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Mitologia em Português

29 de Fevereiro, 2024

A lenda da origem da Primeira Guerra Mundial

Esta estranha lenda da origem da Primeira Guerra Mundial é muitíssimo curiosa. Ela vem dos Estados Unidos da América, onde parece ter sido contada, ainda na primeira metade do século XX, para explicar como foi possível a ocorrência de um conflito bélico tão grande.

Lenda da Origem da Primeira Guerra Mundial

Esta lenda da origem da Primeira Guerra Mundial diz então que algures no ano de 1914 um jovem funcionário do Vaticano, cujo nome já foi agora esquecido, quis conhecer os muitos segredos do local. Ele tinha ouvido dizer, por exemplo, que nas catacumbas locais podia ser encontrado uma das costelas de Adão, uma pena do Arcanjo Gabriel, e pelo menos 27 cabeças que se supunham ser a de São João Baptista. Um seu colega, mais velho e mais sábio, negou existirem ainda grandes segredos no interior dessas paredes do Vaticano, mas quis fazer o favor ao jovem e deixou-o, portanto, visitar essas zonas secretas de todo o local. O jovem assim o fez, foi vendo - sozinho - o que existia e deixava de existir por lá, até que se deparou com um pequeno recipiente contendo o nome Tenebrae Aegypti. Curioso, e talvez pelo conhecimento do Latim não ser uma das suas forças, decidiu levantar a pequena tampa... e apenas foi a tempo de ver enormes trevas a escaparem! E no dia seguinte começou então a Primeira Guerra Mundial...

 

Agora, pensando-se bem, esta lenda não é senão uma versão modernizada do mito grego de Pandora (e da sua famosa caixa), mas tem a curiosa característica de ser usada quase nos nossos dias e para tentar justificar a ocorrência de um evento, que na altura ainda se esperaria muito singular, da história moderna. Depois, e provavelmente pela ocorrência da Segunda Guerra Mundial, é uma trama que parece ter perdido o seu charme original - apenas a vimos reproduzida num único livro americano da primeira metade do século XX, e ela parece estar orgulhosamente esquecida até ao dia de hoje, em que decidimos recordá-la por aqui.

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26 de Fevereiro, 2024

A lenda do Aqueduto de Segóvia

Naquilo a que podemos chamar a vida real, sabe-se que o Aqueduto de Segóvia, localizado no centro de Espanha, foi construído pelos Romanos. É um facto pura e simplesmente irrefutável. Mas, ainda assim, não deixa de existir uma curiosa lenda espanhola sobre a sua construção.

Se procurarem na internet imagens deste famoso aqueduto, poderão facilmente aperceber-se do seu tamanho, mas o que pouca gente nota é um pormenor curioso, que pode ser visto na imagem abaixo, e que passa pela existência actual de um pequeno nicho na construção em que está colocada uma estátua da Virgem Maria, que uns dizem ser a Virgen del Carmen e outros a Virgen de la Fuencisla, sendo esta última a padroeira da cidade. De onde vem ela? É, em parte, isso que toda esta lenda local procura explicar.

A Lenda do Aqueduto de Segóvia

Para falar desta lenda, esqueça-se então os Romanos. Pense-se numa Espanha medieval em que este Aqueduto de Segóvia ainda não existia, que é uma condição necessária para toda esta história. Depois, ela conta-nos que, algures nos tempos da Idade Média, uma jovem local trabalhava para uma família nobre e tinha de, com muitas dificuldades, ir buscar água para eles todos os dias. Dia após dia, noite após noite, ela descia uma montanha, andava algumas centenas de metros, subia outra montanha, e só assim conseguia ir buscar o líquido vital, como lhe competia.

Um dia, apareceu-lhe no caminho uma estranha figura. Era o Diabo, que assim se lhe apresentou e lhe prometeu construir algo que tornaria muito mais fácil toda esta procura por água, desde que ela lhe concedesse a sua alma. Incrédula, a jovem muito pensou na proposta, até que decidiu aceitá-la mas com uma pequena ressalva - ele só lhe ficaria com a alma desde que conseguisse construir a totalidade da estrutura numa só noite.

