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Mitologia em Português

29 de Julho, 2024

"Antirrhetikos", de Evágrio Pôntico

Evágrio do Ponto, também conhecido por Evágrio Pôntico, é um daqueles autores de finais da Antiguidade que raramente se lê. Talvez um ou outro estudante de Teologia o faça, mas entre as suas criações conta-se um texto de título Antirrhetikos, que é como quem diz "Argumentos Contra"... e contra o quê, poderia perguntar? É precisamente essa ideia, mais do que o próprio conteúdo da obra, que a torna digna de ser mencionada por cá.

Antirrhetikos, de Evágrio Pôntico

Evágrio Pôntico, como muitos outros Cristãos da sua época, era um monge, vivendo, pelo menos em teoria, em completa solidão. Esse afastamento da humanidade levou-o, como é comum em casos como esses, a sentir o ataque dos demónios... frise-se que, pelo menos neste contexto, eles não eram "monstros" reais, físicos, como os famosamente encontrados por Santo Antão, mas metáforas para as tentações que iam sendo encontradas pelos monges na sua solidão religiosa.

Face ao problema, este Evágrio Pôntico decidiu então categorizar esses seus opositores em oito grupos - a Gula, a Fornicação, o Amor pelo Dinheiro, a Tristeza, a Raiva, a Apatia, a Vanglória e o Orgulho [Desmesurado] - que posteriormente levaram aos chamados "Sete Pecados Mortais". Porém, não se limitou a categorizá-los assim, mas também em encontrar as suas múltiplas facetas e a forma de como as combater, utilizando os próprios textos bíblicos contra esses inimigos. Vejamos três breves exemplos:

Contra a alma que pensa que a humildade perfeita não é possível à natureza humana:
E era o homem Moisés muito manso, mais do que todos os homens que havia sobre a terra. (Núm 12:3)

Contra a alma que não está convencida que até Satanás imita o Anjo da Verdade e se torna um professor de falso conhecimento:
E não é de admirar, porquanto o próprio Satanás se disfarça em anjo de luz. Não é muito, pois, que também os seus ministros se disfarcem em ministros da justiça; o fim dos quais será conforme as suas obras. (2 Cor 11:14-15)

Contra os pensamentos que levam o intelecto a blasfemar contra Deus:
Porventura, por Deus falareis perversidade e por ele enunciareis mentiras? (Jó 13:7)

É essencialmente assim que funciona esta obra, Antirrhetikos - o seu autor menciona, de uma forma breve, um determinado problema "filosófico" que tendia a afectar os monges na sua solidão, e depois providenciava uma frase, ou uma sequência bíblica mais alongada, com ela relacionada, destinada a combater esse inimigo psicológico. O que talvez não seja tão interessante como a ideia acima podia sugerir - hoje, em circunstâncias como essas, pensa-se mais em exorcismos como o de Anneliese Michel - mas nos preserva um momento da história da Igreja em que a Bíblia, e apenas os seus textos, se viam como a cura para todos os problemas.

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26 de Julho, 2024

O eterno mito de Nero Redivivus

A razão porque hoje aqui contamos o mito de Nero Redivivus * merece ser contada. Há algumas semanas vieram pedir-nos exemplos de um tipo de história lendária em que um rei desaparece mas se diz que voltará em alguma altura no futuro. Existem pelo menos dois exemplos muito significativos na nossa cultura ibérica (o nosso famoso Sebastianismo e o Rei Rodrigo), entre muitos outros pelo mundo fora (como o do Rei Artur e Avalon), e isto levou a que a mesma pessoa quisesse saber qual a versão mais antiga de uma história com essas características essenciais. Não é uma pergunta fácil de responder - até certo ponto, a vida de Jesus Cristo poderia ser incluída nessa categoria de potenciais histórias - mas uma das mais antigas versões que conhecemos merece ser apresentada aqui em virtude de possuir uma característica muito única e também pela sua influência significativa na cultura ocidental.

O mito de Nero Redivivus

Neste tipo de histórias é vulgar que o monarca seja uma figura bondosa, um símbolo de esperança ou de uma época idílica que os crentes desejam que volte ao nosso mundo numa época presente ou futura. Porém, no caso do mito de Nero Redivivus, a história refere-se é, em alternativa, a uma figura maldosa que se pensava que voltaria no futuro para continuar o seu antigo reino de terror. Parece que toda essa trama derivou do facto de após a morte de Nero, em 68 d.C., terem surgido várias pessoas que diziam ser ele, e que em comum tinham habitualmente o facto de se parecerem com o falecido e tocarem lira, numa potencial alusão à agora famosa história do fogo de Roma.

