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Mitologia em Português

28 de Junho, 2024

A (verdadeira) lenda do Cavaleiro Verde

Em 2021 apareceu nos cinemas um filme que em português tinha o título de A Lenda do Cavaleiro Verde. O actor por detrás da personagem principal era Dev Patel, que fazia de Gawain, e quem tenha visto o filme (e, aparentemente, foram poucos os que o fizeram) poderá ter-se apercebido que este era baseado num mito arturiano, outrora um tanto ou quanto conhecido. O filme, em si, tem o seu quê de encanto (um trailer pode ser visto carregando na imagem abaixo), mas um dos elementos mais intrigantes da sua trama é, sem dúvida, o facto de ele reutilizar diversos elementos da lenda original mas sem nunca revelar os seus verdadeiros significados. Assim, o filme só pode ser percebido de uma forma completa se for visualizado em comparação e contraste com a lenda original. Fazer isso de uma forma completa ultrapassaria o objectivo das linhas de hoje, mas podemos aqui contar o cerne da própria lenda, tal como ela era conhecida na versão mais famosa da história.

A verdadeira Lenda do Cavaleiro Verde

Conte-se, portanto, esta lenda do Cavaleiro Verde. Um dia, enquanto o Rei Artur e os seus cavaleiros se banqueteavam na altura do Natal, surgiu-lhes em plena corte uma misteriosa figura de cor verde, que os convidou a uma espécie de jogo natalício muito incomum. Ela convidou um dos membros da corte a desferirem-lhe um golpe com o enorme machado que portava, e no ano seguinte essa pessoa deveria procurá-lo e receberia de volta um golpe semelhante, após o qual poderia ficar com o poderoso machado para si. Se Artur quis, inicialmente, aceitar esse desafio, depois foi Gawain que o aceitou, talvez em busca da sua fama, cortando o pescoço do estranho gigante com um só golpe... apenas para depois, de uma forma muito surpreendente, o ver a pegar na cabeça decepada, avisar o herói para este não esquecer o seu lado do "jogo", e ir-se embora.

Durante o ano que se seguiu Gawain não soube muito bem o que fazer, mas lá decidiu que deveria cumprir a sua promessa - quanto mais não fosse, as regras da cavalaria assim o exigiam - e partiu em busca do Cavaleiro Verde, que então o esperava numa capela verde. Teve algumas aventuras pelo caminho, nomeadamente uma visita a um palácio em que foi muito bem tratado e seduzido pela esposa do senhor local. Finalmente, lá chegou à capela do opositor, onde o estranho inimigo, após algumas hesitações por parte do herói, lá cumpriu a sua parte do "jogo"... mas Gawain não morreu, porque, na verdade, este estranho homem verde era uma transformação do tal senhor em cujo palácio ele tinha vivido por algum tempo, e que por este meio pretendia vir a punir alguma infidelidade da parte do jovem - algo que, no entanto, não teve de fazer, porque Gawain sempre se "portou bem" nos seus domínios.

 

Alguns elementos desta história contrastam um pouco com os apresentados no filme A Lenda do Cavaleiro Verde, em que a verdadeira identidade do chamado "Homem Verde" não é revelada, mas outros elementos da história também divergem nessa representação cinematográfica, chegando Gawain a envolver-se, de forma discutivelmente sexual, com a bela senhora do palácio. Face a isso, pode surgir uma inesperada interpretação para o final do filme - será que nesta versão o herói morreu mesmo, decepado pelo tal Cavaleiro Verde? Isso não é nem confirmado, nem contradito na trama, mas é provável que o possível desfecho se destinasse a captar um elemento muito particular da literatura de ficção da Idade Média, em que por vezes existiam diversas versões de uma história, com vários elementos comuns mas também múltiplas diferenças.

Outro elemento digno de nota no filme é um momento insólito em que as personagens se perguntam a razão da cor do Cavaleiro Verde. É aquele tipo de coisas muito debatível nos nossos dias, mas a lenda original não só diz que a pele desta personagem era completamente verde, mas também partilhava essa característica com o próprio cavalo que a transportava, sendo que as razões para tal nunca são reveladas. Assim, muitas poderão ser as razões por detrás dessa sua cor - basta, por exemplo, pensar-se na lenda das crianças verdes de Woolpit, que partilhavam desta característica - mas, para nós e depois de vários debates, pensamos tratar-se de uma alusão à morte e renascimento da natureza, até pelo facto deste estranho cavaleiro - uma possível representação do mundo natural - ter sobrevivido a um golpe que seria claramente mortal para qualquer ser humano... mas, repita-se, é muito discutível!