Assim foi combinado, e o Diabo trabalhou toda a noite para construir este tal Aqueduto de Segóvia, mas à medida que o dia se aproximava ele distraiu-se um pouco. Não se tem bem a certeza do que aconteceu - as versões da lenda variam nesse ponto - mas ele lá se distraiu e deixou por construir um pequeno nicho em toda a estrutura. Face a isso, quando o sol lá nasceu, este novo aqueduto estava quase terminado mas não totalmente... e então a jovem ganhou esta espécie de aposta, não só tendo preservado a sua alma, mas também obtido uma importantíssima nova forma de transportar água para a sua cidade. E quanto ao local que o Diabo deixou por construir, em honra da Virgem, que poderá ter intercedido em favor da jovem, foi aí colocada uma das suas representações!

 

Agora, passando desta lenda do Aqueduto de Segóvia para a realidade, é evidente que tudo isto é mera ficção, até porque a estrutura em questão já existia há diversos séculos nesta cidade quando se chegou aos tempos da Idade Média, mas não deixa de ser uma curiosa forma de se tentar explicar a sua existência. O mesmo também acontece no nosso país, mais precisamente em relação a um conjunto de pontes no norte do país, que também aí se dizem ter sido construídas pelo Diabo, mas a verdade é que... estas lendas são é fruto de um tempo em que as populações já não conseguiam compreender como é que dadas estruturas antigas tinham sido feitas, o que se aplica tanto nas referidas pontes do nosso país, como em grandes estruturas no estrangeiro, como aquela a que dedicámos as linhas de hoje...

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22 de Fevereiro, 2024

A história de Maria Sangrenta (ou Bloody Mary)

A história de hoje, conhecida em Portugal e no Brasil como Maria Sangrenta, ou como Bloody Mary nos países ingleses, tem muito que se lhe diga. Isto porque não existia nas nossas culturas há apenas umas décadas, mas depois, fruto de muitos filmes americanos que mencionam alguma forma desta história, foi sendo introduzida em mais e mais culturas pelo mundo fora. O grande problema é que para isso tomar lugar, teve de existir progressivamente uma readaptação da lenda original, uma fixação do seu texto dito "canónico", que nem sempre corresponde às versões originais, tal como elas eram conhecidas no seu país original.

A história de Maria Sangrenta (ou Bloody Mary)

Existem as mais diversas histórias associadas a Maria Sangrenta ou Bloody Mary, até porque esta partilha o seu nome com um cocktail dos nossos dias, mas a mais importante de todas essas tramas é provavelmente a da origem da figura. Isto porque, no ritual que bem conhecemos dos filmes, alguém se aproxima de um espelho e repete o nome desta figura por um número pré-determinado de vezes, fomentando a apresentação de um monstro feminino que frequentemente causa a destruição do invocador. E até aí tudo bem, é provável que conheçam essa parte de toda a sua lenda, mas quem foi, na verdade, a Mary - ou Maria, para nós - original?

 

Ouvimos, e também fomos lendo, as mais diversas opiniões sobre a sua identidade original. A versão mais espampanante fala da Rainha Maria I da Inglaterra, outras referem Elizabeth Bathory da Hungria, com alguns a ligarem-na a La Llorona ou a "Damas Brancas" como a falsa Teresa Fidalgo. Contudo, as versões tradicionais americanas nunca vão tão longe, falando apenas de uma mulher local que, devido aos seus actos em vida, foi de alguma forma punida, ou instigadora de punições, depois da morte. Por exemplo, uma tal Mary Worth, que se crê ter vivido no século XVII, que era uma menina com a cara desfigurada por uma doença, tão gozada pelos seus companheiros que foi levada ao suicídio ou morta durante um episódio de perseguição às bruxas. Noutras versões, ela matava era os escravos que tinham escapado dos seus donos. E os nomes vão-se seguindo - Mary Whales, Mary Johnson, Mary Lou, ... - com as mais diversas histórias, que têm sempre em comum o facto de apresentarem uma menina ou mulher com um mesmo primeiro nome. Qual delas a evocada no espelho, é algo que, como bem nos diz a sabedoria popular, "venha o Diabo e escolha"...

