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Mitologia em Português

26 de Fevereiro, 2023

"Mickey au Camp de Gurs", de Horst Rosenthal

Mickey au Camp de Gurs, de Horst Rosenthal, é uma obra fácil de definir mas nem por isso menos estranha. É, essencialmente, uma história completamente apócrifa do Rato Mickey que foi escrita e ilustrada por um cartoonista de ascendência judia no ano de 1942, quando este já se encontrava preso num campo de concentração nazi em Gurs, uma povoação no sudoeste da França. Depois, o seu autor foi transferido para Auschwitz, onde viria a ser morto, mas de alguma forma mais ou menos desconhecida esta sua estranha criação foi passando de mão em mão até chegar aos nossos dias, sendo apenas publicada no ano de 2014, com uma capa em que é tornado muito claro que foi "Publié sans autorisation de Walt Disney", ou seja, escrito e publicado sem qualquer chancela oficial da empresa da Disney. Presume-se, como é mais que natural, que a empresa não se tenha oposto à sua publicação dado o contexto em que a obra foi produzida e a sua importância cultural na sequência da Segunda Guerra Mundial.

Mickey au Camp de Gurs

Mas qual é a história contida neste Mickey au Camp de Gurs? Na verdade, ela é relativamente simples - o famoso herói dos desenhos animados andava a passear numa qualquer rua de França quando foi abordado por um estranho polícia que lhe pediu os documentos. Como ele não os tinha, nem nunca tinha precisado deles, foi preso e, quando lhe pediram os papéis de identificação, visto que também não os tinha, pensou-se que era um judeu e foi levado para um campo de concentração nazi. Por lá, a maior parte das aventuras relatam as estranhas vivências que se tinham num local como esse - um exemplo pode ser visto na imagem acima - até que o Mickey lá se lembra que é apenas um boneco animado e, como tal, desaparece por magia e reaparece logo em terras da América, o novo local da liberdade, da igualdade e da fraternidade.

 

É uma história breve, com menos de 15 páginas, em que cada sequência tem uma imagem ilustrativa e algum texto que narra essa parte da aventura, mas o seu elemento mais digno de nota é, sem qualquer dúvida, essa estranha representação animada do Rato Mickey num contexto em que muito raramente o esperaríamos ver. Claro que é uma obra apenas para adultos, dada a sua linguagem, em alguns momentos menos própria - para as crianças, que elas em alternativa vejam uma outra publicação nossa, sobre a personagem mais velha da Disney, muito mais indicada para elas!

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23 de Fevereiro, 2023

A lenda Kung da origem do sexo

Esta lenda da origem do sexo de hoje provém dos Kung, um povo que vive nos desertos próximos de Angola. É mencionada na obra Nisa: The Life and Words of a Kung Woman, de Marjorie Shostak, que lhes chama mais propriamente "!Kung", mas apesar do seu tema principal, que tentamos sempre evitar, é uma pequena história cujo charme até pode recordar uma das pinturas de Kolongi Brathwaite, que reproduzimos abaixo.

Fire and Desire, painting by Kolongi Brathwaite

Conta-nos então esta lenda da origem do sexo, que se atribui aos !Kung, que em dada altura existia uma aldeia em que apenas viviam duas mulheres. Em outro lugar existia uma aldeia povoada apenas por dois homens. Um dia, estes últimos encontraram o local em que viviam as primeiras, mas quando tiveram a intenção de as raptar, não as conseguiram encontrar excepto durante a noite. Quiseram fazer amor com elas, cada um com a sua parceira, mas ainda não sabiam como realizar esse acto. Tentaram a boca, as orelhas, os olhos, o nariz, ..., mas sempre sem sucesso. Até que as mulheres decidiram educá-los, "a boca serve para comer, as orelhas servem para ouvir, os olhos servem para ver, o nariz serve para respirar", e assim por diante, até que lhes apresentaram o local da sua vagina. Conhecendo então esse novo local, os homens fizeram amor com elas durante toda a noite e na manhã seguinte partiram, para tentarem ensinar o que tinham aprendido a outras pessoas.

