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Mitologia em Português

21 de Julho, 2024

O primeiro mito do Zoroastrianismo (e a origem do bem e do mal)

Falar deste primeiro mito do Zoroastrianismo é, talvez mais que tudo, falar de um tempo já tão recuado que ninguém parece saber muito bem quando foi. Diz-se, hoje, que o fundador dessa religião, um tal Zoroastro ou Zaratustra, viveu há cerca de 3000 anos atrás, mas nem disso se tem qualquer certeza. O que se sabe bem, no entanto, é que foi ele o criador de um conjunto de ideias filosóficas e religiosas que tiveram um impacto tão profundo na humanidade que já ninguém sequer pensa de onde vieram, tão naturais que acabaram por se tornar.

Pense-se, por exemplo, na oposição composta pelo "bem" e pelo "mal". Um desses elementos implica necessariamente a existência do outro. Ou "luz" e "trevas" - mais uma vez, cada um dos dois pode ser definido como a ausência do outro. E poderíamos aqui dar N outros exemplos, mas pretendemos é chegar à ideia de que a existência de dualidades, divinas ou mais terrenas, parece ter nascido com o Zoroastrianismo, ou pelo menos sido muito popularizada por este. Antes desta religião os deuses e heróis parecem ter sido figuras essencialmente amorais (e.g. o mito de Lugalbanda), quase humanos como nós (e.g. vejam-se, por exemplo, as paixões de Zeus, em que ao deus grego nunca é apontada qualquer necessidade de fidelidade!), mas aparenta ter sido com esta religião que um aspecto fulcral da sua existência se alterou e modificou o pensamento da humanidade no Ocidente para sempre.

O primeiro mito do Zoroastrianismo

Segundo a revelação de Zoroastro, numa dada altura muito remota nada existia excepto duas divindades - "Ahura Mazda" (ou "Ormasde") e Arimã (ou "Angra Mainiu"). Elas eram completamente opostas em tudo, pelo que quando a primeira gerava "algo", a outra tinha igualmente o poder de gerar o seu contrário, como se de uma espécie de sombra constante se tratasse, num processo que se repetiria até ao fim dos tempos. Por exemplo, em dada altura a primeira cria um determinado animal, como um cão, e a outra gera uma espécie de contrário, como um lobo, para que ambos se pudessem defrontar num combate eterno. A ideia repete-se opondo um mangusto a uma cobra, etc. E então, justificava-se pelo conflito contínuo entre estas duas figuras todos os problemas do nosso mundo... e assim se gerou a grande ideia de um "bem" e um "mal", opostos em tudo!

 

Toda a ideia é muitíssimo bem captada no Bundahishn, um texto zoroastriano possivelmente do século VIII da nossa era (mas baseado em fontes literárias anteriores, já perdidas), no qual aparece a seguinte sequência:

Arimã contra Ormasde;
[Outras divindades aqui]
(...)
Mentira e falsidade contra a verdade;
Excesso e deficiência contra moderação;
Maus pensamentos, palavras e actos contra bons pensamentos, palavras e actos;
O mau caminho contra o bom caminho;
(...)
Indolência contra diligência;
Vingança contra a paz;
Dor contra o prazer;
Mau cheiro contra a fragrância;
Escuridão contra a luz;
Veneno contra o antídoto;
(...)
O Inverno contra o Verão;
O frio contra o calor;
A secura contra a frescura;
(...)

Esse constante estabelecimento de oposições entre as duas grandes figuras do Zoroastrianismo é um elemento muitíssimo repetido na teologia dessa religião, mas nas suas muitas histórias vão aparecendo, aqui e ali, outros elementos curiosos. Por exemplo, as mulheres começaram a ter a sua menstruação por influência do deus "maldoso"; pela acção do séquito do tal vilão dois gémeos fizeram amor após 50 anos de espera para que toda a humanidade pudesse ser gerada; e o deus "bondoso" criou as mulheres com uma característica muitíssimo curiosa, que até pode ofender algumas das pessoas que nos lêem mas é digna de ser recordada aqui, numa outra citação do Bundahishn:

[As mulheres terão] uma boca perto do ânus para que a relação sexual pareça aos seres humanos o mais doce dos sabores da comida na boca.

 

Tudo histórias interessantes, não haja qualquer dúvida, que um outro dia talvez venhamos a recordar por aqui, mas o que nos interessa hoje é somente o primeiro mito do Zoroastrianismo, o da criação de tudo o que existe por duas figuras completamente opostas mas curiosamente complementares. Essa ideia, por simples que hoje nos pareça, teve um impacto significativo em figuras ocidentais como Platão e em religiões como o Maniqueísmo, e foi tão famosa que ainda chegou ao nossos dias, por muito que tenhamos esquecido de onde ela vem - aponte-se que a religião de Zoroastro ainda existe, mas os seus crentes são cada vez menos frequentes, e não encontrámos sequer um único em Portugal.

 

Mas, ainda sobre todo este tema, uma última curiosidade. Quando gerámos a imagem ali em cima, que deveria representar a oposição destes dois deuses essenciais, um sistema informatizado colocou uma terceira figura, branca, entre eles. Não é possível descobrir porque o fez, mas corresponde, de facto, a uma evolução curiosa desta religião - se os textos, hoje quase perdidos, diziam que apenas zurvan existia antes das criações feitas por estes dois deuses, alguns crentes humanizaram essa figura - que originalmente significava apenas "o tempo" - e criaram o Zurvanismo, que mais do que venerar os dois "irmãos", tinha por grande e único deus aquela estranha entidade que os parecia ter criado. Mas isso já são outras histórias, demasiado afastadas do tema de hoje...

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