 

Onde entra tudo isto no próprio cocktail que partilha o nome de Blood Mary (que, curiosamente, nunca ouvimos referido pelo nome português de Maria Sangrenta)? Também aí existem as mais diversas versões para o explicar, mas o factor mais notável é o facto da bebida conter bastante sumo de tomate, que associado à vodka lhe dá uma consistência semelhante ao sangue. Terá isto alguma coisa a ver com a história ou lenda acima, ou é apenas uma mera coincidência de nomes? Mais uma vez, isso é apenas algo que terá de ficar à pura opinião dos leitores.

 

Ainda, o que dizer sobre o ritual do espelho, tão presente na última parte da história de Maria Sangrenta ou Bloody Mary? A explicação mais fácil passa pela existência de vários rituais, em culturas pelo mundo fora, que insistiam na ideia de que fixar o olhar num espelho, enquanto se dizia "algo", tinha alguma propriedade oracular, como a possibilidade de uma jovem rapariga ver antecipadamente o homem com quem acabaria por casar. Existiam até procedimentos semelhantes na nossa cultura portuguesa (e eles continuavam a existir até há menos de um século...), mas o aqui relevante é que essa fixação do olhar pode, em alguns casos, levar a alucinações, sendo portanto possível que as pessoas acreditem, verdadeiramente, que tinham visto uma figura como aquela a que dedicamos as linhas de hoje.

 

Em suma, o que sabemos em relação à história de Maria Sangrenta, ou Bloody Mary? Na sua forma original, que já inspirou tantos filmes, ela poderá ter-se baseado numa qualquer personagem histórica americana, que pelos actos em vida - seja os que cometeu, ou que lhe foram cometidos - ficou na imaginação popular. Depois, ao longo do tempo essa lenda foi-se fundindo com outros procedimentos ligados ao Oculto da sua época, tendo daí nascido todo o ritual do espelho. E, mais recentemente, esquecido todo esse contexto original, foi gerada a forma da lenda que hoje conhecemos...

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20 de Fevereiro, 2024

"Circe", de Madeline Miller

Circe é o segundo livro de Madeline Miller, na sequência de um de que já cá falámos há algum tempo atrás. Se nesse primeiro a autora reimaginou a trama da Ilíada, nesta espécie de sequela fá-lo de certa forma para a Odisseia homérica, pegando numa das personagens da obra original e tornando-a maior. Mas já lá iremos...

"Circe", de Madeline Miller

Enquanto preparávamos estas linhas, deparámo-nos com uma curiosa distinção entre o que parecem ser as edições de Portugal e do Brasil. Numa delas a obra tem o subtítulo "Feiticeira, Bruxa, entre o Castigo dos Deuses e o Amor dos Homens", enquanto que na outra apresenta o texto "Uma Heroína, uma Feiticeira, uma Mulher que Encontra o Seu Poder". É curiosa, essa distinção entre bruxa e feiticeira, de que já cá falámos antes, mas podemos e devemos admitir que Circe, a personagem principal deste texto de Madeline Miller, é tudo o que esses dois subtítulos lhe atribuem.

 

Se nos Poemas Homéricos os leitores pouco vêm a saber sobre a intimidade e o espírito desta Circe, o que a obra de Madeline Miller faz é, essencialmente, construir uma autobiografia da figura. Para tal, toma partido de alguns mitos antigos em que ela já tinha algum papel (e.g. o mito de Cila), insere-a em momentos em que poderia ter estado presente (e.g. o mito de Astérion, o Minotauro), e acrescenta até alguns breves novas histórias, de que o possível mito de Trigon é o exemplo mais notável. Assim, a heroína passa de uma mera figura nas aventuras de Ulisses, a uma mulher. É-lhe dado um passado, um presente e um futuro (incompleto), repleto de romance e de sentimentos, que o original não tinha, ou pelo menos nunca nos é dado a perceber nas obras da Antiguidade que nos chegaram - é provável que tenham existido tragédias, hoje mais que perdidas, sobre os amores desta feiticeira.