 

Se fosse só isto o que havia para dizer sobre o mito de Nero Redivivus e provavelmente nem lhe estaríamos a dedicar estas linhas. No entanto, nos Oráculos Sibilinos, em sequências aparentemente associáveis a finais do primeiro século da nossa era, surge primeiro a ideia, numa forma escrita, de que este Nero tinha fugido para uma terra distante e andava a juntar um enorme exército para regressar e destruir completamente Roma (ou todo o Império Romano, já que o objectivo de toda essa sua destruição não é claro). O que isto tem de muito interessante é que as sequências em questão parecem ter sido escritas mais ou menos na mesma época que o bíblico Livro do Apocalipse, em que este mesmo imperador pode ser identificado na figura da Prostituta da Babilónia e/ou do misterioso Anticristo, como Santo Agostinho o fez na sua Cidade de Deus. Por isso, mesmo que hoje já quase ninguém conheça o breve mito referido acima, em dada altura ele marcou tão significativamente a cultura ocidental que esta sua história mereceu ser colocada por escrito e ainda pode ser encontrada, de uma forma oblíqua, num texto bíblico que continua a ser lido nos nossos dias.

 

 

*- O Latim Redivivus pode aqui ser traduzido como "retornado" ou "regressado".

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23 de Julho, 2024

Aniversário - Fazemos HOJE 20 anos!

Faz hoje 20 anos que a escrita destas linhas principiou. Seria, portanto, apropriado deixar aqui umas palavras de celebração, mas nunca é fácil decidir o que escrever em alturas como estas. Isto porque este nunca foi pensado como um espaço pessoal, em que se fale de mim ou dos meus colegas, mas sim e somente um local de partilha de conhecimento, em redor de uma espécie de fogueira (virtual) na floresta.

O que pode, então, ser dito? 20 anos... 20 anos é muito tempo. Onde estavam vocês há vinte anos atrás, ainda se lembram? Onde estava cada um de nós nessa altura? Vinte é aquele mesmo número de anos que Ulisses demorou a voltar a casa, a rever a esposa e o filho, depois de ter partido para a Guerra de Tróia. Parece muito, talvez demasiado, tempo. E um dia esta escrita terá de terminar, um dia, mas não será hoje. Em vez disso, aproveito é para anunciar três coisas:

  • Dentro de alguns dias será finalmente possível adquirir uma versão física e/ou digital deste espaço, para todos aqueles que prefiram ler estes conteúdos offline. Estará dividida em dois volumes, por motivos de espaço físico, e incluirá a maior parte dos temas que por cá foram passando.
  • Também dentro de alguns dias iremos anunciar um pequeno concurso de poesia, com direito a prémios e tudo.
  • É provável que uma nova coluna também venha a aparecer aqui nas próximas semanas, mas ainda não há data prevista para o seu início.

 

Além disso... como sempre, queremos deixar um enormíssimo agradecimento a quem nos vai lendo. Sejam aqueles que ainda estão presentes, ou os que já partiram ( :( )... é para todos vocês, leitores que conhecemos ou aqueles que nos são mais anónimos, que vamos escrevendo. Obrigado, e espero honestamente que vão gostando dos temas que aqui vamos deixando!

M.

20º Aniversário de Mitologia.pt

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21 de Julho, 2024

O primeiro mito do Zoroastrianismo (e a origem do bem e do mal)

Falar deste primeiro mito do Zoroastrianismo é, talvez mais que tudo, falar de um tempo já tão recuado que ninguém parece saber muito bem quando foi. Diz-se, hoje, que o fundador dessa religião, um tal Zoroastro ou Zaratustra, viveu há cerca de 3000 anos atrás, mas nem disso se tem qualquer certeza. O que se sabe bem, no entanto, é que foi ele o criador de um conjunto de ideias filosóficas e religiosas que tiveram um impacto tão profundo na humanidade que já ninguém sequer pensa de onde vieram, tão naturais que acabaram por se tornar.

Pense-se, por exemplo, na oposição composta pelo "bem" e pelo "mal". Um desses elementos implica necessariamente a existência do outro. Ou "luz" e "trevas" - mais uma vez, cada um dos dois pode ser definido como a ausência do outro. E poderíamos aqui dar N outros exemplos, mas pretendemos é chegar à ideia de que a existência de dualidades, divinas ou mais terrenas, parece ter nascido com o Zoroastrianismo, ou pelo menos sido muito popularizada por este. Antes desta religião os deuses e heróis parecem ter sido figuras essencialmente amorais (e.g. o mito de Lugalbanda), quase humanos como nós (e.g. vejam-se, por exemplo, as paixões de Zeus, em que ao deus grego nunca é apontada qualquer necessidade de fidelidade!), mas aparenta ter sido com esta religião que um aspecto fulcral da sua existência se alterou e modificou o pensamento da humanidade no Ocidente para sempre.