 

Portanto, o filme A Lenda do Cavaleiro Verde merece, verdadeiramente, ser visto e comparado com a obra literária de autoria anónima, quanto mais não seja para que se suscite algum debate prolífico entre os visualizadores e leitores, com vista a que se perceba toda a história de forma muito mais completa...

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24 de Junho, 2024

A Criptozoologia e a lenda do Mokele-mbembe

Para aqui falarmos de uma possível lenda do Mokele-mbembe temos obrigatoriamente de falar de Criptozoologia. A palavra não é muito conhecida ou utilizada no nosso país, mas refere-se a um ramo científico que supostamente estuda, ou procura tentar estudar, os animais que ainda não são conhecidos entre nós. Alguns, como o (peixe) Celacanto, acabaram por provar-se completamente reais; outros, como o Bigfoot ou o Kelpie, ainda hoje se procuram; e num terceiro grupo poderiam colocar-se aqueles supostos animais que a Ciência já parece ter provado não existirem, criaturas como a Mantícora ou o Hipogrifo.

A Criptozoologia e a lenda do Mokele-mbembe

Muito poderíamos aqui escrever sobre cada um desses grupos, as suas origens e outras coisas que tais, mas para o tema de hoje é particularmente relevante falar-se do Mokele-mbembe, uma suposta criatura que se pensa viver nas terras do Congo e que é normalmente representada como um dinossauro de pescoço comprido, como o visto ali na fotografia acima. O que ele tem de especial, de particularmente digno de nota, é ser frequentemente utilizado em debates na Criptozoologia para se argumentar que criaturas dinossáuricas podem ter chegado aos dias de hoje. Há alguma prova? Absolutamente nenhuma, nem alguma vez esta criatura foi vista na primeira pessoa por algum ocidental, mas existem é muitas tradições e lendas locais que referem a existência, seja actual ou passada, de uma criatura com estas características.

 

Qual é, então, essa lenda do Mokele-mbembe? Claro que valeria muito a pena contá-la aqui, mas o grande problema é que não existe uma versão "oficial" de toda a sua história. Pelo contrário, existem é diversos relatos que referem a criatura, lhe dão características físicas muito semelhantes (aquele enorme pescoço é sempre constante), mas divergem na sua origem e acções - recordamos, a título de exemplo, que numa dada versão ele é um espírito que pune aqueles que pescavam no rio local sem antes terem realizados um conjunto de rituais de carácter religioso.

 

Por isso, será que o Mokele-mbembe existe mesmo? A melhor forma de responder a essa questão passa por dizer que ele provavelmente existe tanto como o Monstro de Loch Ness. Existem poucas ligações entre ambos, com a exclusão da forma dinossáurica, mas se um deles verdadeiramente existir, torna-se repentinamente muito mais fácil acreditar na existência do outro; ao mesmo tempo, se de alguma forma se conseguir provar a inexistência do primeiro ou do segundo (o que é difícil...), isso em absolutamente nada afecta a crença no outro.

 

Para terminar, talvez valha a pena descrever a Criptozoologia como uma ciência do possível mas incerto. Isto porque é certamente possível que criaturas como aquela a que dedicamos as linhas de hoje existam, mas ainda não foram encontradas excepto nos resquícios de fósseis de outros tempos. Essa incapacidade de os encontrar não vale a favor da sua inexistência, mas levanta é a possibilidade de que um dia possam efectivamente ser encontrados, como aconteceu ao Celacanto, que muitos designam hoje como um fóssil vivo...

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21 de Junho, 2024

"História Fenícia", de Filo de Biblos

A História Fenícia, da autoria de Filo de Biblos, é uma daquelas muitas obras nascidas na Antiguidade que apenas nos chegou em escassos fragmentos. Tratam-se de breves segmentos citados numa das obras de Eusébio de Cesareia, mas um deles permite-nos, curiosamente, conhecer a derradeira origem do conteúdo do texto. Assim, quando as letras primeiro foram criadas por Toth, parecem tê-lo sido numa tentativa de preservar a história do mundo até então. Depois, um tal Sanconíaton, de origem fenícia, teve acesso a essa fonte e preservou o seu conteúdo numa obra da sua própria autoria. E, num último passo, este Filo teve acesso a essa segunda obra, que traduziu para o Grego no primeiro século da nossa era.