Outro aspecto interessante da obra é que ela parece, ocasionalmente, brincar com os leitores mais informados, fazendo aqui e ali referências oblíquas a episódios mitológicos secundários, que nada impactam a trama mas que alguns poderão conseguir reconhecer. Em pelo menos um caso essa característica de Circe fez-nos sorrir, precisamente por aludir por aludir a uma história que nenhuma importância aqui tem, mas que demonstra que a autora estava bem informada do material que rodeia aquele que utilizou.

 

Vale então a pena ler esta Circe de Madeline Miller? Cremos numa resposta bastante positiva, pelo facto de, ao não ter a inflexibilidade da trama da antecessora, o tema ter permitido à autora brincar mais com as personagens e suas relações, chegando a tentar completar a trama da Odisseia com o muito pouco que ainda se sabe sobre a forma original desses episódios. Este é, mais do que um livro mitológico, um romance baseado nas personagens da Mitologia Grega, que por isso até poderá agradar a quem tem menos interesse nos mitos e lendas.

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18 de Fevereiro, 2024

A origem do nome do Jogo do Galo

Presume-se que todos os leitores e leitoras conheçam o chamado Jogo do Galo, mas o mistério de hoje prende-se com o seu nome em Portugal. Isto porque, se no Brasil o mesmo jogo tem o nome de "Jogo da Velha", possivelmente em homenagem às idosas inglesas que outrora muito o apreciavam durante as suas conversas nas tardes do famoso chá, de onde vem o estranho nome que o mesmo divertimento, tão simples de jogar, tem no nosso país?

 

O nosso Jogo do Galo parece ser tão antigo como a história da humanidade. Parece ter existido no Antigo Egipto, no tempo dos Romanos, na Idade Média, e aí por diante... mas sem que se saiba bem que regras foi tendo. Ao contrário de, por exemplo, o Xadrez, este parece ter sido sempre um jogo do povo e para o povo, em virtude da sua simplicidade de regras, que na forma mais simples nem sequer requer qualquer espécie de tabuleiro físico ou peças. Mas afinal, onde entra o tal galo, aludido no título da versão portuguesa do jogo?

A origem do nome do Jogo do Galo

Sobre essa possível origem do nome do Jogo do Galo, não é fácil descobrir quando ele primeiro entrou no nosso vocabulário nacional, mas... pelo menos desde inícios do século XX que na cultura inglesa existem máquinas, como as das feiras populares e arcadas, em que um opositor (humano) podia jogar contra um galináceo, num confronto que entre eles ainda hoje tem o nome de Bird Brain. Dado o facto de em outros tempos os casinos terem sido tão populares no nosso país, é provável que tenha sido por aí que este nome entrou na nossa cultura, pelo facto de existirem algumas versões do jogo em que o animal tinha esse papel principal.

 

Mas... porquê um galo, ou uma galinha? Porque não um cão, um gato ou uma vaca? Também essa possível origem anglófona para o nome do nosso jogo contribui para o explicar - como pode ser visto em muitos filmes ingleses, há entre esse povo a provocação de chamar chicken (que é como quem diz entre nós "mariquinhas") a alguém que se pensa ser muito pouco corajoso... com algumas dessas máquinas de jogo de Bird Brain até a fazerem a piada, "She's not chicken, are you?" (i.e. "Ela não é mariquinhas, tu és?"), uma ideia igualmente apoiada pelo facto de este animal, seja na forma feminina ou masculina, não ser propriamente imponente ou conhecido pela sua grande sabedoria.

Agora, é provável que estejam a pensar... se as galinhas, ou os galos, nem são visto como assim tão inteligentes, quão difícil seria derrotá-los neste jogo? Na sua versão actual - porque este jogo, com galinha incluída, ainda existe na cultura inglesa, como podem ver no vídeo acima - existe alguma batotice envolvida, com um computador a apontar a um animal treinado que quadrado ele deve "escolher", mas na forma tradicional existiam pelo menos dois factores que ajudavam imenso à vitória deste opositor. Não só ele jogava sempre primeiro, mas num caso de empate físico - uma circunstância muito frequente no Jogo do Galo, ou da Velha, como sabem - a vitória era concedida à ave, constituindo uma derrota e ausência de qualquer prémio para o jogador humano... ou seja, mesmo sem a ajuda de qualquer batotice, o animal tinha sempre maiores chances de vitória!