O primeiro mito do Zoroastrianismo

Segundo a revelação de Zoroastro, numa dada altura muito remota nada existia excepto duas divindades - "Ahura Mazda" (ou "Ormasde") e Arimã (ou "Angra Mainiu"). Elas eram completamente opostas em tudo, pelo que quando a primeira gerava "algo", a outra tinha igualmente o poder de gerar o seu contrário, como se de uma espécie de sombra constante se tratasse, num processo que se repetiria até ao fim dos tempos. Por exemplo, em dada altura a primeira cria um determinado animal, como um cão, e a outra gera uma espécie de contrário, como um lobo, para que ambos se pudessem defrontar num combate eterno. A ideia repete-se opondo um mangusto a uma cobra, etc. E então, justificava-se pelo conflito contínuo entre estas duas figuras todos os problemas do nosso mundo... e assim se gerou a grande ideia de um "bem" e um "mal", opostos em tudo!

 

Toda a ideia é muitíssimo bem captada no Bundahishn, um texto zoroastriano possivelmente do século VIII da nossa era (mas baseado em fontes literárias anteriores, já perdidas), no qual aparece a seguinte sequência:

Arimã contra Ormasde;
[Outras divindades aqui]
(...)
Mentira e falsidade contra a verdade;
Excesso e deficiência contra moderação;
Maus pensamentos, palavras e actos contra bons pensamentos, palavras e actos;
O mau caminho contra o bom caminho;
(...)
Indolência contra diligência;
Vingança contra a paz;
Dor contra o prazer;
Mau cheiro contra a fragrância;
Escuridão contra a luz;
Veneno contra o antídoto;
(...)
O Inverno contra o Verão;
O frio contra o calor;
A secura contra a frescura;
(...)

Esse constante estabelecimento de oposições entre as duas grandes figuras do Zoroastrianismo é um elemento muitíssimo repetido na teologia dessa religião, mas nas suas muitas histórias vão aparecendo, aqui e ali, outros elementos curiosos. Por exemplo, as mulheres começaram a ter a sua menstruação por influência do deus "maldoso"; pela acção do séquito do tal vilão dois gémeos fizeram amor após 50 anos de espera para que toda a humanidade pudesse ser gerada; e o deus "bondoso" criou as mulheres com uma característica muitíssimo curiosa, que até pode ofender algumas das pessoas que nos lêem mas é digna de ser recordada aqui, numa outra citação do Bundahishn:

[As mulheres terão] uma boca perto do ânus para que a relação sexual pareça aos seres humanos o mais doce dos sabores da comida na boca.

 

Tudo histórias interessantes, não haja qualquer dúvida, que um outro dia talvez venhamos a recordar por aqui, mas o que nos interessa hoje é somente o primeiro mito do Zoroastrianismo, o da criação de tudo o que existe por duas figuras completamente opostas mas curiosamente complementares. Essa ideia, por simples que hoje nos pareça, teve um impacto significativo em figuras ocidentais como Platão e em religiões como o Maniqueísmo, e foi tão famosa que ainda chegou ao nossos dias, por muito que tenhamos esquecido de onde ela vem - aponte-se que a religião de Zoroastro ainda existe, mas os seus crentes são cada vez menos frequentes, e não encontrámos sequer um único em Portugal.

 

Mas, ainda sobre todo este tema, uma última curiosidade. Quando gerámos a imagem ali em cima, que deveria representar a oposição destes dois deuses essenciais, um sistema informatizado colocou uma terceira figura, branca, entre eles. Não é possível descobrir porque o fez, mas corresponde, de facto, a uma evolução curiosa desta religião - se os textos, hoje quase perdidos, diziam que apenas zurvan existia antes das criações feitas por estes dois deuses, alguns crentes humanizaram essa figura - que originalmente significava apenas "o tempo" - e criaram o Zurvanismo, que mais do que venerar os dois "irmãos", tinha por grande e único deus aquela estranha entidade que os parecia ter criado. Mas isso já são outras histórias, demasiado afastadas do tema de hoje...

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17 de Julho, 2024

A lenda de Mothman (e as "Prophecies")

Mothman é uma de muitas criaturas que são relativamente famosas no seu país de origem, os EUA, mas nem sempre tão conhecidas nos outros países. Existem aí muitas outras, como o Bigfoot, o Chupa-cabra ou o Demónio de Jersey, mas o de hoje tem a curiosa particularidade de ter um livro mais ou menos oficial, ou pelo menos oficialmente associado, a si. Mas já lá iremos, por agora apresente-se a estranha criatura hoje aqui em questão.

