Sobre Simão Gomes, o Sapateiro Santo
Simão Gomes, mais conhecido como o Sapateiro Santo, é uma daquelas figuras da história de Portugal que o tempo fez (quase) esquecer. Não fosse o facto de ter vivido quase na mesm altura de um outro famoso sapateiro (o Bandarra, autor das Trovas ou Profecias), tendo nascido em 1510 e falecido em 1576, e talvez já ninguém se lembrasse dele. Mas, juntos, parecem formar aquele selecto grupo de figuras que ora trabalhavam nos sapatos das gentes da sua época, ora profetizavam os futuros, incluindo-se a queda e a futura ascensão de um Império Português. Mas, se pouco sabemos agora sobre a vida do seu outro companheiro, já a deste Simão Gomes parece - sendo "parecer" aqui uma palavra fulcral - ser um pouco mais famosa, já que um tal Padre Manuel da Veiga escreveu e publicou um livro sobre o tema.
Na primeira parte da obra Vida, Virtudes e Doutrina Admirável de Simão Gomes, vulgarmente chamado o Sapateiro Santo, é contada, de uma forma relativamente breve, o que se supõe ser toda a vida e morte desta figura, num conjunto de sequências que nada ficam a dever às biografias dos muitos santos de outros tempos. Isto porque a sua personagem principal é representada tal como se fosse um vero santo, com episódios de santidade desde a sua mais tenra idade, mas com a estranha adição de alguns episódios que até são demasiado invulgares para serem mentira - em dado momento, por exemplo, ao leitor é dito que o herói casou apenas porque Deus o mandou tomar uma esposa, de forma a que tivesse - e são palavras da obra, não nossas - uma cruz constante a suportar em toda a sua vida... esposa essa que, num ou outro episódio, até demonstra alguns requintes de malvadez, talvez inventados pelo autor para fazer reluzir a cruz do seu herói.
Depois, a segunda parte da mesma obra foca-se quase exclusivamente nos pensamentos filosóficos e religiosos do próprio Simão Gomes. O que tem o seu interesse, para quem quiser conhecer melhor o suposto pensamento desta figura, mas suscita igualmente uma dificuldade muito curiosa - onde estão as tais profecias que a história nos diz que este ilustre sapateiro, nascido em Tomar mas que viveu muitos anos em Évora e em Lisboa, deixou sair da sua boca? Parecem existir apenas duas na totalidade da obra, uma em que foi vista uma espécie de espada de fogo por cima do Mosteiro dos Jerónimos, interpretada como uma alusão à (então futura) destruição de Dom Sebastião, e outra que apenas é dado a entender ao leitor que se cumpriu, mesmo no final do primeiro volume, mas sem que o seu conteúdo seja revelado.
Temos, portanto, neste Simão Gomes uma espécie de profeta sem profecias conhecidas, como se teve em Bandarra um igualmente estranho profeta de profecias mas sem uma história. Naquele a que dedicamos as linhas de hoje, pelo menos podemos saber parte da sua vida, fruto das linhas deixadas pelo Padre Manuel da Veiga, mas ela encontra-se, nessa obra, como que escondida entre facto e ficção, devendo ser levada com bastante cepticismo. Onde teria essa sua ficção, e se vai escondendo a realidade, é algo aqui difícil de discernir...