 

Mas deixando essas outras histórias de lado, será mesmo esta a verdadeira origem do nome do Jogo do Galo? Não o conseguimos afirmar com cem porcento de certezas, mas pelos factores já apresentados acima é muito provável que o nosso nome para este jogo famoso internacionalmente tenha, de facto, derivado das versões inglesas em que ele era jogado contra um galo ou galinha, e dos quais encontrámos provas fotográficas de existência pelo menos desde inícios do século XX. Se os galos e galinhas já o jogavam numa forma mais simplificada e nessa mesma cultura anglófona, ou até mesmo na nossa, antes do ano de 1901, é algo que não conseguimos descobrir em tempo útil...

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14 de Fevereiro, 2024

A lenda de Dom Thedon e Ardínia

Em dia que se supõe dedicado ao amor decidimos que teríamos de aqui contar uma história amorosa, e optámos pela de Dom Thedon e Ardínia. Na verdade ela já estava planeada há algum tempo, desde que aqui falámos de Maria Coroada e a Granja do Tedo, por ser a lenda utilizada no local para justificar o nome da povoação, mas chegou finalmente a hora de ela ser recordada por aqui.

A lenda de Dom Thedon e Ardínia

Conta então esta lenda que naquele sempre vago Tempo dos Mouros viveu nesta zona, provavelmente até no castelo de Lamego, uma princesa moura de nome Ardínia. Como é comum em histórias como estas, ela apaixonou-se por um cavaleiro cristão de nome Thedon (ou Tedo, ou Thedo, entre outras variantes). O sentimento da jovem foi partilhado pelo cavaleiro, e então eles fugiram para o Mosteiro de São Pedro das Águias, a alguns quilómetros de distância, onde casaram secretamente.
E tudo estaria bem se a história acabasse por aqui, nos mais plenos amores dos seus heróis, mas o pai de Ardínia depressa soube da ocorrência e decidiu procurar pela filha. Face ao grande crime que ela tinha cometido, o da conversão ao Cristianismo, ele sentiu que tinha de a encontrar. E fê-lo, matando-a na sequência do seu crime, e atirou o seu corpo a um rio próximo. Depois, Thedon, sabendo da morte da sua amada, atacou os soldados do pai desta, mas eles eram demasiados para os conseguir vencer. Também o mataram a ele, deitando igualmente o seu corpo ao rio local, que por toda esta bela desventura passou a ser conhecido como o Rio Tedo.

 

Lendas como esta são muito comuns em todas as regiões de Portugal - relembrem-se, a puro título de exemplo, as lendas do belo castelo de Almourol - e normalmente são utilizadas para se justificar o nome de algum elemento local. Aqui, neste caso em particular, claro que o nome de "Tedo" não poderá deixar de nos soar invulgar, e daí a necessidade da introdução na história de um cavaleiro com um nome igualmente pouco vulgar. "Pouco vulgar", esclareça-se, no mundo real, mesmo naquele suposto tempo da Idade Média, porque nos romances de cavalaria de outros tempos abundam nomes claramente fictícios... e talvez também este tenha nascido de um deles? Não encontrámos nenhuma prova a favor ou em contrário, mas nunca se sabe.... E por isso, os amores de Dom Thedon e Ardínia são, no mínimo, uma forma local de se explicar o nome de um rio, sem que se saiba que verdade há por detrás de toda a sua história.

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12 de Fevereiro, 2024

O Salmo de Pamoun o Boi

Pamoun o Boi é uma daquelas figuras que o tempo já há muito fez esquecer. E, na verdade, não fosse o salmo que apresentamos traduzido abaixo, de origem maniqueísta, e ele estaria agora completamente esquecido. Comece-se, portanto, por apresentar este curioso salmo, antes de discursar um pouco mais sobre ele:

O Salmo de Pamoun o Boi

Oiçam um boi, o choro de Pamoun o boi. Piedade, que faço o mundo chorar!
O que me deram os filhos da terra?
Agarraram machados de dois gumes e puseram-me nos pântanos,
Derrubaram árvores largas e até as finas.
Não recuaram, com a árvore larga cortaram um arado,
E da fina fizeram uma agulha afiada, depois levaram-na a um artista;
Ele, com a própria mão, moldou um jugo, colocou-o no meu pescoço,
E prendeu o arado atrás de mim.
Usaram a agulha para perfurar as minhas costelas,
Depois levaram-me ao filho do matador, o criador de bois.
O filho do matador despedaçou-me, espalhou-me por tendas estrangeiras,
Pendurou-me em mercados distantes,
Atirou os meus ossos a animais errantes à vista de todos.
Libertem-me dos donos; eles não me compram,
Queimam até o que está dentro de mim.
Não batam em Pamoun, o boi.
Agitem os vasos espirituais em vós mesmos.
Farei com que se sentem num lugar por onde passarão gerações,
Plantando, retribuindo-vos e dando-vos a vida.
A liberdade é a herança dos meus parentes no grande dia.
Amém.

O que quer tudo isto dizer? Não sabemos se este tal Pamoun o Boi alguma vez existiu, ou se era uma figura meramente retórica, mas por este salmo escrito na primeira pessoa, a sua história é-nos apresentada de uma forma bastante íntima. Até quase que se sente o sofrimento do animal, pela forma como este descreve a sua vida. Se considerarmos todo o episódio no contexto das crenças de Elkasai, predecessor de Mani, é possível perceber que, no mínimo, este curioso salmo de outros tempos tentava incentivar ao não-consumo de carne animal, aparentemente sugerindo como alternativa o consumo de (tudo?) aquilo que podia ser plantado.

 

Ao mesmo tempo, toda a ideia por detrás deste Salmo de Pamoun o Boi permite-nos ver algo que está muito perdido nos nossos dias. É mesmo por isso que decidimos reproduzi-lo aqui, por essa ideia de que um salmo religioso não tem de ter sempre e somente intervenientes puramente religiosos. Aqui, a figura essencial não é Jesus, um dos seus santos, ou mesmo até Buda (o que até poderia acontecer, como acontece, em outros salmos maniqueístas...), mas um simples animal, celebrado como um ser quase humano, capaz de sofrimento e apto a nos convencer a que não o comamos. Com exemplos assim, talvez fossem menos as pessoas que comem carne animal, não vos parece, caros leitores?!

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09 de Fevereiro, 2024

O misterioso elmo do Mosteiro dos Jerónimos

Se já cá falámos anteriormente sobre o Mosteiro dos Jerónimos, este também é um local que ainda esconde muitos outros segredos. O de hoje, de aquele que poderia ser apenas e somente um mero elmo decorativo, parece ser muito pouco conhecido nos dias de hoje, ao ponto dos visitantes nunca serem informados de toda esta história mesmo aquando das visitas guiadas. Será intencional? Já lá iremos...

O Mosteiro dos Jerónimos e o mistério do elmo

Como bem se sabe, a estrutura original do Mosteiro dos Jerónimos começou a ser construída ainda nos primeiros anos do século XVI. É difícil saber como ela foi sendo alterada ao longo dos séculos - relembre-se aqui, por exemplo, o seu pobre estado em finais de 1878 - mas existem, como dificilmente poderia deixar de ser, elementos que se foram mantendo. Um dos mais curiosos é a pequena imagem de um elmo que pode ser visto acima de uma porta. Ele é difícil de encontrar, o que até adensa um pouco o seu mistério, mas quem for capaz de o fazer poderá notar que ele está parcialmente danificado, quebrado. O que é estranho, já que o monumento foi sendo extensamente renovado ao longo do tempo, mas o elmo lá se encontra, assim mesmo, hoje como antes.

 

A ausência de renovação parece, no entanto, intencional. Isto porque o incomum elmo tem uma pequena lenda com ele relacionada - diz-se que ele quebrou a 4 de Agosto de 1578, no dia da fatídica Batalha de Alcácer-Quibir, mais ou menos na altura do desaparecimento do rei Dom Sebastião... e que somente voltará ao seu estado original na data do retorno desse verdadeiro monarca de Portugal, seja ela qual for. Portanto, visto que este elmo do Mosteiro dos Jerónimos permanece quebrado, de um ponto de vista lendário somos levados a acreditar que o rei ainda não voltou, mas reparar-se esta decoração - e é difícil acreditar que isso não tenha sido feito por meras razões de desatenção - quebraria o verdadeiro encanto de toda a lenda.