A lenda de Mothman e as Mothman Chronicles

A fotografia acima, imperativamente difícil de ver (como é demasiado comum em circunstâncias como estas), foi uma de muitas fotos que foram sendo tiradas por alguém que pensava ver Mothman. Não é muito claro, pelo menos pela imagem, em que consiste essa criatura, mas o próprio nome leva-nos facilmente à ideia de se tratar de um ser meio-homem e meio-traça, uma figura alada e com grandes olhos vermelhos cuja forma essencial poderia, a uma primeira vista, ser até confundida com um ser humano. Diz-se que ela foi vista pela primeira vez por volta de 1966 em Point Pleasant, West Virginia, EUA, por um casal nos seus afazeres habituais, mas o mais interessante é que ela foi depois vista aqui e ali por diversas pessoas, existindo até mitos urbanos nos quais surge a ideia desta criatura matar pares de namorados nas suas aventuras sexuais nocturnas.

 

Será verdade? Será mentira, meros mitos urbanos americanos? O que podemos afirmar, sem maiores dúvidas, é que em dada altura este Mothman foi tão significativo na sua zona que foi criado um museu, e que um tal John Keel escreveu uma obra de título The Mothman Prophecies, contando muitas das coisas estranhas que foram acontecendo desde a aparição inicial deste ser em 1966 (e que posteriormente até deram lugar a um filme com Richard Gere, que não fomos ver para a escrita destas linhas). É uma espécie de Ficheiros Secretos de outros tempos e em forma escrita, mas é importante notar que o seu autor tenta ter uma perspectiva relativamente céptica, chegando a admitir em alguns momentos uma verdade importante, que passa pelo facto das pesquisas que fez nesta área o terem conduzido a alguns eventos estranhos (dos quais, enquanto leitores, até podemos e devemos duvidar...), tal como a pessoas cuja estabilidade mental e emocional é claramente de duvidar. A obra termina com a destruição de uma ponte local em hora de ponta, no ano de 1967, supostamente um de muitos eventos profetizados indirectamente pela aparição da criatura e de todas as outras estranhas ocorrências da altura.

 

Será verdade? Será mentira? Estas Mothman Prophecies fazem acreditar na primeira hipótese, mas dado todo um conjunto de coisas estranhas que vão reportando ao longo das suas páginas, nunca pode ser claro onde começa a mentira e termina a verdade. E a estranha criatura, essa, parece continuar a ser vista pelos locais até aos dias de hoje. Por isso, se um dia passarem por este estado americano e virem alguma estranha figura a esvoaçar pelos céus, já sabem, é fortemente provável que se trate de Mothman!

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13 de Julho, 2024

Livro "O 12º Planeta", de Zecharia Sitchin

O livro evocado nas linhas de hoje, O 12º Planeta de Zecharia Sitchin, sem qualquer dúvida que é interessante. Apresenta uma história muito boa - já lá iremos - e em diversas alturas até levanta questões verdadeiramente importantes. Seria muito recomendado aos leitores, não fosse pelo facto de ao longo do texto ir apresentando algumas falhas de conhecimento e diversas tentativas, aparentemente deliberadas, de deturpar a realidade para esta bater certo com a tese que o autor pretendia defender. E qual é ela? É, de facto e como veremos em seguida, mesmo muito interessante!

Livro O 12º Planeta, de Zecharia Sitchin

Este O 12º Planeta começa com uma história da humanidade até aos primeiros tempos da escrita. Como foi possível aos seres humanos, descendendo dos macacos, um dia começarem a criar as primeiras cidades, estabelecerem a Agricultura e domesticarem animais? Segundo a tese aqui apresentada por Zecharia Sitchin, esse salto de conhecimento só foi possível pela intervenção de seres de outros planetas na história humana, um conjunto de figuras extraterrestres que depois foram vistas como deuses ou figuras divinas, e.g. os Nefilins, pelos habitantes locais.

Para defender essa estranha ideia, o autor vai mostrando, aqui e ali, diversos paralelismos curiosos em diversos sistemas mitológicos, como a existência constante de 12 figuras principais. E se, até essa altura, o autor até vai fazendo sentido e colocando questões muito dignas de discussão - afinal de contas, como é que a humanidade descobriu a Agricultura? - depois as coisas vão-se tornando um pouco mais estranhas, relembrando mesmo um episódio de Ancient Aliens e as actuais ideias das teorias dos Astronautas Antigos. Talvez o grande momento de charneira possa ser considerado aquele em que o autor pega no Enuma Elish, um épico babilónio, e tenta defender que ele preserva uma espécie de relato da viagem destes seres, os Anunnaki, do seu planeta original para o nosso - o suposto 12º do nosso sistema solar, a que também chamam Nibiru ou Planeta X - e as suas aventuras por aqui.