 

O que esta lenda tem de muito especial é o facto de não só apresentar as relações sexuais como algo que já era conhecido do sexo feminino, mas igualmente como algo que foram elas a ensinar aos homens. Hoje, pensa-se talvez demasiado no sexo como algo masculino, desejado maioritariamente por esse sexo, mas esta lenda Kung da origem do sexo inverte esse paradigma, talvez como um pequeno vestígio de tempos matriarcais, numa cultura em que, como apresentado em alguns dos capítulos da obra de Marjorie Shostak, este acto pertence aos dois e é frequentemente desejado por membros de ambos os sexos, que nele conseguem encontrar o seu prazer comum.

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19 de Fevereiro, 2023

A dupla lenda das Amazonas

Falar-se aqui da lenda das Amazonas dá-nos uma oportunidade invulgar de abordarmos duas histórias bastante distintas numa só publicação. Claro que elas andam de mãos dadas, de uma forma que já poucos parecem conhecer hoje em dia, mas a segunda delas só pode ser compreendida no seguimento da primeira, o que nos levou à evidente necessidade de as contar em associação. Para tal, comece-se então pelo início de toda esta história.

A lenda das Amazonas

Nos mitos e lendas da Antiguidade Clássica existia uma estranha civilização que era conhecida pelo nome de Amazonas. Era composta exclusivamente por mulheres guerreiras, todas elas tão prolíferas nas artes da guerra como os seus congéneres masculinos. Depois, uma vez por ano, cruzavam o rio local (algures na Ásia Menor), aproximavam-se de um aldeia em que só existiam homens, e ora os violavam a todos, ora decidiam deixar nesse local todos os rebentos do sexo masculino que tinham sido dados à luz nos passados 12 meses.

Esta poderia uma história como tantas outras da mesma altura, de espécies estranhas que viviam em locais longínquos e raramente eram vistas pelos seres humanos (como os Blémias, os Centauros ou os Ciclopes), mas o notável é que estas Amazonas tinham, ocasionalmente, um papel em alguns dos mitos da Grécia Antiga - Teseu casou com uma, Hércules defrontou outra, Aquiles matou uma terceira na Guerra de Tróia, etc. Como tal, gerou-se uma ideia segundo a qual esse povo era verdadeiro, existia mesmo, potencialmente em terras da Ásia, mas ninguém sabia muito bem onde era esse local. Portanto, toda esta história foi ficando na mente de alguns, presa durante séculos entre ficção e realidade...

 

E assim poderia ter permanecido até aos nossos dias, não fosse algo que aconteceu com Frei Gaspar de Carvajal por volta do dia 24 de Junho de 1541. Nessa altura ele, juntamente com um pequeno grupo de soldados, explorava um rio que encontraram em terras do Brasil. Enquanto o faziam, foram atacados pelas flechas de um grupo de nativos locais. Entre vários homens, estes viajantes conseguiram ver algo que lhes pareceu muitíssimo digno de nota - aí se encontravam também ferozes mulheres guerreiras, que pareciam controlar os habitantes do sexo oposto como seus soldados... e então, estes viajantes concluíram tratarem-se certamente das Amazonas, aquelas figuras guerreiras de que apenas tinham ouvido falar nos mitos e lendas da Antiguidade... e por essa coincidência de carácteres pensaram também que aquele rio por onde viajavam era o presente nessas conhecidas histórias, levando, aparentemente, ao nome que ele ainda hoje tem - o Rio Amazonas (!), por pensarem que aí vivam, nesses meados do século XVI, as mesmas mulheres guerreiras que em outros tempos tinham defrontado figuras como Teseu e Aquiles!

