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Mitologia em Português

29 de Abril, 2024

A lenda da Penha dos Namorados (em Espanha)

Se o nome de Penha dos Namorados não é pouco vulgar, a lenda que aqui contamos hoje provém de Espanha, de um local próximo da cidade de Antequera. É uma história oral de génese medieval, que foi passando de boca em boca até primeiro ter sido posta por escrito no século XV. Reencontrámo-la entre os escritos de Andrea Navagero, que a resume com as palavras que traduzimos abaixo:

A Lenda da Penha dos Namorados

Aproximadamente a metade do caminho entre Antequera e Archidona passa-se junto de um monte muito áspero, chamado a Penha dos Namorados. O seu nome vem de dois apaixonados, um cristão de Antequera e uma moura de Archidona, os quais, tendo vivido escondidos muitos dias naquele monte sem ser encontrados, finalmente o foram, e vendo que não podiam escapar sem ser capturados, nem podendo suportar que os separassem para viverem um sem o outro, decidiram morrer juntos, e encurralados na penha mais alta do monte, após muitas lágrimas e lamentos pela sua má fortuna, vendo-se os perseguidores já muito próximos, abraçaram-se com carinho e, unindo os seus rostos, precipitaram-se da altíssima penha, dando assim nome ao monte.

Esta é, portanto, uma lenda de paixões entre Mouros e Cristãos, muito comuns até do nosso lado da fronteira (lembrem-se, por exemplo, as Mouras Encantadas, uma das de Almourol, e assim por diante...), cuja trama levou ao nome do local. Não sabemos, nem se conseguiu descobrir, até que ponto a lenda terá algum fundo de verdade - e, de facto, até a sua versão mais antiga afirma desconhecer o nome do herói, sabendo apenas que ele era natural de Espanha - mas o facto consumado é que o local já tinha este nome na Idade Média e já era justificado com a história acima.

 

Mas... mesmo assim, um outro mistério paira sobre esta Penha dos Namorados espanhola. Quem prestar atenção ao local poderá notar que ele tem a forma de um rosto quase humano. Será uma espécie de gigante de outros tempos? Será que também essa forma humana tem algum lenda associada? Neste caso específico, e muito curiosamente, a resposta parece ser completamente negativa - é provável que a lenda acima, em virtude da sua grande fama, tenha impedido a formação de outras histórias igualmente associáveis ao local, e então o rosto quase humano lá assim permanece, sem um relato que o possa explicar, pela sua forma secundária em relação aos amores medievais de dois jovens de religiões diferentes...

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25 de Abril, 2024

O mito do Nurikabe

O Nurikabe conta-se entre um conjunto de criaturas mitológicas do Japão que, colectivamente, são conhecidas por yokai. Já cá falámos de algumas delas antes, como o Amabie (que protege contra o Covid-19), a famosa Kitsune, ou os Tsukumogami, mas também existem muitas mais, ao ponto de ser difícil detalhar todas elas apenas num breve punhado de linhas. Ainda assim, os tais yokai podem ser divididos em duas grandes categorias - na primeira seriam colocadas as criaturas para as quais existem verdadeiras lendas, muitas vezes em número considerável; enquanto que na segunda se poderiam apresentar aquelas cuja existência apenas pode ser inferida de manuscritos ilustrados nipónicos, talvez por se tratarem de figuras que apenas existiam na imaginação popular, como a nossa Cuca ou Coca portuguesa. A criatura a que dedicamos as linhas de hoje teria, necessariamente, de cair nessa segunda categoria.

Assim, o Nurikabe não é nem mais nem menos que uma espécie de parede personificada. Não conseguimos encontrar nenhuma história em que esta criatura tenha uma intervenção real, directa, ou em que fale com alguém, mas é frequentemente representada como invisível - ou, pelo menos, com uma forma em que a sua presença nunca é detectada - e capaz de impedir o progresso físico de alguém que se desloca para algum lado. Ou seja, se estiverem a passear em algum lado e, de repente, seja por meios físicos ou psicológicos, sentirem que não é uma boa ideia continuar por esse caminho, na cultura tradicional japonesa existiam algumas pessoas que atribuíam esse curioso sentimento a uma criatura, aquela a que dedicamos as linhas de hoje.