 

Pode parecer, ao leitor comum, uma ideia bastante estranha, mas pelo caminho, entre esse pólo da indisputada realidade e da aparente ficção, Zecharia Sitchin vai apresentando um conjunto de ideias que são pouco conhecidas à maioria das pessoas e que explicam, por exemplo, algumas curiosas falhas da trama bíblica. Por exemplo, pensando na famosa história do dilúvio universal, com a presença apenas de Deus ela faz pouco sentido, mas se pensarmos nela como ocorria nas fontes mais antigas - e.g. a Epopeia de Gilgamesh - ela incluía a presença de duas figuras divinas, Enki e Enlil, que eram essencialmente opostas, e enquanto uma delas tenta destruir a humanidade, já a outra tenta salvá-la. E, repita-se até mais uma vez, isso é muito interessante, como não poderia deixar de ser.

 

Infelizmente, ao mesmo tempo este O 12º Planeta tem o problema de Zecharia Sitchin nem sempre parecer muito honesto nas suas interpretações. Na altura em que primeiro publicou esta sua obra - o ano era 1976 - ainda existiam muito poucas ou nenhumas traduções dos textos em que se apoia para a sua tese essencial, mas agora, muito mais bem preparados para os julgar, já conseguimos ver que o lido por este autor e o escrito no original nem sempre correspondem... o que é um problema muito notável, por esta ser uma obra que se apoia tanto nos mais antigos textos acessíveis à humanidade!

 

Sendo assim, este O 12º Planeta, de Zecharia Sitchin, pode ser lido por quem tem interesse pelo início da história dos seres humanos ou pelas pessoas que gostam de Mitologia ou Religião, mas em todos esses casos é importante ter-se em conta que os momentos em que o autor se apoia em textos antigos nem sempre são fiáveis. Ou as suas leituras da iconografia antiga que nos chegou. Mas, ainda assim, se o livro for lido como se de uma obra puramente ficcional se tratasse, sem qualquer dúvida que dá muito que pensar, e até merece ser debatido em grupo, por levantar questões históricas que raramente contemplamos...!

 

 

P.S.- Também existe uma alternativa muito significativa à leitura deste livro. Após a morte do autor, a sua sobrinha Janet publicou uma espécie de resumo do pensamento do tio. Com título The Anunnaki Chronicles: A Zecharia Sitchin Reader, esse outro livro não só recapitula as teorias apresentadas em diversas obras deste autor, como também alguns documentos adicionais que não tinham sido publicados até então.

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11 de Julho, 2024

O mito do mártir Gaudêncio, arquitecto do Coliseu de Roma(?)

A história de hoje, este mito do mártir Gaudêncio, está intimamente ligada a um dos mais famosos locais da cidade de Roma. Se já cá falámos sobre a origem do nome do Coliseu, sobre esse mesmo tema há um ponto que parece ter sido muito esquecido ao longo dos séculos, e há quase dois milénios - quem foi o arquitecto por detrás de todo este famoso monumento romano? Não há quaisquer certezas, nem autores tão eminentes como Vitrúvio o nomeiam, e talvez por isso lá surgiu uma espécie de mito que explica o que aconteceu à figura por detrás de uma tão grande e imponente construção.

O mito do Mártir Gaudêncio

Este mito - porque o é, não temos qualquer prova de que esta história tenha sido verdade - conta então que o arquitecto do Anfiteatro Flaviano foi um tal Gaudêncio. Segundo o breve texto no seu túmulo (já lá iremos!), apesar deste enorme feito ele supostamente terá sido morto na arena, algures no tempo do Imperador Vespasiano. Pela presença dessa sua derradeira morada num cemitério cristão infere-se, muito naturalmente, que o seu "crime" tenha sido o de ter sido Cristão... mas, se hoje existem vários santos e mártires que partilham este mesmo nome, não encontrámos nenhum que tenha vivido no primeiro século da nossa era, corresponda a esta descrição geral e continue a ser venerado nos nossos dias de hoje. Como tal, toda a história parece vir, apenas e exclusivamente, de um texto latino que foi encontrado num túmulo romano na mesma cidade, e que reproduzimos abaixo:

SIC  PREMIA  SERVAS  VESPASIANE  DIRE 
PREMIATVS  ES  MORTE  GAVDENTI   LETARE 
CIVITAS  VBT  GLORIE  TVE  AVTORI 
PROMISIT  ISTE  DAT  KRISTVS  OMNIA  TIBI 
QVI  ALIVM  PARAVIT  THEATRV  IN  CELO 

O que quer isto dizer, perguntam os leitores que pouco ou nada saibam de Latim... mas neste caso o problema não passa tanto por uma tradução, mas por uma questão de interpretação do que o texto diz. Ele pode ser traduzido mais ou menos assim (infelizmente, hoje não podemos oferecer uma tradução melhor que esta):

Assim serás recompensado, Vespasiano, como mereces.
És recompensado pela morte de Gaudêncio; alegra-te.
A cidade prospera, autor da tua glória.
Ele prometeu isto, Cristo dá-te tudo.
Aquele que preparou outro teatro no céu.

Como é muito fácil notar, isto não fala do Coliseu, nem referencia o tal (suposto) mártir Gaudêncio de uma forma clara... mas a referência a Vespasiano, de que um Gaudêncio poderá ter sido "autor da glória", poderá igualmente sugerir, com imensa imaginação à mistura, uma espécie de lenda como a que já relatámos ali em cima.

Sabemos que existiu pelo menos um Gaudêncio a viver em Roma na sua longa história, mas é difícil saber se este túmulo lhe pertenceu. Mesmo que tenha pertencido, a sua relação com Vespasiano não é clara. Nem é claro que tenha sido ele o arquitecto do Coliseu. Muito menos se sabe se este homem morreu na arena. Mas, através do mito e da lenda, é fácil ligar todos esses elementos e imaginar o que o texto não diz, gerando um relato muito geral, como aquele que foi apresentado ali em cima...

 

Para concluir... que foi, na verdade, o arquitecto por detrás do Coliseu de Roma? A enorme verdade é que não sabemos. Só e apenas isso. É uma informação que não parece ter chegado aos nossos dias, por muito que pessoas com mais imaginação queiram insistir em dizer o contrário.

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08 de Julho, 2024

"When Prophecy Fails", de Leon Festinger

O livro When Prophecy Fails, de Leon Festinger, Henry Riecken e Stanley Schachter, é daqueles que até dá bastante que pensar. Foi primeiro publicado em 1956, mas o seu tema mantém-se tão interessante e actual nos dias de hoje como na altura em que foi publicado, não só pela sua referência a uma espécie de culto religioso, mas por esta ter sido, aparentemente, uma das primeiras obras literárias a postular a ideia de dissonância cognitiva, i.e. a ideia de que procuramos coerência entre as nossas crenças, por exemplo alterando as nossas visões de acontecimentos para baterem certo com aquilo em que acreditamos. Mas já lá voltaremos, por agora falemos do livro em si.

"When Prophecy Fails", de Leon Festinger

Em When Prophecy Fails, Leon Festinger e os seus colegas essencialmente infiltraram-se no que pode ser considerado uma espécie de culto religioso do seu tempo e tentaram estudar o que iria acontecer quando uma das profecias mais significativas do grupo falhasse. Então, quando esta espécie de religião disse que no dia 21 de Dezembro de 1954 uma cidade local ia ser destruída por uma enorme cheia, mas que eles iam ser salvos por um OVNI... estes senhores infiltraram-se no grupo e documentaram não só aquilo em que estas pessoas acreditavam, mas também foram esperando e vendo, sem nunca interferir, o que ia acontecendo até essa data e nos dias seguintes.

 

O que isto tem de importante, e igualmente significativo, para os nossos dias de hoje prende-se não tanto e apenas com o tema dos cultos religiosos, mas mais com a forma como nós próprios tendemos, internamente, a explicar coisas como os nossos próprios falhanços. Por exemplo, um dos nossos colegas tende a colocá-lo da seguinte forma - uma jovem junta-se ao "online dating" e conhece o namorado dela lá. Depois, uma amiga, que também procura uma cara-metade, vai ao mesmo local e não consegue encontrar ninguém para ela... e isto gera um conjunto de sentimentos mais ou menos previsíveis, que a leva a acreditar que a culpa desse desfecho diferente não é dela, mas sim atribuível a [inserir aqui N razões que a desculpabilizam de tudo]. A isso se chama, essencialmente, a tal "dissonância cognitiva".