 

O que eles encontraram não eram, como é óbvio, as Amazonas de que falavam os autores gregos e romanos da Antiguidade. Estes exploradores apenas viram o que queriam ver, nessa pura coincidência da fortaleza de espíritos, mas talvez tenha sido esse carácter forte das mulheres locais da época (por contraste com as ocidentais, então mais submissas), que terá levado àquela conotação negativa de rapariga no Brasil, como contámos anteriormente. É debatível. Já o nome do rio, esse, parece sê-lo menos, fruto de um mito pagão da Antiguidade que não deixou de ir sendo relembrado ao longo dos séculos...

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16 de Fevereiro, 2023

A mulher e o macaco, um estranho "amor"

Esta história de hoje é uma cuja origem é difícil de identificar. Ela menciona o nosso país, e dá até alguns elementos que poderão tornar possível a sua identificação, mas não conseguimos dar esse último passo. É uma trama que aparece no Compendium Maleficarum, obra de inícios do século XVII, como uma história que parece ter sido muito conhecida oralmente. Podemos inferir isso porque neste caso, e contrariamente ao que acontece a muitas outras histórias da mesma obra, o autor não menciona onde a leu, o que destoa num texto que dá exemplos de centenas de histórias de feitiçaria, mas menciona (quase) sempre a autoria e identificação da obra onde teve acesso a cada uma delas. Mas, deixando-se essas considerações para trás, reconte-se agora esta pequena aventura que Francesco Maria Guazzo incluiu na sua obra.

A história da mulher e do macaco

Uma mulher cometeu um crime agora desconhecido e foi deportada para uma ilha quase deserta, em que apenas existiam alguns macacos. Com pena dela, os animais foram-lhe dando comida e, ás tantas, um deles levou-a para uma caverna, onde a forçou a fazer amor com ele. E, com o passar do tempo, nasceram alguns frutos dessa estranha relação.

Algum tempo mais tarde um navio português atracou nessa ilha e, vendo esta mulher por lá, decidiu levá-la de volta a terra. O macaco, que tanto a parecia ter "amado", não estava no local, mas quando se apercebeu do que estava a acontecer levou cada um dos filhos do "casal" para a praia e ameaçou-a com gestos, propondo-se afogá-los. Quando ela não voltou do barco, ele acabou mesmo por afogá-los, antes de se pôr a nadar e a seguir o barco onde a antiga companheira viajava, mas não conseguiu alcançá-lo. Então, o animal parece ter-se perdido nas ondas.

A mulher, essa, foi levada para Portugal. O nosso rei da altura - cuja identidade não é revelada - condenou-a à fogueira, por ter vivido uma espécie de amor tão pouco natural, mas com o auxílio de terceiros a pena foi comutada para prisão perpétua, e esta acabou por tornar-se "uma história contada por todo o Portugal", como Guazzo a apelida.

 

Dadas as suas características gerais - em particular, a possibilidade de uma tão estranha ilha e de um amor mulher-animal - é provável que esta fosse apenas uma história oral contada entre os navegadores portugueses, como a da Ilha Encoberta, mas pouco mais conseguimos descobrir sobre ela, além da informação que Francesco Maria Guazzo dá no seu Compendium Maleficarum. Também Georges T. Dodds tentou descobrir a sua origem, mas apenas chegou a uns tais "Anais de Portugal" de um qualquer "Castanheda", obra que ainda não foi descoberta... Por isso, se um dia alguém encontrar estas linhas e souber mais sobre a sua origem, por favor deixe um comentário com mais informação - esse tipo de ajuda já aqui aconteceu antes, relativamente à história de Pincho de Benaciate, e nestas coisas alguma colaboração adicional é sempre bem vinda...

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13 de Fevereiro, 2023

As "Trovas à Morte de Inês de Castro", de Garcia de Resende

Quando se fala de histórias de amor em Portugal, é certo e sabido que a mais famosa de todas elas é a de Pedro e Inês. Já aqui contámos a sua "lenda" - se é correcto chamar-lhe isso - mas o que trazemos aqui hoje é ligeiramente diferente, as chamadas Trovas à Morte de Inês de Castro, da autoria de Garcia de Resende. O que elas têm de muito especial é que se tratam da mais antiga composição poética sobre o tema - ou, pelo menos, a comprovadamente mais antiga que ainda nos chegou. Como tal, para celebrar o dia de hoje decidimos aqui trazer esse poema, com algumas pequenas adaptações para facilitar a leitura nos dias de hoje.