 

Se existem muitas outras lendas que associam este mesmo Dom Sebastião ao Mosteiro dos Jerónimos - já aqui falámos de algo muito mais notável quando abordámos o tema da origem do Sebastianismo, através de um túmulo do monarca no mesmo local - o que esta tem de muito especial é o facto de se tratar de uma história com vestígios físicos, que até podem ser vistos na primeira pessoa pelos visitantes. Contudo, já poucos os procuram... e a lenda ali permanece, dia após dia, à espera de quem a quiser redescobrir. Daí não apresentarmos uma imagem desse misterioso elmo neste artigo, apenas para deixarmos o convite, a quem assim o desejar, de um destes dias ir procurá-lo no famoso monumento nacional...

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05 de Fevereiro, 2024

Qual o verdadeiro símbolo da Medicina?

À partida, falar sobre um verdadeiro símbolo da Medicina não deveria ter muito para dizer. Basta, por exemplo, abrir o site na internet da Ordem dos Médicos e aí pode ser encontrado, de uma forma mais ou menos estilizada, um bastão com uma cobra em seu redor. Mas depois, ao abrirmos um recurso como o site da Ordem dos Farmacêuticos, também aí pode ser encontrada uma representação semelhante, uma árvore com uma cobra em volta. E, em outros lugares, pode ser encontrado algo de muito parecido, mas com a presença de duas cobras... portanto, qual é o correcto? Aquele que pensamos ser ou, como no caso do Juramento de Hipócrates, andamos é todos a ser enganados?

O verdadeiro símbolo da Medicina

Na imagem acima, muito relevante para este tema do verdadeiro símbolo da Medicina, podem ser encontradas essas duas representações essenciais - uma espécie de bastão com asas no topo e duas serpentes em seu redor; e um simples bordão com uma só serpente aí enrolada. Variam não só na presença de asas, mas também no próprio número de répteis, como é óbvio... e são precisamente esses elementos que nos permitem descobrir o significado de cada um deles. Para o primeiro, as tais asas são um atributo do deus Hermes (o Mercúrio dos Romanos), que também as tem nas suas sapatilhas, enquanto que as duas serpentes são, em muitos mitos da Antiguidade, um símbolo da vida e da morte, como nos casos do mito de Tirésias, ou de um Glauco que foi trazido de volta à vida pelo poder de uma erva que apenas dois destes animais conheciam.

Para o segundo, a rudeza do bordão permite compreender que ele era utilizado para andar - não para esvoaçar, ou coisas semelhantes, como o anterior - enquanto que a serpente é aqui um símbolo para os venenos e suas curas, como no caso dos mitos de Orfeu e Eurídice ou Filoctetes. É, por isso, um símbolo do deus Asclépio (o Esculápio dos Romanos).

 

Os símbolos são parecidos, tanto ao nível das representações como da sua simbologia, mas se recordarmos que Hermes era o deus encarregado de levar os mortos para a sua morada eterna, o seu bastão com asas poderia sugerir, de uma forma tão errónea quanto assustadora, que os médicos têm completo poder sobre a vida e a morte. Por contraste, se o verdadeiro símbolo da Medicina for o segundo, o normalmente associado com Asclépio, sugere-se apenas a ideia do uso de drogas curativas, com poder limitado, até porque esta mesma figura, quando ainda era um mero ser humano, foi morta por Zeus por ter tentado trazer de volta à vida um falecido - Capaneu, Órion, as opiniões divergem.