História Fenícia, de Filo de Biblos

Não é completamente claro, nessa sequência de eventos, que conteúdo individual pertencia apenas a cada um dos elos desta cadeia, e as breves linhas de Eusébio relativas à História Fenícia também pouco ajudam nessa busca, já que, grosso modo, apenas nos preservaram momentos de uma Teogonia, referências aos primeiros inventores da história da humanidade, uma sequência histórica (verídica?) de grande antiguidade, e um ou outro ritual da época. Mas, curiosamente, entre esses breves instantes nasce uma ideia muito inesperada - é-nos dito que a história dos Fenícios, supostamente real e tal como referia por esse autor, tinha sido uma das fontes da Teogonia de Hesíodo. Ou seja, que numa espécie de Evemerismo, os eventos que esse famoso autor atribuiu aos deuses eram, na verdade, como que adaptados de sequências reais da história mais antiga da Fenícia... e, na verdade, o conteúdo das linhas que nos chegaram apresentam algumas semelhanças curiosas com essa fonte literária, mas igualmente várias diferenças significativas. Se se trata de uma pura coincidência, ou esta sugestão do autor grego do primeiro século da nossa era é uma completa realidade, é algo que o tempo já há muito fez esquecer e talvez nunca consigamos recuperar.

 

Em qualquer dos casos, um elemento notável desta História Fenícia é o facto de traduzir os nomes originais das figuras intervenientes para o Grego. Em alguns momentos isso é evidente - "Toth (...) a que chamamos Hermes" - mas mais frequentemente apenas o nome grego é dado ao leitor, tornando muito difícil saber-se a que figuras originais se referiam. Isso não só permitiria avaliar a fidelidade da suposta obra de Sanconíaton, como também aprender um pouco mais sobre figuras divinas hoje menos conhecidas - por curiosidade, pode apontar-se que um delas era o deus El (uma de pelo menos duas figuras que vieram a compor o nosso "Deus" ocidental), mas as citações realizadas não permitem que saibamos nada de significativo sobre ele ou seus possíveis mitos.

 

Por um lado, obras demasiado incompletas como esta permitem-nos saber um pouco mais sobre crenças de outros tempos, mas por outro a sua incompletude actual não deixa de nos tantalizar. É o grande problema de se tentarem ler obras fragmentárias...

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17 de Junho, 2024

A estranha história de Xin Zhui, famosa depois de morta

De forma sucinta, poderíamos dizer que Xin Zhui foi uma representante da nobreza chinesa que faleceu no século II antes de Cristo. Seria apenas uma de muitas outras, que o tempo foi fazendo esquecer progressivamente, não fosse algo de totalmente inesperado que teve lugar com o seu corpo após a morte.

A estranha história de Xin Zhui

Em 1968, quando alguns trabalhadores da região chinesa de Changsha estavam a conduzir escavações nessa área, encontraram alguns túmulos e mais de um milhar de artefactos. Os segundos são aqui pouco relevantes, talvez até incluíssem algumas Pedras Dropa, mas entre os primeiros contava-se o de Xin Zhui, que, por razões que ainda não são completamente claras (tinha em seu redor um líquido desconhecido), estava quase completamente preservado, como nenhuma outra múmia encontrada até hoje. Considerámos aqui apresentar uma fotografia de como ela está actualmente, em vez da bonita reconstrução do seu rosto apresentada acima, mas sentimos que a representação poderia traumatizar os leitores mais sensíveis...

Ainda assim, o que esta história tem de particularmente interessante é que esse estado de conservação do corpo de Xin Zhui permitiu-nos saber algumas coisas muito pouco frequentes sobre ela, como o seu tipo sanguíneo, que sofria de diversos problemas de saúde, e que tinha comido várias fatias de melancia poucas horas antes de morrer. Os seus músculos, segundo vimos num vídeo, até continuam a funcionar nos dias de hoje!

 

Mas, por muito surpreendente que tudo isto possa parecer, o seu não é um caso único - também na China encontrámos pelo menos um outro corpo com estas características, o de Sui Xiaoyuan. Resta saber o que terão tido em comum, esse senhor e esta Xin Zhui, para explicar o notável estado de conservação de ambos os seus corpos, mais de dois milénios após as suas mortes...