Recorde-se que a composição que aqui reproduzimos há dois anos fala desta morte do ponto de vista de Dom Pedro. Já esta fá-lo na voz da própria Inês de Castro, numa composição impossível em essa figura nacional nos traz, pela sua própria boca, os derradeiros eventos de que foi vítima. Há mais a dizer sobre eles, claro está, mas já voltaremos ao tema. Por agora, leia-se a própria composição, estas trovas a Inês de Castro de Garcia de Resende:

As Trovas à Morte de Inês de Castro, de Garcia de Resende

Qual será o coração
tão cru e sem piedade
que lhe não cause paixão
uma tão grande crueldade
e morte tão sem razão?
Triste de mim, inocente,
que, por ter muito fervente
lealdade, fé, amor
ao príncipe, meu senhor,
me mataram cruamente!

A minha desventura
não contente de acabar-me,
por me dar maior tristura
me foi pôr em tanta altura,
para de alto derribar-me;
que, se me matara alguém,
antes de ter tanto bem,
em tais chamas não ardera,
pai, filhos não conhecera,
nem me chorara ninguém.

Eu era moça, menina,
por nome Dona Inês
de Castro, e de tal doutrina
e virtudes, que era digna
de meu mal ser ao revés.
Vivia sem me lembrar
que paixão podia dar
nem dá-la ninguém a mim.
Foi-me o príncipe olhar,
por seu nojo e meu fim.

Começou-me a desejar,
trabalhou por me servir;
Fortuna foi ordenar
dois corações conformar
a uma vontade vir.
Conheceu-me, conheci-o,
quis-me bem e eu a ele,
perdeu-me, também perdi-o:
nunca até à morte foi frio
o bem que, triste, pus nele.

Dei-lhe a minha liberdade,
não senti perda de fama;
pus nele minha verdade,
quis fazer sua vontade,
sendo muito formosa dama.
Por me estas obras pagar
nunca jamais quis casar;
pelo qual aconselhado
foi el-rei que era forçado,
pelo seu, de me matar.

Estava muito acatada,
como princesa servida,
em meus paços muito honrada,
de tudo muito abastada,
de meu senhor muito querida.
Estando muito de vagar,
bem fora de tal cuidar,
em Coimbra, de assossego
pelos campos do Mondego
cavaleiros vi somar.

Como as coisas que hão de ser
logo dão no coração,
comecei entristecer
e comigo só dizer:
"Estes homens onde irão?”
E tanto que perguntei,
soube logo que era el-rei.
Quando o vi tão apressado,
meu coração trespassado
foi, que nunca mais falei.

E quando vi que descia,
saí à porta da sala,
adivinhando o que queria;
com grande choro e cortesia
lhe fiz uma triste fala.
Meus filhos pus de redor
de mim com grande humildade;
muito cortada de temor
lhe disse: — "Havei, senhor,
desta triste piedade!"

"Não possa mais a paixão
que o que deveis fazer;
metei nisso bem a mão,
que é de fraco coração
sem porquê matar mulher;
quanto mais a mim, que dão
culpa não sendo razão,
por ser mãe dos inocentes
que ante vós estão presentes,
os quais vossos netos são."

"E têm tão pouca idade
que, se não forem criados
de mim só, com saudade
e sua grande orfandade
morrerão desamparados.
Olhe bem quanta crueza
fará nisto Vossa Alteza;
e também, senhor, olhai
pois do príncipe sois pai,
não lhe deis tanta tristeza."

"Lembre-vos o grande amor
que me vosso filho tem,
e que sentirá grande dor
morrer-lhe tal servidor
por lhe querer grande bem.
Que, se algum erro fizera,
fora bem que padecera
e que estes filhos ficaram
órfãos tristes e buscaram
quem deles paixão houvera;"

"Mas, pois eu nunca errei
e sempre mereci mais,
deveis, poderoso rei,
não quebrantar vossa lei,
que, se morro, quebrantais.
Usai mais da piedade
que de rigor nem vontade,
havei dó, senhor, de mim,
não me deis tão triste fim,
pois que nunca fiz maldade!”