Infelizmente, pouco ou nada mais alguma vez nos é dito sobre ela. Existem pelo menos duas representações significativamente distintas para a sua figura - aquela que apresentámos ali em cima, e uma em que se assemelha ao cão-dragão de The Neverending Story - mas com excepção de toda a ideia por detrás desta criatura bloquear os caminhos dos viajantes, as fontes consultadas mais nada alguma vez nos dizem sobre ela... e não é, aparentemente, por falta de interesse dos autores desses manuscritos, mas apenas e somente porque nas épocas em que estes "bichos" começaram a ser representados, a história por detrás de cada criatura era demasiado secundária face à sua própria ilustração. E isso levou a todo um conjunto de seres que não podem deixar de nos intrigar (fica prometido que voltaremos a esse tema um outro dia), mas sobre os quais, pela própria natureza das fontes em que constam, os próprios mistérios são apenas naturais.

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22 de Abril, 2024

"De concubitu Martis et Veneris", de Reposiano

Dizem alguns memes que menos de 10% das obras produzidas na Antiguidade Clássica nos chegaram, e este De concubitu Martis et Veneris, da autoria de um tal Reposiano, quase parece ter sofrido esse destino. Nada se sabe sobre o seu autor - é provável, com base no conteúdo e forma desta sua produção literária, que tenha vivido por volta dos séculos III ou IV da nossa era - mas o seu tema é muito bem conhecido, e trata-se do adultério de Vénus com Marte (ou Afrodite com Ares, se preferirem os nomes originais gregos), um episódio mitológico cuja referência mais antiga vem ainda dos Poemas Homéricos, onde ocorre, mais precisamente, no livro oitavo da Odisseia.

De concubitu Martis et Veneris, de Reposiano

Já aqui aludimos brevemente a esse mito, quando falámos da transformação de Aléctrion, mas dado o contexto ele merece aqui ser reapresentado - a bela Vénus, deusa do amor, era casada com o feio deus Vulcano, mas ocasionalmente traía-o com o pujante e belo Marte, deus da guerra. Um dia, o deus Apolo apercebeu-se destas traições e alertou o encornado para toda a ocorrência. Este último, criando uma espécie de rede mágica, apanhou depois os dois amantes nos seus amores e expôs todo o adultério aos outros deuses... que, muito curiosamente, parecem ter gozado mais o traído do que os seus dois traidores!

 

Este poema de Reposiano, hoje conhecido sob o nome latino De concubitu Martis et Veneris, apresenta então o famoso episódio mitológico mas parece focar-se maioritariamente em descrições do que envolve a cena da traição e numa questão bastante curiosa - se nem mesmo Vénus, a deusa do amor e mãe de Cupido, foi capaz de conduzir em segredo uma relação amorosa, que esperança haveria para cada um de nós? Nunca é dada uma verdadeira resposta ao problema - para quem até tiver essa curiosidade, ou especialmente se andar actualmente a trair a sua cara-metade - mas, de certa forma, mais do que apenas recontar toda a história do poema de Homero, o autor parece introduzir na trama uma influência adicional de Cupido, para demonstrar que nem a própria mãe estava imune aos encantos das flechas do seu rebento e de todos os problemas que estas traziam aos mortais e deuses.

 

Este De concubitu Martis et Veneris não é um poema particularmente interessante, mas mereceu aqui ser referido pelo seu conteúdo mitológico e pela forma como o famoso tema foi tratado num período mais tardio do Império Romano, por um poeta sobre o qual nada significativo sabemos hoje.