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14 de Junho, 2024

A lenda do Urso de Madrid?

Um pouco mais abaixo pode ser vista uma fotografia do chamado Urso de Madrid. A estátua original está nessa cidade espanhola, mais precisamente na zona da Puerta del Sol, mas a figura também pode ser bem conhecida no nosso próprio país, por exemplo, através da sua presença no brasão do clube de futebol Atlético de Madrid. Existe também em muitos outros lugares, sendo um evidente símbolo da cidade, mas que possível lenda de nuestros hermanos se esconde neste local?

A lenda do Urso de Madrid?

Curiosamente, e ao contrário do que acontece em cidades como Lisboa ou Sertã, não parece existir aqui uma só lenda essencial e muito bem estabelecida, uma que todos os locais conheçam e repitam para explicar a fulano e sicrano este símbolo do Urso de Madrid. Em vez disso, ele parece ter resultado de uma junção repentina de dois símbolos locais, colocados num contexto que até foi sofrendo alterações com o tempo, mas em que eles nunca abandonaram a sua forma original vista na imagem.

O primeiro deles, o próprio animal representado neste Urso de Madrid, poderá ter nascido do facto de, segundo lemos, a cidade ter tido o nome de Ursalia no tempo dos Romanos, supostamente por esses animais terem sido muito frequentes na área (hoje já não o são, para quem repentinamente estiver com essa grande curiosidade). Outra versão diz que este foi um animal caçado por um qualquer monarca espanhol (o que relembra a nossa lenda de Dom Dinis e o Urso). Uma terceira hipótese lá revela que, originalmente, a figura representada não era senão a Ursa Maior... algo que até poderá ter contribuído para uma dúvida, que ainda existe nos nossos dias de hoje, relativa ao género sexual do animal representado neste símbolo!

Já o segundo elemento, a pequena árvore presente junto deste Urso de Madrid, ela parece estar aí representada desde 1222, e supostamente é uma alusão a uma disputa, finalmente resolvida nesse ano, sobre a posse das árvores de fruto na região - fruto de séculos e séculos de revisões legais, ou pela influência de documentos como a Doação de Constantino, já não se sabia bem se elas eram propriedade da Igreja ou da cidade madrilena. Quando o rei da altura julgou em favor dos segundos, este medronheiro* passou então a fazer parte do próprio símbolo da cidade - o antigo urso, que já então os representava, passou desde então a tentar subir à árvore, como que a dizer que estas, bem como os seus deliciosos frutos, pertenciam a essa antiga Ursalia.

 

Este Urso de Madrid não é, portanto, uma figura com uma lenda associada, mas sim uma representação que existe desde inícios do século XIII e que nasceu da confluência de um símbolo da cidade com um momento muito específico da sua história. Ou, pelo menos, sempre assim o lemos e ouvimos dizer, sendo até possível que existam, hoje em dia, outras lendas modernas para tentar dar uma trama contínua a este símbolo!

 

 

*- Alguns dizem que esta árvore dava era morangos, talvez pelo desconhecimento de um facto crucial - os morangueiros são pequenos arbustos, não uma fruta que cresça em grandes árvores!

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12 de Junho, 2024

A verdade do menino nepalês linchado em Portugal

Ainda há dias aqui abordámos um tema em que a influência norte-americana estava bem presente nas palavras de António Tânger Corrêa. Não é de todo um caso único, mas porque nem todas as histórias que vamos contando têm lugar num passado remoto, decidimos aqui contar também uma que é quase dos nossos dias. Foi uma história que tomou lugar em Portugal há cerca de um mês, mas talvez seja mais correcto chamar-lhe um verdadeiro mito, pelas razões que iremos mostrar abaixo.

O menino nepalês supostamente linchado em Portugal

Há cerca de um mês apareceu em vários média portugueses uma notícia sobre uma criança de 9 anos (no 2º ciclo...), de origem nepalesa, que supostamente foi linchada numa escola da zona de Lisboa. Foi, portanto e como a própria palavra indica, atacada brutalmente por cinco colegas, enquanto que um sexto gravava toda a cena, e lhe atiravam frases de conteúdo racista e xenófobo, sem que ninguém fizesse nada. Face ao ocorrido, e mediante a fonte consultada, o tal menino apenas deixou de ir à escola, ou foi mesmo transferido para uma outra, enquanto que um dos agressores apenas foi suspenso por três dias. O que, a ser verdade, seria gravíssimo... e sê-lo-ia se não fossem umas pequenas "inverdades" no relato.