El-rei, vendo como estava,
houve de mim compaixão
e viu o que não olhava;
que eu a ele não errava
nem fizera traição.
E vendo quão de verdade
tive amor e lealdade
ao príncipe, cuja são,
pôde mais a piedade
que a determinação;

Que, se me ele defendera
que seu filho não amasse,
e lhe eu não obedecera,
então com razão pudera
dar-me a morte que ordenasse;
mas vendo que nenhuma hora,
desde que nasci até agora,
nunca nisso me falou,
quando se disto lembrou,
foi-se pela porta fora,

Com seu rosto lacrimoso,
com propósito mudado,
muito triste, muito cuidoso,
como rei muito piedoso,
muito cristão e esforçado.
Um daqueles que trazia
consigo na companhia,
cavaleiro desalmado,
de atrás dele, muito irado,
estas palavras dizia:

"Senhor, vossa piedade
é digna de repreender,
pois que, sem necessidade,
mudaram vossa vontade
lágrimas de uma mulher.
E quereis que abarregado,
com filhos, como casado,
este, senhor, vosso filho?
De vós mais me maravilho
que dele, que é namorado."

"Se a logo não matais,
não sereis nunca temido
nem farão o que mandais,
pois tão cedo vos mudais
do conselho que era havido.
Olhai quão justa querela
tendes, pois, por amor dela,
vosso filho quer estar
sem casar e nos quer dar
muita guerra com Castela."

"Com sua morte escusareis
muitas mortes, muitos danos;
vós, senhor, descansareis,
e a vós e a nós dareis
paz para duzentos anos.
O príncipe casará,
filhos de bênção terá,
será fora de pecado;
que agora seja anojado,
amanhã lhe esquecerá.”

E ouvindo seu dizer,
el-rei ficou muito torvado
por se em tais extremos ver,
e que havia de fazer
ou um ou outro, forçado.
Desejava dar-me vida,
por lhe não ter merecida
a morte nem nenhum mal;
sentia pena mortal
por ter feito tal partida.

E vendo que se lhe dava
a ele toda esta culpa,
e que tanto o apertava,
disse àquele que bradava:
"Minha tenção me desculpa.
Se o vós quereis fazer,
fazei-o sem mo dizer,
que eu nisso não mando nada,
nem vejo essa coitada
por que deva de morrer."

Dois cavaleiros irosos,
que tais palavras lhe ouviram,
muito crus e não piedosos,
perversos, desamorosos,
contra mim rijo se viram;
com as espadas na mão
me atravessam o coração,
a confissão me tolheram;
este é o galardão
que meus amores me deram.

 

Volte-se agora ao tema da "lenda" e da composição deste poema de Garcia de Resende. É notável que, para evitar o problema da potencial impunidade de Dom Afonso IV, pai de Dom Pedro, o poeta o tenha representado como uma figura plena de compaixão, que nem sequer queria mesmo matar Inês, e que a vê sem quaisquer culpas onde outros as queriam colocar. Não é ele o culpado pela morte, mas sim uns tais cavaleiros sem nome, provavelmente aqueles que o filho do rei viria a condenar anos mais tarde. Esta é uma espécie de interessante jogo de desculpabilização que pode levantar uma boa questão - quem foi, de facto, o responsável pela morte? Será que o rei da altura nada teve a ver com o que sucedido, contrariamente à forma como muitos o representam hoje? Na versão destas Trovas à Morte de Inês de Castro ele não é uma pessoa má, demonstra-se até compassivo, mas... qual terá sido a verdade histórica no episódio? A resposta fica para terceiros, para quem tenha estudado melhor o tema, porque aqui o que nos interessa é a lenda, e essa ora culpa o rei, ora o afasta das acusações...