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19 de Abril, 2024

O Massacre de Lisboa de 1506

Falar do Massacre de Lisboa de 1506 é, hoje e talvez mais que tudo, falar de um episódio da história de Portugal que está agora quase esquecido. Isso até faz um certo sentido - tendemos a definir-nos como um "povo de brandos costumes", entre o qual os massacres são raros... - mas não deixa de ser um episódio bastante chocante da história nacional, que também ficou conhecido como o Pogrom de Lisboa (para quem o desconhecer, um pogrom é um "movimento popular violento organizado contra uma comunidade judaica", como informa o dicionário da Priberam) ou a Matança da Páscoa de 1506 (em virtude da altura do ano em que teve lugar). Agora, poderíamos, como é habitual, recordar aqui todo o episódio pelas nossas próprias palavras, mas decidimos fazer algo um pouco diferente - vamos contá-lo aqui com as mesmas palavras que outrora encontrámos e transcrevemos de um antigo documento legal presente na Torre do Tombo:

O Massacre de Lisboa de 1506

Em Domingo de Pascoela, 19 de Abril de 1506, pela manhã, estando El-Rei D. Manuel em Avis por causa da peste, começou em Lisboa o horrível motim e matança dos Cristãos Novos, a que deu origem certo reflexo de Sol que se derivava no Santo Cristo da Igreja de S. Domingos, que uns diziam ser milagre, e outros negavam que o fosse.
Fr. João Moucho, natural de Évora, e Fr. Bernardo Aragonez, frades do mesmo convento, foram o principal incentivo daquela emoção, porque com diabólico furor sairam a pregrar pelas ruas contra os Judeus a incautos.
Muitos amotinados ouve, em que entravam bastantes estrangeiros, que carregados de roubos navegaram para suas terras. O número de vítimas, lançadas ao fogo, vivas umas, e mortas outras, passou de duas mil, de todos os sexos e idades. A desordem demorou três dias. El-Rei acudiu severo a punir tamanhas atrocidades, e muitos culpados sofreram a última pena, não escapando os dois frades, que morreram queimados vivos. Todos os outros foram postos na minha do castelo, e as chaves do Convento entregues ao Prior de Santa Justa. A cidade perdeu os seus foros, que recuperou depois.
Esta foi a primeira perseguição directa que sofreram os Judeus em Portugal, e que aumentou o ódio contra eles. O que pinta a eles se haverem tornado ricos pelas suas traficâncias, e por consequência soberbos e orgulhosos; defenderem com audácia os mistérios da sua fé; e talvez olharem com desprezo os Cristãos. Tudo isto chamou contra si a Inquisição, que tão barbaramente os tiranizou.

Em suma, num tempo em que grandes pestes afectavam o nosso país, um pequeno "milagre" parece ter ocorrido no interior da belíssima Igreja de São Domingos, em Lisboa. Os Cristãos presentes pensaram logo tratar-se de um verdadeiro milagre, um Cristão Novo - ou seja, um ex-Judeu, que ainda era visto com desconfiança - atreveu-se a afirmar o contrário, e esta demonstração da sua pouca fé parece ter acendido um rastilho de ódio que levou à morte de milhares de Judeus nos dias em que se seguiram, neste chamado Massacre de Lisboa de 1506. Os culpados não escaparam à Justiça, mas - e como o texto indica - foi este episódio histórico um principal impulsionador da (então futura) presença da Inquisição em Portugal, onde viriam a ser condenados e a falecer muitos outros Judeus.

 

Agora, se este Massacre de Lisboa de 1506 está hoje quase completamente esquecido, quem for à cidade ainda poderá encontrar, muito próximo da Igreja de São Domingos e do local em que estes episódios outrora tomaram lugar, uma pequena homenagem aos que faleceram durante o episódio. Num semicírculo adornado com uma Estrela de David constam as seguintes palavras, que aqui recordamos ao terminar o tema de hoje:

1506-2006
Em memória dos milhares de Judeus vítimas da intolerância e do fanatismo religioso assassinados no massacre iniciado a 19 de Abril de 1506 neste largo.
5266-5766 [*]

 

*- Estas são as mesmas datas já apresentadas acima, mas convertidas para o calendário judaico.