 

Portanto, se os dois símbolos acima são mesmo muito parecidos, o verdadeiro símbolo da Medicina só pode ser o segundo, não só por ter estado associado desde o início a um deus desta área de conhecimento - Asclépio / Esculápio - mas por toda a simbologia mitológica de uma serpente VS duas serpentes. Desacompanhado, este réptil é um símbolo da preservação da vida pelas drogas (legais, acrescente-se hoje), enquanto que acompanhado e neste contexto ele é... estranhamente, um puro símbolo da divindade Hermes / Mercúrio, mais conhecido hoje na sua faceta de deus do Comércio, já que a sua tarefa de psicopompo - transportador das almas dos falecidos, se preferirem - já foi esquecida há muitos séculos atrás.

 

Mas, de uma vez por todas, simplifique-se tudo isto muito mais - se nada perceberem, nem quiserem vir a perceber, de Mitologia Grega ou Romana, como podem saber qual é o verdadeiro símbolo da Medicina? Basta que pensem na presença - ou ausência - das pequenas "asinhas" nessa representação. Se o símbolo as tiver, ele não é o da Medicina, mas sim o de um antigo deus hoje ligado quase exclusivamente ao Comércio, e que em representações na cultura popular dos nossos dias até tem sempre consigo umas sandálias ou sapatos alados!

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02 de Fevereiro, 2024

"A Canção de Aquiles", de Madeline Miller

A Canção de Aquiles, também conhecida por O Canto de Aquiles, da autoria de Madeline Miller, é um daqueles livros que tem os seus pontos positivos e negativos. Por um lado, ele traz uma versão da Guerra de Tróia para os nossos dias, construindo uma trama que tem por herói Pátroclo e por pano de fundo a paixão deste pelo herói titular. Por outro, existem alguns aspecto da obra que podem desiludir quem já conheço, ou quer vir a conhecer bem, essa guerra.

"A Canção de Aquiles", de Madeline Miller

Uma edição em português, cuja capa reproduzimos acima, define sucintamente esta obra como "Uma releitura da Ilíada, em que a glória de um semideus encontra o amor de um príncipe". Repita-se, portanto, que é mesmo essa a grande ideia por detrás do texto, uma adaptação do famoso poema de Homero para dar mais ênfase ao amor de Pátroclo por Aquiles. E, de facto, A Canção de Aquiles faz isso mesmo, mas quem já conhecer a história acabará por se deparar com um problema curioso - a autora conta a história readaptando as informações dos Poemas Homéricos, mas para o fazer esquece a existência de outros textos, o que a leva a ter de comprimir muito a trama em alguns pontos. Por exemplo, os primeiros anos da guerra não falam nem da belíssima história de Protesilau, nem de Palamedes, e mesmo a aventura com o jovem Troilo, que ficaria muito bem na trama, é aqui reduzida a quase nada. E isso, queiramos ou não, só pode desiludir quem procure algo mais informativo.

 

Depois, A Canção de Aquiles pode ser resumida em dois momentos. O primeiro tem lugar até à morte da personagem principal, Pátroclo (e isto não conta propriamente como um "spoiler"...). O segundo, que na edição a que tivemos acesso ocupa menos de 50 páginas, resume de forma muitíssimo breve todo o resto da Guerra de Tróia, ora trocando a ordem de alguns eventos, ora aproveitando muito mal algumas belas oportunidades que vão tendo lugar pelo caminho - como acontece quando refere os mitos de MémnonPentesileia... o que é mesmo uma pena, porque sendo então Aquiles já a personagem principal, o primeiro poderia recordá-lo da sua mortalidade, e a segunda podia ter levado a um conjunto de considerações sobre a natureza do amor que não são aproveitas.

O Canto de Aquiles, de Madeline Miller

Quer isto dizer que a A Canção de Aquiles (ou O Canto de Aquiles, ou The Song of Achilles), é uma obra má? Não, não é verdade. Encontrámos vários leitores e leitoras que gostaram dela, mas pode é ser definida como uma adaptação da Guerra de Tróia para quem quer uma trama mais simples, sem um Catálogo de Navios e coisas semelhantes, e com alguns momentos românticos. É, portanto, uma obra sobre Mitologia Grega para quem percebe pouco do tema, e que nessa tentativa de o simplificar, acaba também por perder boas oportunidades de mostrar aos leitores temas com que estes raramente se iriam deparar, como a potencial paixão do herói por Troilo, que fora das Clássicas poucos conhecem.

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