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09 de Fevereiro, 2023

A lenda do Kelpie

A lenda do Kelpie, a que dedicamos as linhas de hoje, é provavelmente uma de muitas que se foi popularizando nos últimos anos. Talvez fruto da globalização de histórias mitológicas, ou talvez por ser (hoje) uma das criaturas mitológicas mais famosas da sua localização geográfica - por contraste, por exemplo, com os quase-esquecidos Spunkies - é agora um ser vagamente conhecimento por toda a Europa, e talvez mesmo por mais que um continente. Portanto, nada como lhe dedicar umas linhas no dia de hoje.

A lenda do Kelpie

Essencialmente, o Kelpie é uma criatura com capacidades de transformar a sua forma física. Nunca é explicado muito bem qual a sua forma original, mas a mais famosa das suas transformações é inegavelmente em cavalo, como mostra a imagem acima. Então, quando os habitantes da região viam um belíssimo cavalo abandonado, e notavam o quão dócil ele parecia ser, tentavam montá-lo, e o animal lançava-se automaticamente às águas, afogando aquele que o montava.

Poderá, portanto, parecer uma espécie de criatura aquática como as Sirenas, que engana as pessoas e as conduz à sua morte, mas o que esta lenda do Kelpie tem de particularmente interessante, além de muito digno de nota, é que também parecem existir histórias em que é atribuído um carácter muito diferente a este animal. Nessas, é dito que ele se sente incrivelmente só e apenas pretende ter novos amigos, mas não compreende que os seres humanos não conseguem respirar debaixo de água, conduzindo-os para a sua destruição mais por desconhecimento do que por uma qualquer espécie de maldade. Até encontrámos uma referência, supostamente credível e real de finais do século XVIII, em que ele é a vítima, mas do que um atacante, quando um homem reconheceu esta criatura e o atacou com uma espada, desfigurando-lhe a face!

 

Mas o tema de hoje ainda não se fica por estas breves considerações sobre possíveis histórias do Kelpie. Diz-se, nas histórias que o incluem, que ele mora sempre perto de algum Loch - um lago, em Português actual. Visto que algumas delas o associam ao famoso Loch Ness, isso levanta a possibilidade de que o conhecido monstro desse lago, seja, nada mais nada menos, que uma mera transformação desta outra criatura, o que pode explicar o porquê de ser tão difícil encontrá-lo. Será verdade? Será um mero reaproveitamento de uma antiga lenda local para os nossos dias de hoje? Não é fácil sabê-lo, mas fica essa sugestão de uma possível identidade secreta para aquele que é o mais famoso dos monstros aquáticos dos nossos dias...

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06 de Fevereiro, 2023

"Preso por ter cão e preso por não ter", origem e significado

Preso por ter cão e preso por não ter é uma expressão que ainda se utiliza muito hoje em dia. Ela pode parecer que faz algum sentido, até que alguém pense um pouco mais em todo o tema e se aperceba de que toda a ideia é um pouco estranha, quer dizer, porque razão seria alguém preso por não ter um canídeo? Ou pelo facto de o ter, se o pobre animal nunca tiver feito nada de errado? Não é uma ideia de fácil compreensão - ao seu verdadeiro significado, já lá iremos - mas existe uma pequena lenda que parece explicar a origem de toda a expressão.

Preso por ter cão e preso por não ter, origem e significado

Conta-se que no tempo das Invasões Francesas foi imposta uma lei segundo a qual todos os moinhos nacionais tinham de ter um cão a guardá-los. A ideia seria, supostamente, a de garantir que ninguém andava a roubar as farinhas e que pagava a totalidade dos seus impostos.

Um dia, em cumprimento dessa mesma lei, um determinado moleiro, cujo nome ou a localidade de residência já há muito foram esquecidos, obteve o seu cão, um belíssimo cão como o da imagem acima, com um nariz esbranquiçado. E tudo estava bem, mas quando os Franceses fizeram uma vistoria ao respectivo moinho, viram este cão assim mesmo, com o seu nariz branco, e supuseram que o animal andava a comer parte da farinha - e isto levou a que o seu dono fosse preso por algum tempo.