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14 de Abril, 2024

Um breve lenda de Amitaba

A lenda de Amitaba conta-se entre muitas outras associadas ao Budismo e que são quase desconhecidas no nosso país. Assim, falar sobre ela implica uma breve introdução ao tema, com algumas informações que poucos parecem conhecer em Portugal. Há já alguns anos contámos aqui os elementos essenciais da história de Buda, ou de Sidarta Gautama, a figura fundadora do Budismo. Contudo, se esse homem foi o fundador de uma famosa religião, também existem muitas outras histórias ligadas a ela. Algumas delas limitam-se a adicionar elementos à história desse fundador - relembre-se, por exemplo, o que se diz sobre a mãe de Buda - enquanto que outras nos relatam as aventuras de várias outras figuras budistas, algo que podemos considerar como uma espécie de santos do Budismo - relembre-se, também a título de exemplo, aquele nosso famoso "Buda Gordo"; ou Bodidharma, o criador do chá. Nesse seguimento, existem quase infinitas lendas que podemos associar aos "santos" dessa religião, cada qual com elementos muito únicos, como a história de hoje nos poderá fazer ver.

A lenda de Amitaba

No seu cerne, Amitaba foi um santo budista como muitos outros, mas o que o distingue de figuras semelhantes é o facto de ele ter sido o criador daquilo que se chama o "Budismo da Terra Pura". Sobre ele, conta-se então que antes de atingir o seu Nirvana ele prometeu que todos aqueles que o evocassem no futuro, por uma única vez que fosse no decurso das suas vidas, poderiam mais tarde vir a renascer na tal Terra Pura, uma espécie de paraíso terreno em que tudo segue os preceitos da sua religião. Para tal, bastaria apenas e somente dizer uma única e breve frase - 南无阿弥陀佛 em Chinês, 나무아미타불 em Coreano, 南無阿弥陀仏 em Japonês ou नमोऽमिताभाय बुद्धाय em Sânscrito... que é como quem diz "Refugio-me no Buda Amida" ou "Refugio-me em Amitaba"; na versão aprendida por um dos nossos colegas no Japão, a frase pode até ser apenas Namu Amida Butsu. O processo, na sua vertente mais formal e religiosa, pode ser como mostra este vídeo:

Face à simplicidade do processo, fica o convite para que quem tem interesse nestas coisas o tente... e depois, um dia no futuro, nos diga se funcionou ou não!

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11 de Abril, 2024

Sobre Simão Gomes, o Sapateiro Santo

Simão Gomes, mais conhecido como o Sapateiro Santo, é uma daquelas figuras da história de Portugal que o tempo fez (quase) esquecer. Não fosse o facto de ter vivido quase na mesm altura de um outro famoso sapateiro (o Bandarra, autor das Trovas ou Profecias), tendo nascido em 1510 e falecido em 1576, e talvez já ninguém se lembrasse dele. Mas, juntos, parecem formar aquele selecto grupo de figuras que ora trabalhavam nos sapatos das gentes da sua época, ora profetizavam os futuros, incluindo-se a queda e a futura ascensão de um Império Português. Mas, se pouco sabemos agora sobre a vida do seu outro companheiro, já a deste Simão Gomes parece - sendo "parecer" aqui uma palavra fulcral - ser um pouco mais famosa, já que um tal Padre Manuel da Veiga escreveu e publicou um livro sobre o tema.

Livro sobre Simão Gomes, o Sapateiro Santo

Na primeira parte da obra Vida, Virtudes e Doutrina Admirável de Simão Gomes, vulgarmente chamado o Sapateiro Santo, é contada, de uma forma relativamente breve, o que se supõe ser toda a vida e morte desta figura, num conjunto de sequências que nada ficam a dever às biografias dos muitos santos de outros tempos. Isto porque a sua personagem principal é representada tal como se fosse um vero santo, com episódios de santidade desde a sua mais tenra idade, mas com a estranha adição de alguns episódios que até são demasiado invulgares para serem mentira - em dado momento, por exemplo, ao leitor é dito que o herói casou apenas porque Deus o mandou tomar uma esposa, de forma a que tivesse - e são palavras da obra, não nossas - uma cruz constante a suportar em toda a sua vida... esposa essa que, num ou outro episódio, até demonstra alguns requintes de malvadez, talvez inventados pelo autor para fazer reluzir a cruz do seu herói.