 

Primeiro, a instituição que trouxe o caso a público recusou-se a colaborar com a justiça (porque seria...?), mas depois lá veio dizer que, afinal de contas, a criança não era do Nepal (o que conveio, porque segundo se apurou não haviam crianças nepalesas com a idade reportada na escola em questão). E o tal linchamento, também vieram dizer que não foi a palavra correcta, que não foi bem assim. O tal vídeo, mediante a versão consultada, ou ia ser colocado nas redes sociais, ou foi efectivamente colocado no Whatsapp, ou até o tinha sido mas subsequentemente foi removido. A escola não sabia de nada, nem nenhum aluno tinha sido suspenso nas condições relatadas. Só faltaria sugerir-se que os atacantes eram brancos nascidos em Portugal, de classe média-alta, e portavam suásticas... mas, em termos mais reais e fazendo nossas as palavras de David Pontes, do Jornal Público, não se pode "garantir sequer que a agressão a uma criança nepalesa tenha acontecido". Mas então, o que aconteceu mesmo em tudo isto? Há uma pista muitíssimo importante num comunicado escrito que a associação fez na altura:

Apelamos ao respeito pela privacidade da família e outras partes envolvidas, e em particular das vítimas do episódio sucedido.

Consideramos ser da maior importância uma maior sensibilização da sociedade portuguesa e um debate responsável e construtivo na opinião pública sobre estes fenómenos de violência, discriminação, racismo, xenofobia, alertando para a sua existência. É urgente, enquanto sociedade, trabalharmos juntos no combate a manifestações e comportamentos desta natureza, e na identificação de situações de risco. O nosso foco estará, sempre, no acompanhamento a pessoas migrantes em situação de vulnerabilidade e exclusão social, e estaremos empenhados na prevenção e na desconstrução de narrativas que incitam à violência dirigida a pessoas imigrantes, entre outros grupos estigmatizados.

 

Lendo-se bem o segundo parágrafo, onde apresentam alongadamente a sua missão (por contraste com a brevíssima referência ao caso), o que toda esta ideia tem de especial é tratar-se de uma estratégia muito comum em associações do género em outros países, e que normalmente indica um meio-caminho para a admissão de que o reportado é maioritariamente falso - como se pôde ver pelo que depois se veio a saber, pelo excesso de detalhes e seu carácter misteriosamente mutável, e pela adição repetida de pontos chocantes - mas foi colocado a público para publicitar a própria associação e as causas que ela defende. E a verdade é que esta associação era quase desconhecida, tinha pouca importância online, mas ao fazer passar aquela notícia sofreu uma explosão de pesquisas sobre ela, como pode ser visto na imagem ali em cima. E depois, quem vai ao site ou às respectivas redes sociais é imediatamente confrontado com a ideia de doar directa ou indirectamente para eles... muito curioso!

 

Trafulhices de uma associação

Talvez estranhando toda esta situação, numa das redes sociais uma "Paula" decidiu confrontá-los com um comunicado do Ministério da Educação, Ciência e Inovação, onde é dito que a versão que lhes foi passada pela tal associação apresentava "detalhes e contornos distintos face à informação divulgada a um órgão de comunicação social" e "não há qualquer indício de ter ocorrido um 'linchamento' na escola da Amadora indicada pela associação" (o sublinhado no comunicado é dela). Ou seja, afinal de contas tudo aquilo não era bem como nos tinha sido dito a todos, o que é mesmo muito curioso... porque pode suscitar uma inferência digna de nota - na realidade, só inventaria um caso com contornos falsos uma associação que conhecesse em primeira mão tão poucos casos de xenofobia em escolas portuguesas, que não tinha na altura nenhum presente para referir a um jornalista!

 

Agora, se lerem bem a mensagem da associação apresentada acima, verão que é utilizada uma palavra pouco comum na língua portuguesa, "evidências", que vem do inglês evidence, "provas". Isso denota que quem escreveu aquelas linhas tem uma certa cultura anglófona, em que, repita-se, mais uma vez e em especial na cultura americana, este tipo de casos são muito comuns para alavancar a importância de associações defensoras em casos de racismo. Mas, talvez pela inexperiência no uso desta estratégia, menos comum em terras de Portugal, saiu-lhes um pouco o tiro pela culatra...