 

No caso do culto religioso da obra, quando chegaram os dias preditos e os crentes não foram levados por extraterrestres, nem o tal dilúvio tomou lugar, começou a passar na cabeça destas pessoas um conjunto de ideias - foi apenas um teste; os OVNIs viriam noutra altura; conseguimos salvar o mundo; X não teve lugar porque tinham infiéis no seu cerne; era tudo mentira; etc. - que ora as levavam a abandonar esta religião, ou a fazê-las ainda mais comprometidas com ela, por estranho que isso nos possa parecer. E então, os autores postularam cinco condições necessárias para as pessoas continuarem a acreditar nessas coisas mesmo após as profecias terem falhado... o que, de um ponto de vista neutro, nos poderá parecer muito estranho. Para se compreender melhor isto, When Prophecy Fails apresenta os principais intervenientes de toda a acção, e demonstra como eles reagiram antes, durante e depois dos eventos aqui em questão.

 

Para quem tiver interesse em cultos religiosos, ou em Psicologia, esta When Prophecy Fails, de Leon Festinger, é uma obra literária muito digna de nota, quanto mais não seja pela neutralidade como tenta cobrir o seu tema essencial ao longo das ocorrências que vão tendo lugar. Fica recomendado aos leitores que se interessem por esse tipo de temas.

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05 de Julho, 2024

"A Cintriada", poema sobre a beleza de Sintra

A Cintriada é uma daquelas composições poéticas que está quase esquecida hoje em dia. Pelo seu nome já se percebe que o tema de todo o poema é Sintra (= Cintra), e no prefácio - que, na edição a que lhe tivemos acesso, ocupa aproximadamente um terço da obra - o próprio autor, um tal Padre Manoel Rodrigues de Faria, confessa ser esse o seu tema. Numa altura em que o Palácio da Pena estava a ser (re?)construído, para ter aquela forma que lhe reconhecemos hoje, este autor sentiu então a necessidade de cantar a beleza de Sintra. E claro que o tema é inesperado, muito interessante até dados os encantos da vila, e daria potencialmente aquele proverbial "pano para mangas", mas o grande problema na leitura da obra é descoberto logo nas suas primeiras páginas.

Capa do poema "A Cintriada"

Primeiro, A Cintriada começa com um prefácio que parece enorme para o tamanho da obra - mais de 30 páginas, num total de cerca de uma centena - em que o autor mais parece querer enrolar o leitor do que lhe dar qualquer espécie de informação muitíssimo pertinente para a leitura da obra. Ficará para a eternidade uma questão estranha - será que a "Typographia de G. M. Martins", que imprimiu a obra, tinha um limite mínimo de 100 páginas?

 

Depois, quando (finalmente) se chega aos primeiros versos da obra, eles são banais, quase como as rimas que as crianças muitas vezes fazem na escola. A título de exemplo, reproduza-se aqui uma estrofe:

As flores aqui postas pela ordem
Com que classificou Lineu as Plantas,
As flores que dos mesmos matos sordem,
Os Tojos, as Giestas, e outras tantas,
As Urtigas, que a quem as toca mordem,
As Plantas em fim todas aqui quantas
Dão flores, as dão como à porfia,
Como quem quer levar a primazia.

Em terceiro lugar, se em dados momentos o autor até refere espaços e eventos particularmente relevantes da história de Sintra, mesmo a forma como os trata tem muito pouco encanto. A um tema célebre, como a conquista da vila aos Mouros, é dada quase a mesma relevância que a presença de rosas e outras flores e plantas nessa zona, seguindo-se todos esses temas de uma forma profundamente banal.

 

E, em quarto lugar (e último), o poema está pejado de notas mais ou menos longas, para o autor tentar explicar o porquê da sua Cintriada mencionar determinados elementos. E se algumas dessas notas até têm algum interesse para o leitor, outras dizem coisas como "Synthronon, grego, quer dizer o banco ou degrau de um teatro ou de um trono", "esta rica e pitoresca estrada [para a Pena] começou-se no ano de 1839 com tanto empenho e gosto que no seguinte ano de 1840 estava concluída", ou repetem os nomes de determinadas flores em tudo quanto é língua, como se tudo isso fosse muitíssimo importante numa construção poética.