Depois, a segunda parte da mesma obra foca-se quase exclusivamente nos pensamentos filosóficos e religiosos do próprio Simão Gomes. O que tem o seu interesse, para quem quiser conhecer melhor o suposto pensamento desta figura, mas suscita igualmente uma dificuldade muito curiosa - onde estão as tais profecias que a história nos diz que este ilustre sapateiro, nascido em Tomar mas que viveu muitos anos em Évora e em Lisboa, deixou sair da sua boca? Parecem existir apenas duas na totalidade da obra, uma em que foi vista uma espécie de espada de fogo por cima do Mosteiro dos Jerónimos, interpretada como uma alusão à (então futura) destruição de Dom Sebastião, e outra que apenas é dado a entender ao leitor que se cumpriu, mesmo no final do primeiro volume, mas sem que o seu conteúdo seja revelado.

 

Temos, portanto, neste Simão Gomes uma espécie de profeta sem profecias conhecidas, como se teve em Bandarra um igualmente estranho profeta de profecias mas sem uma história. Naquele a que dedicamos as linhas de hoje, pelo menos podemos saber parte da sua vida, fruto das linhas deixadas pelo Padre Manuel da Veiga, mas ela encontra-se, nessa obra, como que escondida entre facto e ficção, devendo ser levada com bastante cepticismo. Onde teria essa sua ficção, e se vai escondendo a realidade, é algo aqui difícil de discernir...

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09 de Abril, 2024

"Relação das Fábulas e Ritos dos Incas", de Cristóbal de Molina

Esta Relação das Fábulas e Ritos dos Incas, da autoria de Cristóbal de Molina no século XVI, é uma obra curiosa. Se, por um lado, não é propriamente um texto que possa agradar à maior parte dos leitores comuns, por um outro merece ser aqui referida pelo facto de tentar ter preservado um conjunto de histórias e elementos culturais que na altura da escrita desta obra já se estavam a perder.

Relação das Fábulas e Ritos dos Incas, de Cristóbal de Molina

Segundo se percebe pela obra - o manuscrito ainda existe, está na Biblioteca Nacional de Espanha - o seu autor, um clérigo nascido em Espanha no ano de 1529, foi falar com pessoas do Peru que ainda conheciam as tradições dos seus antecessores locais e deixou algumas delas por escrito. Como o próprio título indica - Relação das Fábulas e Ritos dos Incas - o texto é divisível em dois grandes momentos. No primeiro, Cristóbal de Molina conta um número pequeno de lendas locais, com ênfase nas relativas a um dilúvio universal, talvez pelo facto de confirmarem parte da mensagem cristã que ele tentava disseminar enquanto padre católico. A título de exemplo, resumimos a seguinte, que vinha do distrito peruano de Cañaris:

No tempo das cheias existiram dois irmãos que escaparam à ocorrência subindo a uma montanha muito alta. Depois dessa conflagração passar, eles desceram até às planícies e fizeram uma casa para viverem, mas tinham sempre muita dificuldade em arranjar comida e bebida... até que um dia chegaram a casa e viram muita comida, e bebida boa, já preparada para eles. Ficaram muito intrigados, até porque isso voltou a acontecer uma e outra vez, e ás tantas lá descobriram que eram dois pássaros que andavam a fazer isso. Com alguma dificuldade capturaram um deles, aparentemente do sexo feminino, e fazendo amor com ele voltaram a repopular toda a região.

 

É provável que toda esta história tenha sido ligeiramente adaptada pelo seu reportador, que na versão original os pássaros tivessem forma humana, ou capacidade para uma metamorfose, que tornasse possível o que a trama reporta. Mas, deixando para trás essas possibilidades e avançando para o segundo momento, nele o autor reporta um número muito mais significativo de antigos ritos dos cidadãos locais, organizados pelo mês e circunstâncias em que eram realizados. Nesse sentido, ele preserva-nos não só nos seus actos físicos dos crentes, mas igualmente algumas rezas, como a seguinte, que aqui traduzimos para a língua portuguesa:

Ó Criador! Tu que não tens igual até ao fim do mundo. Tu que deste vida e força à humanidade, e disseste aos Homens “Que este seja homem,” e às Mulheres “Que esta seja mulher.” Ao dizeres isto criaste-os, moldaste-os e deste-lhes vida. Protege aqueles que criaste, deixa-os viver em segurança, sem perigo e em paz. Onde estás? Estás nas alturas do céu? Ou abaixo das trovoadas? Ou nas nuvens de tempestade? Ouve-me, responde-me e concede-me o que te peço; dá-nos vida eterna para sempre. Leva-nos pela tua mão e aceita esta minha oferta onde quer que estejas, ó Criador!

