terem aparecido três homens que afirmavam ser o rei retornado de terras de África. Mais uma vez, pareceria completamente incrível, mas nos últimos anos desse século XVI foi encontrado no Mosteiro de Alcobaça um documento inquietante. Já cá falámos dele antes, o chamado Juramento de Ourique, mas entre as suas linhas foi encontrada uma informação que era desconhecida até então. Segundo ela, na Batalha de Ourique foi feita uma profecia a Dom Afonso Henriques com as seguintes palavras:

(...) És amado do Senhor, porque sobre ti e sobre os teus descendentes depois de ti, Ele tem posto os olhos de sua misericórdia até à décima sexta geração, na qual se diminuirá a descendência, mas na mesma assim diminuída, o mesmo Senhor tornará a pôr os olhos e verá. (...)

É provável que se tenha tratado de uma mera falsificação documental, mas a acreditar-se na estranha ideia, D. Sebastião fazia parte dessa tal décima sexta geração - e se o rei tivesse pura e simplesmente falecido, a regeneração da monarquia portuguesa não poderia cumprir-se. O que, muito naturalmente, só podia indicar que ele ainda estava vivo... e assim parece ter nascido a principal ideia por detrás da origem do Sebastianismo!

 

Mas a história ainda não fica por aqui... alguns anos mais tarde, um tal Dom João de Castro, neto do nobre homónimo que ficou famoso pelas suas barbas, veio a conhecer um homem encontrado em Veneza que podia ser o monarca retornado. Parecia sê-lo e até tinha uma história para o comprovar, em que supostamente viajou "encoberto" pelo mundo fora durante 20 anos (e daí o seu futuro título de "Rei Encoberto"), lamentando o seu destino em Alcácer Quibir e procurando redenção pelas suas acções imprudentes. Assim, para trazer à luz do dia esta suposta verdade, esse tal João de Castro escreveu um primeiro livro sobre o tema - o Discurso da vida do sempre bem vindo, e apparecido Rey Dom Sebastião nosso senhor o Encuberto desde o seu nascimento até o presente: feito, e dirigido por D. João de Castro aos tres Estados do Reyno de Portugal: comvem a saber ao da Nobreza, ao da Clerezia, e ao do povo a que já cá aludimos anteriormente - a que se seguiram diversas espécies de sequelas em que defendeu sempre a ideia de que Dom Sebastião ainda continuava vivo e iria voltar um dia!

Marco Tulio Catizone, uma das personagens da origem do Sebastianismo

Mas... pelo menos essa história veneziana era falsa. Não era o monarca português retornado de longas viagens, mas um tal Marco Tulio Catizone, cidadão italiano, que em virtude das suas intrujices acabou por ser executado em 1603. Não é fácil saber se a imagem acima é fiel - provém de um livro publicado em 1728 - mas podemos frisar que quem o viu pessoalmente o considerou muitíssimo semelhante ao nosso rei, o que poderá ter ajudado em toda esta ideia... ainda assim, falecido este possível Sebastião, o Sebastianismo não morreu por completo, mas reaproveitando a ideia da profecia, de que o rei não podia estar morto, a crença foi sofrendo várias metamorfoses místicas, como a da presença do monarca na chamada Ilha Encoberta, mas essas já são histórias que têm de ficar para outro dia...

 

Em suma, qual é essa verdadeira origem do Sebastianismo? De forma breve, esta crença parece ter nascido da associação de três grandes elementos. Primeiro, o facto de Dom Sebastião ter desaparecido em combate, sem que ninguém o tenha visto morrer e sem que existissem múltiplas confirmações da identidade do seu cadáver. Segundo, a posterior "descoberta" de um documento "histórico" alcobacense contendo uma profecia segundo a qual algo de negativo ia acontecer ao nosso décimo sexto monarca. E, em terceiro lugar, o reaparecimento de supostos "Sebastiões", que sempre se provaram falsos mas que foram mantendo na cabeça do povo a ideia de que o rei desaparecido iria voltar um dia.

 

Mas... para terminar, será que este nosso famoso rei morreu na Batalha de Alcácer Quibir ou ainda sobreviveu por alguns anos após o fatídico dia? A verdade puramente factual é que ninguém o sabe, e daí toda esta origem do Sebastianismo. Si vera est fama os seus restos mortais estão no Mosteiro dos Jerónimos, mas em caso contrário, se o que se diz é a mais pura ficção e nada mais, ninguém parece ter conhecimento do que aconteceu verdadeiramente ao décimo sexto dos monarcas de Portugal...

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