 

Em suma, esta não é de todo uma obra fácil de encontrar, mas mesmo que a encontrem ela não tem nada de muito significativo, excepto talvez pela sua existência como mero objecto de colecção. A sua parte mais interessante, no contexto deste espaço, talvez seja a referência a uma pequena lenda que está completamente esquecida nos nossos dias, e que vale a pena reproduzir-se ao terminar as linhas de hoje:

Certo Turco, achando-se cego e sabendo pelos seus livros a virtude das ervas de Portugal, dissera a um seu escravo Português: "Vai a Portugal, leva estes sapatos novos, não os calces senão na Serra de Sintra, passeia os sítios tal e tal da Serra com eles, e depois une-os bem um ao outro, e bem atados torna-nos a trazer, porque há naquela serra uma erva de tanta virtude que basta que tu a pises com estes sapatos, e eu esfregue os meus olhos com eles, para me ser restituída a vista. Dou-te superabundantemente para a despesa, e adverto que se fores fiel em tudo quanto te ordeno, não só te farei rico, mas te restituirei à tua liberdade. Cumprindo o escravo exactamente quanto o seu senhor lhe ordenara, e sendo restituída a vista a seu senhor, cumprira o que lhe prometera, e despedindo-se dele lhe dissera: "Os Portugueses não sabem dar valor à riqueza que possuem só nas virtudes das plantas e ervas desse reino, especialmente na Serra de Sintra"...

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01 de Julho, 2024

As lendas de Simão Mago

Tentando apresentá-lo de uma forma demasiado breve, poderíamos dizer que Simão Mago foi uma figura tão importante da história da Igreja que já ninguém se parece lembrar dele. Pode parecer contraditório, mas quem for ler os Actos dos Apóstolos poderá lá encontrar breves referências a esta figura como um homem que, após se ter convertido à religião cristã, tentou subornar - sem sucesso - São Pedro para que este lhe explicasse como utilizar o poder do Espírito Santo, acabando por ser amaldiçoado pelo apóstolo - daí a origem da expressão "simonismo" ou "simonia", o comércio ou venda de bens da carácter espiritual. E tudo ficaria por aí, mais nada a Bíblia diz sobre esta figura, mas o seu grande motivo de interesse passa pelo facto de nas fontes extra-bíblicas existirem duas grandes lendas que lhe estão a associadas.

As lendas de Simão Mago

A primeira delas, discutivelmente a mais famosa (até dela aqui falámos quando explicámos as representações horizontais dos santos), afirma que em determinada altura este Simão Mago voou nos céus, procurando por esse acto provar o seu carácter divino. Tê-lo-ia conseguido, não fosse a presença de São Pedro - este apóstolo rezou a Deus e, pedindo-Lhe essa ajuda para afastar as pessoas do que ele via como uma falsa religião, por intervenção divina o humano voador foi precipitado dos céus, partindo as pernas ou simplesmente falecendo na queda. O curioso episódio já não aparece na Bíblia, lembre-se isso, mas ao longo dos séculos foi-se tornando tão famoso que a figura a que dedicamos as linhas de hoje é frequentemente representada em pleno voo, acto que o Cristianismo acredita só ter sido possível com ajuda demoníaca. Daí os demónios voadores na imagem, em pleno combate com os anjos de Deus!

 

Mas outra lenda associada a Simão Mago merece ser contada por cá em virtude da sua importância na história do Cristianismo. Segundo esta história, que já não parece ter vindo do primeiro século da nossa era, nas suas desventuras este homem fazia-se acompanhar por uma mulher de nome Helena, que não era senão a reencarnação da famosa Helena de Tróia. É provável que essa relação entre as duas figuras até tenha inspirado parte da lenda do Doutor Fausto, mas o mais notório nessa história é o facto de ser utilizada por diversos apologistas cristãos para configurar este Simão como o primeiro dos fundadores do Gnosticismo - e eles até dão um passo adicional, dando a este homem todas as falhas imagináveis e fazendo da sua companheira uma antiga prostituta.

 

Não sabemos, nem é possível saber-se hoje, onde começam e terminam as grandes verdades nesta história de Simão Mago e de Helena, mas diversos autores da época atribuem ao primeiro um conjunto de obras literárias que depois caíram no esquecimento. Felizmente até as citam, aqui e ali, permitindo-nos compreender que a religião que ele fundou era uma espécie de sincretismo do Cristianismo e da Filosofia dos Gregos. A mesma ideia também ocorria em muitas outras seitas gnósticas posteriores a esta, sendo por isso possível, mas não certo, que as suas doutrinas tenham de alguma forma inspirado a criação de todo um conjunto de ideias a que hoje chamamos gnósticas. O que não sabemos é se ele foi o primeiro dos gnósticos ou, também ele, se inspirou em algum outro autor ou pensador entretanto esquecido.

 

Em suma, se este Simão Mago tem um papel muito pequeno na própria Bíblia, ainda assim ele não foi esquecido na evolução do Cristianismo, com alguns autores posteriores a lhe acrescentarem, não sabemos se com grande verdade, diversos episódios e até obras literárias (!) que condicionaram como esta figura bíblica depois foi sendo vista ao longo dos séculos...

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