 

Na verdade, a ideia por detrás de tudo isto, e conforme já muito bem relatado no livro Hate Crime Hoax, de Wilfred Reilly*, passa por trazer a público um caso muitíssimo chocante, seja ele verdade ou não, e depois encavalitar no mesmo a missão da associação, minimizando-o posteriormente enquanto ainda se o utiliza para motivos de auto-promoção. E, se fossem obrigados a dar uma resposta à Senhora Paula - que não são... - eles diriam, como é comum nos EUA, que aquele caso afinal até não foi bem como disseram que tinha sido, mas que até poderia ter sido, e que existem muitos outros que o são mesmo, e até existem vários que são muitíssimo piores que aquele (mas sem nunca dar quaisquer detalhes, fazendo sempre soar o problema muito maior do que é)! O que agora sabemos, porém, é que não existe nem menino nepalês, nem respectivo linchamento, o que é uma vergonha, tratando-se tudo isto essencialmente de uma ficção pia para chocar a audiência e cumprir o apregoado objectivo da associação.

A proverbial montanha pariu um rato, mas se uma só pessoa doou dinheiro para eles, o objectivo de toda esta estratégia publicitária cumpriu-se mesmo. E, infelizmente, é mais uma ideia trazida da América do Norte, e os grandes culpados neste caso são os nossos jornalistas, que antes de trazerem isto a público deveriam, no mínimo dos mínimos, ter verificado se o caso era credível...

 

 

*- Falando sobre este livro de uma forma breve, ele demonstra que se até continua a existir racismo nos EUA, existe um conjunto muito significativo de casos falsos que são utilizados, de forma directa ou indirecta, para tentar manipular a opinião pública. Eles vão desde falsos casos de racismo, com contornos muito semelhantes aos do caso em questão, até homossexuais que deitaram fogo aos seus locais de trabalho e culparam supostas pessoas anti-gays (e depois receberam imenso apoio por isso...), falsa "islamofobia" (a acusadora preferiu inventar falsos "brancos" que a atacaram, em vez de dizer aos pais que tinha passado a noite a beber com o namorado...), desumanos apoiantes de Donald Trump (um opositor sempre muito fácil de demonizar em determinados exogrupos...), e muitos outros casos. Em dados pontos lê-se quase como um romance, este Hate Crime Hoax de Wilfred Reilly, pelo caricato de alguns casos que relata, e em que o aqui abordado hoje pouco destoaria.

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09 de Junho, 2024

António Tânger Corrêa e algumas estranhas histórias

Há alguns dias fomos alertados para algumas estranhas histórias que António Tânger Corrêa, um candidato às Eleições Europeias, andava a contar em praça pública. Se não conseguimos confirmar a totalidade do que nos foi relatado - que ele até teria falado de extraterrestres e outras coisas que tais - em pelo menos uma entrevista, e um livro (que ainda não lemos), ele fala de uma "Nova Ordem Mundial", da "Grande Substituição", de uma "dramatização da pandemia", de "controlar a população", entre outras do mesmo género. Tudo isso pode ser visto e ouvido carregando na imagem abaixo, mas a questão que nos importa, hoje, é de onde nasceram todas essas ideias.

As estranhas histórias de António Tânger Corrêa

Por estranho que possa parecer aos Portugueses, todas estas estranhas ideias não vieram apenas da cabeça de António Tânger Corrêa. E na verdade, num contexto de globalização da cultura americana não pudemos senão sorrir um pouco com tudo isto, porque não é muito habitual no nosso país ouvirem-se falar de mitos, lendas e conspirações de outros países de uma forma tão aberta e pública. Todas essas são ideias americanas, que têm uma enorme plêiade de temas associados e que vão desde os Protocolos dos Sábios de Sião até à falsidade de uma possível ida à Lua. Infelizmente, abordar todos eles numa só publicação seria difícil, mas decidimos que podemos apresentar alguns deles de uma forma muito breve.