 

Sem a compilação desta Relação das Fábulas e Ritos dos Incas pela parte de Cristóbal de Molina informações como as acima teriam sido completamente perdidas. Chegaram-nos, sim, mas este não é um texto que recomendemos à generalidade dos leitores, já que a parte referente às lendas locais, a mais relevante para quem nos vai lendo, é demasiado breve, enquanto que a relativa aos rituais religiosos certamente que já é bem conhecida por quem até tem interesse em temas como esses.

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08 de Abril, 2024

Uma curiosa lenda de Elkasai

O nome e as aventuras de Elkasai estão hoje quase completamente esquecidos. É possível que pouquíssimas pessoas ainda o reconheçam como o fundador da seita gnóstica dos Elcasaitas (e autor de um Livro de Elkasai), enquanto outros saibam dele como o potencial inspirador do fundador do Maniqueísmo. É possível, até provável, que ambos tenham sido um só e o mesmo, mas isso é difícil de confirmar face ao pouco que ainda se sabe sobre a(s) figura(s). Porém, existem ainda breves lendas que lhe estão associadas, algumas das quais são tão invulgares que não poderíamos deixar de as relembrar por aqui.

Lendas de Elkasai

Ainda se conta que num dado dia Elkasai ia tomar banho num rio quando o espírito das próprias águas lhe apareceu, criticando-o pela sua acção. Depois, pediu aos seus companheiros que encontrassem outro lugar onde ele pudesse tomar banho, algum mais escondido... e isso foi feito, mas quando o profeta tentou usar essas outras águas, o espírito apareceu-lhe novamente, voltando a criticá-lo. Assim, este homem entendeu o seu erro e deixou de tomar banho.

Algum tempo mais tarde, tentou utilizar um arado para cultivar a terra - e o espírito desta apareceu-lhe, criticando-o por essa acção. Em seguida, quando ele e os seus companheiros se preparavam para cozer um pão, também o espírito deste apareceu a Elkasai, mais uma vez instando-o a que não fizesse essa acção. E o episódio repetiu-se com alguns vegetais, com uma palmeira e seus frutos, etc.

 

O que quer tudo isto dizer? Infelizmente, já muito pouco sabemos sobre Elkasai, ou em relação ao livro que tomava o seu nome, mas esta sequência de breves lendas poderá fazer supor que uma parte significativa da sua teologia assentava numa revelação mística semelhante a um panteísmo, em que cada parte do nosso mundo apareceu a este profeta e lhe revelou directamente, com mais ou menos detalhes, como gostaria de ser tratada. Por um lado é uma ideia fascinante, por outro temos de ser levados a questionar os seus limites - será que, por exemplo, existiam espíritos que apareceram ao profeta e aos quais ele se recusou a ceder? Nas histórias acima, ele deixou de cozer o seu pão; mas terá também deixado de beber água, ou de comer dadas frutas, ou mesmo abandonado as comidas de origem animal?

Não sabemos, não sabemos, não sabemos... e é, como habitual, esse o grande problema em escrever sobre lendas como estas de Elkasai - nelas, só temos acesso ao pouco que outros decidiram ceder aos nossos tempos, o que demasiadas vezes nos deixa uma história tristemente incompleta, em que a imaginação terá de ser mais forte que a realidade...

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04 de Abril, 2024

O mito grego de Glauco

Glauco, um deus marinho da Mitologia Grega e Latina,  é uma daquelas figuras cujos contornos essenciais se foram mantendo ao longo dos séculos, mas com alguns detalhes variantes. Ainda assim, o seu mito pode ser dividido em três momentos essenciais, que iremos detalhar abaixo.

