A história de hoje, conhecida em Portugal e no Brasil como Maria Sangrenta, ou como Bloody Mary nos países ingleses, tem muito que se lhe diga. Isto porque não existia nas nossas culturas há apenas umas décadas, mas depois, fruto de muitos filmes americanos que mencionam alguma forma desta história, foi sendo introduzida em mais e mais culturas pelo mundo fora. O grande problema é que para isso tomar lugar, teve de existir progressivamente uma readaptação da lenda original, uma fixação do seu texto dito "canónico", que nem sempre corresponde às versões originais, tal como elas eram conhecidas no seu país original.
Existem as mais diversas histórias associadas a Maria Sangrenta ou Bloody Mary, até porque esta partilha o seu nome com um cocktail dos nossos dias, mas a mais importante de todas essas tramas é provavelmente a da origem da figura. Isto porque, no ritual que bem conhecemos dos filmes, alguém se aproxima de um espelho e repete o nome desta figura por um número pré-determinado de vezes, fomentando a apresentação de um monstro feminino que frequentemente causa a destruição do invocador. E até aí tudo bem, é provável que conheçam essa parte de toda a sua lenda, mas quem foi, na verdade, a Mary - ou Maria, para nós - original?
Ouvimos, e também fomos lendo, as mais diversas opiniões sobre a sua identidade original. A versão mais espampanante fala da Rainha Maria I da Inglaterra, outras referem Elizabeth Bathory da Hungria, com alguns a ligarem-na a La Llorona ou a "Damas Brancas" como a falsa Teresa Fidalgo. Contudo, as versões tradicionais americanas nunca vão tão longe, falando apenas de uma mulher local que, devido aos seus actos em vida, foi de alguma forma punida, ou instigadora de punições, depois da morte. Por exemplo, uma tal Mary Worth, que se crê ter vivido no século XVII, que era uma menina com a cara desfigurada por uma doença, tão gozada pelos seus companheiros que foi levada ao suicídio ou morta durante um episódio de perseguição às bruxas. Noutras versões, ela matava era os escravos que tinham escapado dos seus donos. E os nomes vão-se seguindo - Mary Whales, Mary Johnson, Mary Lou, ... - com as mais diversas histórias, que têm sempre em comum o facto de apresentarem uma menina ou mulher com um mesmo primeiro nome. Qual delas a evocada no espelho, é algo que, como bem nos diz a sabedoria popular, "venha o Diabo e escolha"...
Onde entra tudo isto no próprio cocktail que partilha o nome de Blood Mary (que, curiosamente, nunca ouvimos referido pelo nome português de Maria Sangrenta)? Também aí existem as mais diversas versões para o explicar, mas o factor mais notável é o facto da bebida conter bastante sumo de tomate, que associado à vodka lhe dá uma consistência semelhante ao sangue. Terá isto alguma coisa a ver com a história ou lenda acima, ou é apenas uma mera coincidência de nomes? Mais uma vez, isso é apenas algo que terá de ficar à pura opinião dos leitores.
Ainda, o que dizer sobre o ritual do espelho, tão presente na última parte da história de Maria Sangrenta ou Bloody Mary? A explicação mais fácil passa pela existência de vários rituais, em culturas pelo mundo fora, que insistiam na ideia de que fixar o olhar num espelho, enquanto se dizia "algo", tinha alguma propriedade oracular, como a possibilidade de uma jovem rapariga ver antecipadamente o homem com quem acabaria por casar. Existiam até procedimentos semelhantes na nossa cultura portuguesa (e eles continuavam a existir até há menos de um século...), mas o aqui relevante é que essa fixação do olhar pode, em alguns casos, levar a alucinações, sendo portanto possível que as pessoas acreditem, verdadeiramente, que tinham visto uma figura como aquela a que dedicamos as linhas de hoje.
Em suma, o que sabemos em relação à história de Maria Sangrenta, ou Bloody Mary? Na sua forma original, que já inspirou tantos filmes, ela poderá ter-se baseado numa qualquer personagem histórica americana, que pelos actos em vida - seja os que cometeu, ou que lhe foram cometidos - ficou na imaginação popular. Depois, ao longo do tempo essa lenda foi-se fundindo com outros procedimentos ligados ao Oculto da sua época, tendo daí nascido todo o ritual do espelho. E, mais recentemente, esquecido todo esse contexto original, foi gerada a forma da lenda que hoje conhecemos...