 

A ideia da existência de uma Nova Ordem Mundial já existe pelo menos desde o século XVIII, muitas vezes em associação com a Maçonaria. No seu cerne, toda a ideia diz que existe "alguém", cuja identidade nunca é muito clara e vai variando, que tem um plano malévolo para controlar toda a humanidade. Pode ser o Anticristo, pode ser o condenado Donald Trump ou o "Sleepy" Joe Biden, pode ser a família Rothschild, podem ser extraterrestres ou Judeus, etc., mas o elemento sempre comum é que essa tentativa de controlo é feita através de alguma grande instituição internacional, como a Organização Mundial de Saúde, a Organização das Nações Unidas, a Cruz Vermelha, etc. Será mentira? Será verdade? Como António Tânger Corrêa, também nós preferimos ter alguma dificuldade em reconhecer quais os limites da verdade e da ficção em toda esta ideia. Mas já lá voltaremos!

 

Outra alegação que ele faz é a da "dramatização de uma pandemia", com a intenção de "controlar a população". Essa segunda expressão não é muito clara, mas refere-se não tanto a controlar as pessoas - em estilo lavagem cerebral... - mas a reduzir o seu número, dado os valores cada vez mais crescentes da população mundial. Também não sabemos até que ponto isso poderá, ou não, ser verdade, mas quando se pensa em mitos como o da criação do Covid, depressa se abre a ideia de que alguém poderá desenvolver armas químicas com a intenção de reduzir o número de pessoas que estão vivas hoje em dia. E isto soará estranho, sem dúvida, mas há que frisar que nos EUA já aconteceu mesmo, durante os anos de 1932 e 1972, no chamado "Estudo da sífilis não tratada de Tuskegee" (que não é qualquer teoria da conspiração, mas algo completamente factual), em que a população negra foi usada como cobaia para o estudo de uma doença, como apenas se veio a comprovar mais tarde.

 

Portanto, de uma forma muito geral... será que as coisas que António Tânger Corrêa disse são verdade, ou a mais pura mentira? Mais do que responder a isso, parece-nos importante é frisar que são ideias muito comuns nos EUA e se tratam de conhecidas teorias da conspiração desse país. Isso não implica que sejam verdade ou mentira, existem opiniões fortes de ambos os lados, mas sim que as populações locais estão familiarizadas com essas histórias e têm quase sempre alguma opinião sobre elas. Discutem-nas como entre nós se discute, por exemplo, se foi mesmo pénalti num determinado jogo de futebol, e alguns descartam-nas de forma semelhante (e.g. "tu és Benfiquista, claro que achas que foi pénalti", "Tu és de Esquerda, claro que acreditas em Y").

 

Em suma, claro que soa estranho ouvir falar de coisas como estas em campanhas eleitorais em Portugal, mas as ideias veiculadas por António Tânger Corrêa nada têm de muito estranho, nem foi ele que primeiro as imaginou. Nasceram de uma americanização crescente da cultura portuguesa, como já vem acontecendo há décadas, em que se conta só parte da uma história mais longa como se fosse algo completamente real e bem assente na ciência e em factos comprovados. Estranho seria é se algum partido, daqueles que apoia a fantasia da "identidade de género", viesse falar de John Money...

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07 de Junho, 2024

A lenda do Salmão da Sabedoria

De entre as lendas que fomos lendo e ouvindo de terras da Irlanda, a do Salmão da Sabedoria, também conhecido por Salmão do Conhecimento, é das mais famosas. Como tal, e visto que dela nos recordámos há alguns dias atrás, é claro que merece ser contada por cá, para quem ainda não a conhecer!

A lenda do Salmão da Sabedoria ou Salmão do Conhecimento

Diz-se que em outros tempos existia algures na Irlanda um poço misterioso, cujas águas possuíam os poderes da sabedoria, e que estava rodeado por nove grandes aveleiras. Um dia, caíram dessas nove árvores nove avelãs, que antes de serem comidas por um salmão absorveram os poderes das águas locais. Assim, o outrora comum peixe obteve para si todo o conhecimento do mundo, passando a ser conhecido pelo nome de Salmão da Sabedoria. Desconhecemos se alguma vez fez algo de especial com esses seus novos poderes, e não conseguimos encontrar qualquer fonte literária que afirmasse que sim.

