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Mitologia em Português

12 de Fevereiro, 2024

O Salmo de Pamoun o Boi

Pamoun o Boi é uma daquelas figuras que o tempo já há muito fez esquecer. E, na verdade, não fosse o salmo que apresentamos traduzido abaixo, de origem maniqueísta, e ele estaria agora completamente esquecido. Comece-se, portanto, por apresentar este curioso salmo, antes de discursar um pouco mais sobre ele:

O Salmo de Pamoun o Boi

Oiçam um boi, o choro de Pamoun o boi. Piedade, que faço o mundo chorar!
O que me deram os filhos da terra?
Agarraram machados de dois gumes e puseram-me nos pântanos,
Derrubaram árvores largas e até as finas.
Não recuaram, com a árvore larga cortaram um arado,
E da fina fizeram uma agulha afiada, depois levaram-na a um artista;
Ele, com a própria mão, moldou um jugo, colocou-o no meu pescoço,
E prendeu o arado atrás de mim.
Usaram a agulha para perfurar as minhas costelas,
Depois levaram-me ao filho do matador, o criador de bois.
O filho do matador despedaçou-me, espalhou-me por tendas estrangeiras,
Pendurou-me em mercados distantes,
Atirou os meus ossos a animais errantes à vista de todos.
Libertem-me dos donos; eles não me compram,
Queimam até o que está dentro de mim.
Não batam em Pamoun, o boi.
Agitem os vasos espirituais em vós mesmos.
Farei com que se sentem num lugar por onde passarão gerações,
Plantando, retribuindo-vos e dando-vos a vida.
A liberdade é a herança dos meus parentes no grande dia.
Amém.

O que quer tudo isto dizer? Não sabemos se este tal Pamoun o Boi alguma vez existiu, ou se era uma figura meramente retórica, mas por este salmo escrito na primeira pessoa, a sua história é-nos apresentada de uma forma bastante íntima. Até quase que se sente o sofrimento do animal, pela forma como este descreve a sua vida. Se considerarmos todo o episódio no contexto das crenças de Elkasai, predecessor de Mani, é possível perceber que, no mínimo, este curioso salmo de outros tempos tentava incentivar ao não-consumo de carne animal, aparentemente sugerindo como alternativa o consumo de (tudo?) aquilo que podia ser plantado.

 

Ao mesmo tempo, toda a ideia por detrás deste Salmo de Pamoun o Boi permite-nos ver algo que está muito perdido nos nossos dias. É mesmo por isso que decidimos reproduzi-lo aqui, por essa ideia de que um salmo religioso não tem de ter sempre e somente intervenientes puramente religiosos. Aqui, a figura essencial não é Jesus, um dos seus santos, ou mesmo até Buda (o que até poderia acontecer, como acontece, em outros salmos maniqueístas...), mas um simples animal, celebrado como um ser quase humano, capaz de sofrimento e apto a nos convencer a que não o comamos. Com exemplos assim, talvez fossem menos as pessoas que comem carne animal, não vos parece, caros leitores?!

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