O mito de Glauco

Todos os autores parecem concordar na ideia de que Glauco era, originalmente, um pescador numa qualquer terra da Grécia Antiga. Em dada altura da sua vida encontrou uma erva mágica que, ao consumir, lhe permitiu ascender ao estatuto divino e adoptar a forma de uma criatura marinha, meio-homem e meio-peixe (como um tritão). Foi sob essa nova forma que passou a ser conhecido como um deus marinho, tendo passado a viver entre os deuses das profundezas do mar... e se os detalhes de todo o episódio variam de fonte para fonte, é curioso que alguns autores chegavam a identificar a suposta erva que propiciou a transformação, como se ela pudesse ser reencontrada por cada um dos seus leitores.

 

Num segundo momento, sendo já este deus marinho, Glauco apaixonou-se por uma ninfa, a então-bela Cila, supostamente tendo pedido à feiticeira Circe que o ajudasse a concretizar esse amor. Ele desconhecia, porém, que esta última também o amava, e então usou esse pedido como um subterfúgio para transformar a sua competidora num monstro horrendo. Depois, face a essa nova metamorfose, o herói depressa perdeu a sua paixão, mostrando-nos o quão "profunda" ela tinha sido.

 

Em terceiro lugar, o mito de Glauco tinha ainda uma face muito actual para os Antigos Gregos e Romanos. Segundo esta última vertente da sua história, era esta figura divina, talvez juntamente com Castor e Pólux, que socorria aqueles que se perdiam no mar, impedindo que se afogassem na sequência de alguma tempestade ou naufrágio. Porque o fazia? É apenas uma teoria, mas é possível que ainda se lembrasse do tempo em que ele próprio tinha sido um mero pescador, e quantas vezes as tempestades marinhas o tinham atemorizado...!

 

Mas... para terminar as linhas de hoje, este deus não era o único Glauco da Mitologia Grega. Existiam outras figuras que partilhavam o mesmo nome, e se falar de todas elas seria difícil, por motivos de tempo e espaço, podemos aqui referir uma grande figura tão famosa como a anterior, ou mesmo até mais - o herói que na Ilíada trocou a sua própria armadura de ouro com Diomedes, pelo facto dos seus antecessores terem partilhado de xenia (uma espécie de antiga relação de hospitalidade, cujos efeitos também se prolongavam pelas gerações seguintes). Ou um terceiro, um filho do Rei Minos (e irmão de Ariadne), que se afogou num pote de mel, mas posteriormente foi trazido de volta à vida com uma erva miraculosa apenas conhecida por duas serpentes...

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01 de Abril, 2024

Um Palácio Desconhecido em Sintra?

Por estes dias, ou até pelos últimos anos, um dos grandes problemas da vila portuguesa de Sintra é que está sempre demasiado cheia de turistas. Uma só fila para ir ver o Tritão do Palácio da Pena, ou o chamado Palácio da Vila, pode ter centenas e centenas de metros de comprimento e prolongar-se durante várias horas, enquanto que locais como o Convento dos Capuchos ou o Palácio de Monserrate, muito provavelmente por estarem um pouco mais longe do centro da vila ou serem menos conhecidos do grande público, têm muito menos visitantes.

Um Palácio Desconhecido em Sintra?

E depois existem locais que muito raramente são visitados pelas pessoas, como a Capela de São Mamede de Janas ou o pequeno mas belo palácio visto na imagem acima. É actualmente pertença de privados (mas que até pode ser visitado ocasionalmente), já foi dito "casa assombrada" num filme para adolescentes, e a quinta em que se insere até tem uma belíssima gruta. Mas não é, repita-se, caso único. Também poucos são os vistantes da zona de Adrenunes, e de outros tantos sítios que não estão assim tão longe da própria vila de Sintra... e é uma pena. Fica, portanto e para o futuro, o convite para que se visite não só o que é bastante conhecido, mas igualmente o que tem o seu charme ainda bastante desconhecido do grande público!

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