Depois, ele acabou por ser libertado e decidiu livrar-se do tal cão, face aos problemas que este lhe tinha criado. Livrou-se do animal, como pretendia, mas foi novamente visitado pelos Franceses no mesmo dia - azar dos azares! - e levado para a prisão uma segunda vez, agora pelo facto de não ter o animal que a lei lhe exigia. E, face a uma tal estranheza, terá então sido ele o primeiro a dizer "fui preso por ter cão e preso por não ter!"

 

Terá sido esta verdadeira origem da expressão "preso por ter cão e preso por não ter cão"? Será que há mesmo uma verdade histórica por detrás do que aqui considerámos pura lenda? Não sabemos, e seria agora muito difícil conseguir descobri-lo com 100% de certezas, mas o seu verdadeiro significado é compreensível - as leis devem ser criadas de uma forma lógica, com limites que se possam perceber devidamente, sob pena de acontecer às pessoas o mesmo que teve lugar com o moleiro de toda esta história. Uma pessoa não pode - ou, pelo menos, teoricamente não deveria poder - ser culpada por um mesmo acto e pelo seu contrário, e é a isso que se refere a expressão a que dedicámos as linhas de hoje!

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02 de Fevereiro, 2023

O filme animado "Kureopatora" (de 1970)

Kureopatora, que é como quem diz "Cleópatra" em Japonês, é um filme animado que foi lançado nos cinemas em 1970. Certamente que ele não estreou em Portugal, e as razões para tal são fáceis de compreender - é um filme pejado de erotismo (até os seios da heroína podem ser vistos no póster!), mas sem que seja verdadeiramente pornográfico. É, talvez até mais que tudo, um filme estranho, que parece não conseguir decidir o que quer ser.

O filme Kureopatora

A trama de Kureopatora é relativamente simples - num futuro distante, uma espécie extraterrestre ataca a terra e quer pôr em marcha algo a que chamam o "Plano Cleópatra". Então, para investigarem em que este consiste, os heróis da história tomam uma espécie de máquina do tempo para irem ao tempo da governante egípcia... e até aqui tudo bem, mas o filme está pejado de momentos eróticos, quanto mais não seja pelo facto da heroína se dispor a utilizar toda a sua sexualidade em favor da protecção do Egipto. A trama vai-se desenvolvendo com alguns momentos com piada, outros mais filosóficos, uns quantos baseado em história muito real, outros já mais ficcionais, mas... se a iconografia, as imagens que vão sendo vistas no ecrã, são quase sempre artisticamente belas, já a trama é bastante estranha, com momentos de uma sensualidade enorme a serem imediatamente seguidos por piadas que só interessam aos mais parvinhos dos espectadores, como quando um dos viajantes no tempo, encarnado num leopardo, se tenta envolver sexualmente com mulheres humanas.

Portanto, se o objectivo da aventura era descobrir-se o verdadeiro sentido do tal "Plano Cleópatra", em que consiste ele? Evidentes spoilers, mas a ideia passava pelos tais extraterrestres se disfarçarem de mulheres para poderem controlar toda a sociedade humana através da sua sexualidade. Claro que isto poderia levantar centenas de questões filosóficas importantes, mas elas são completamente excluídas do filme em favor de um erotismo muito pouco aparazível - por exemplo, uma das personagens da história é uma escrava egípcia que anda constantemente com os seios ao léu - e de dezenas de momentos secundários que parecem destoar na seriedade da trama.

 

Kureopatora é, portanto, um filme que ainda hoje parece ser conhecido pelo seu erotismo animado, mas tem uma história aborrecida. Não vale mesmo a pena que se percam quase duas horas para o ver do início ao fim. Estranho mesmo é o facto do seu produtor ter sido Osamu Tezuka, que é muito conhecido por várias outras séries animadas japonesas, no seu geral muito mais interessantes do que qualquer coisa que este filme tenha para nos oferecer...

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