Depois, um herói poeta de nome Finegas (ou "Finn Eces") ouviu falar deste animal e decidiu procurá-lo para si. Queria consumi-lo, e assim obter todo o conhecimento que existia. Tentou capturá-lo durante sete anos, até que lá acabou por conseguir esse seu objectivo. Tendo apanhado este peixe, deu-o ao seu servo Fionn, com instruções expressas de que este deveria apenas cozinhar o animal. E ele assim o fez, num espeto, rodando-o até este parecer estar cozido... mas querendo ter toda a certeza de que o peixe já estava pronto para consumo, Fionn tocou nele ainda quente, e a gordura que caía queimou-lhe o dedo, fazendo o jovem lamber o seu próprio dedo.

Alguns momentos depois Finegas regressou e notou que havia algo de diferente no seu servo. Com algumas dúvidas, mas suspeitando do que se tinha passado, perguntou-lhe se este tinha comido o salmão. Primeiro o jovem negou tudo, mas após alguma insistência lá admitiu que tinha provado, por acidente, um pouco do animal. Em vez de se zangar, mas talvez com um pouco de desapontamento no peito, o mestre deste Fionn deixou-o comer todo o animal, e assim o jovem obteve todo o conhecimento do mundo, partindo depois para muitas outras aventuras...!

 

O que mais poderemos escrever sobre esta lenda do Salmão da Sabedoria? Há dias como estes, em que não se sabe muito bem como terminar um tema, mas algo que na nossa discussão estranhámos é o facto do peixe obter toda a sabedoria do mundo mas, aparentemente e segundo as versões que fomos conhecendo, nada fazer com isso. Terá existido uma versão, hoje esquecida, das aventuras deste estranho animal? Ou, em alternativa, terá sido uma forma da lenda original apontar que os animais simplesmente não têm forma de compreender o conhecimento? Esta conclusão parece ser a mais certa, porque se o animal possuía tanto conhecimento, como explicar que Finegas tenha sido capaz de o capturar? Mistérios...

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05 de Junho, 2024

A lenda de Rauðskinna

Rauðskinna  não é uma palavra fácil de dizer na nossa língua portuguesa, mas pode ser traduzida do islandês apenas como "pele vermelha". É provável que o nome se tenha devido à cor da sua capa - ou, pelo menos, sempre assim o ouvimos e lemos - mas esta história de hoje, antes de mais, tem de vir com uma espécie de prefácio fulcral. Quase todos os livros de que falamos por cá foram lidos por nós, ou não os conseguiríamos apresentar devidamente. Mas, no caso específico de hoje, se até teríamos todo o gosto em ler a obra, não foi possível fazê-lo. Porquê? Porque ou nunca existiu - e já lá iremos... - ou mesmo que tenha existido, nunca foi editada e tornada pública.

A lenda de Rauðskinna

Nasceu, na Islândia do século XV, um homem que depois se tornou bispo e ficou conhecido pelo nome de Gottskálk grimmi Nikulásson. Diz-se que ele realizou muitos feitos significativos na sua vida, mas que o maior de todos eles foi a composição de um livro de magia com o título de Rauðskinna, uma obra com um carácter tão poderoso que até tornava possível conquistar o próprio Satanás. Depois, os anos foram passado e o famoso bispo faleceu, sendo ele supostamente sepultado com este livro em sua posse, aparentemente por se tratar da mais importante de todas as suas posses físicas.

 

Toda a história de Rauðskinna ficaria por aqui, não fosse o facto da obra, e os seus supostos poderes mágicos, terem atraído o fascínio das gerações posteriores, gerando diversas lendas. Provavelmente a mais basilar diz que em dada altura Gottskálk grimmi Nikulásson voltou à vida, tais eram os seus poderes místicos, e partiu para local incerto, numa altura em que este seu texto se desfez em pó. Outras, bem mais comuns, falam das mais diversas pessoas que foram tentando obter este texto para si, mas que falharam sempre nesse seu propósito, sofrendo consequências letais.

 

Se o Rauðskinna existe verdadeiramente, teríamos todo o gosto e interesse em ler essa obra, mas como frisado inicialmente isso não foi possível, nem o é actualmente. Sobre ela, restam apenas lendas e mais lendas, de quem também outrora partilhou do mesmo desejo, fazendo-nos crer que a própria existência das linhas que se atribuem a um antigo bispo das ilhas da Islândia são, também elas, a mais pura lenda e absolutamente nada mais. Mas, se estivermos enganados, se alguém até tiver uma cópia (verdadeira) da obra, teremos sempre todo o gosto em lê-la...

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