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Mitologia em Português

28 de Janeiro, 2025

A origem do Masoquismo (e do Sadismo)

Falar da origem do Masoquismo e do Sadismo nestas linhas é, muito sinceramente, admitir que nem todos os nossos temas vão sendo planeados de antemão. Alguns deles apenas nos vão aparecendo pelo mais completo acaso, aquando de uma pesquisa sobre um qualquer outro tema. Neste caso em particular, quando aqui falámos sobre a lenda de Le Loyon, a carta de suicídio dessa figura (supostamente) lendária fazia uma breve alusão a Sacher-Masoch. Não é, hoje, um criador literário particularmente conhecido, e muito menos nos países lusófonos, pelo que o seu nome é, agora, mais ligado ao Masoquismo, que dele obteve o nome. Como...? É precisamente esse o tema de hoje!

 

Confesse-se que não fomos ler todas as obras do Senhor Sacher-Masoch, que pode ser visto na imagem acima, mas a mais importante para o tema de hoje parece ser uma que tem o título de A Vénus das Peles (ou A Vénus em Peles). Nela, surge uma história dentro de uma história, a de um homem, de nome Severin, que se oferece à mulher que parece amar, uma tal Wanda, para ser o seu mais completo escravo, passando até por alguns episódios da mais completa humilhação. A moral da história, conforme até discutida pelas duas personagens principais, aparece bem explícita no final do texto:

“Mas [qual é] a moral?”
“Essa mulher, tal como a natureza a criou e tal como o homem a está a educar actualmente, é sua inimiga. Ela só pode ser sua escrava ou sua déspota, mas nunca sua companheira. Isso só poderá acontecer quando ela tiver os mesmos direitos que ele, e for sua igual em educação e trabalho."
“Por agora só temos a escolha entre sermos o martelo ou a bigorna, e eu fui o tipo de burro que deixou uma mulher fazer dele um escravo, percebes?"
“A moral da história é esta: quem se deixa ser chicoteado, merece ser chicoteado."
“Os golpes, como vês, fizeram-me bem; a névoa rosada da supersensualidade dissipou-se, e ninguém jamais me fará acreditar de novo que esses ‘sagrados macacos de Benares’, ou o galo de Platão, são a imagem de Deus.”

Concorde-se, ou não, com estas ideias - discuti-las passa além dos nossos objectivos de hoje - elas estão ligadas à origem do Masoquismo pelo facto de uma personagem da obra, o tal Severin, aparentemente sentir os maiores prazeres em ser humilhado pela mulher que sentia amar. Depois as coisas até lhe dão para o torto, como a citação acima dá a compreender, mas é um tema a que já voltaremos.

 

Esta primeira origem está então ligada ao Sadismo (cujo nome provém do Marquês de Sade, autor francês do século XVIII), pelo facto da ideia do prazer sentido em humilhar alguém ser um tema muito recorrente das suas várias obras. Portanto, se a definição anterior se referia ao prazer sentido por alguém ao ser humilhado, já esta segunda alude a uma espécie de oposto, um prazer que é sentido apenas ao humilhar alguém.

 

O tema poderia ficar por aqui, mas há ainda um aspecto curioso a ter em conta. A citação que fizemos de A Vénus em Peles não foi ao acaso. Apesar de ter já mais de um século de existência, ela capta bem uma ideia que nos foi sendo transmitida por quem ainda hoje se envolve nos caminhos do Masoquismo e do Sadismo. Não nos compete a nós julgar, mas várias dessas pessoas foram-nos dizendo que sentiam uma enorme dificuldade em explorar esse aspecto da sua sexualidade numa relação estável e feliz, precisamente pelas mesmas razões que Sacher-Masoch referiu na sua obra - ambos os conceitos implicam uma relação de poder muito desigual entre os intervenientes, e isso torna difícil que possa existir, fora do metafórico quarto, a igualdade necessária para uma relação amorosa de sucesso. É provável que tenha sido por isso mesmo, por essa perfeição dos autores francês e austríaco em captar a essência destes "problemas", que os psicólogos deram o seu nome aos respectivos conceitos...

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21 de Janeiro, 2025

A lenda de Adozinda

Seguindo o tema de há alguns dias, não é só pela Europa fora que existem lendas esquecidas, e a nossa história nacional de Adozinda pode ilustrar isso mesmo. Foi famosamente contada por Almeida Garrett no poema que partilha deste mesmo nome, mas já esse autor admitia que tinha encontrado outras versões nacionais da história com contornos semelhantes, uma delas de título "Sylvana". De que falam elas?

 

Conta-se que em tempos da Idade Média existiu em Landim, no distrito português de Braga, um castelo de um poderoso senhor. Ele foi para a guerra contra os Mouros, deixando para trás os seus domínios, uma esposa e uma filha ainda criança. Só voltou muitos anos mais tarde, e vendo então a sua filha Adozinda já crescida, e tornada um belíssima mulher, passou a sentir desejos amorosos para com ela. A jovem, sem saber muito bem o que fazer, rejeitou repetidamente os amores do próprio pai, e até pediu ajuda à mãe, mas sempre sem o sucesso desejado. Então, frustrado, o rei lá mandou fechar esta sua filha numa torre durante sete anos, esperando que tamanha solidão a conseguisse demover da castidade que ela tinha mostrado até então.

Até este momento a história é relativamente estável, mas depois parecem surgir diversas versões do seu final. Numa delas, Adozinda morre. Numa outra, parece ceder ao desejo do pai, mas este morre miraculosamente quando se preparava para entrar na torre. Numa terceira, morrem ambos mas a casta jovem é trazida de volta à vida. Se tiver existido uma em que a jovem cede aos desejos do seu progenitor e este acaba por consumar a sua paixão, não conseguimos encontrá-la.

 

Mas então, porque foi esquecida esta lenda de Adozinda, na sua forma mais lata? Nunca é fácil arriscar teorias sobre essas coisas, mas o grande problema poderá ter-se devido aos próprios elementos mais essenciais de toda a história. Se em casos como o de Cinderela é possível remover alguns dos elementos mais chocantes sem que isso afecte o cerne de trama, e isso também pode ser feito em casos como o de Hansel e Gretel (i.e. poucas vezes se conta que a bruxa era um disfarce da mãe dos dois garotos), já neste caso tudo apenas funciona se as personagens principais forem pai e filha, gerando um tema que pode ser um tanto ou quanto inquietante para uma história de cariz originalmente popular. E, como tal, é mesmo provável que ao longo do tempo tenha deixado de ser contada por pais a seus filhos...

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14 de Janeiro, 2025

O mito de Agnodice de Atenas

Quando se trata de falar de Agnodice de Atenas, o grande problema é distinguir os limites da sua lenda, mito e (potencial) realidade. Nada na sua história, tal como ela foi sendo preservada ao longo dos séculos, nos remete para um puro mito de deuses ou de magia, com contornos impossíveis. Por isso, poderá ter-se tratado de uma história real, que teve lugar com uma mulher como as outras, mas até que ponto o relato que nos chegou é completamente real... já lá iremos!

 

Agnodice de Atenas nasceu e viveu no século IV antes de Cristo. Aparentemente tinha muito jeito para a Medicina, e então, visto que era proibido às mulheres da sua altura exercer essa arte, disfarçou-se de homem e começou a assistir às respectivas aulas, formando-se particularmente nas áreas de Obstetrícia e Ginecologia. E, dizem-nos, tornou-se muito eminente através da qualidade do seu trabalho.

Depois, dizem-nos que ou começou a ser invejada pelos outros praticantes das artes médicas, que lançaram rumores hediondos contra ela; ou uma mulher que ela rejeitou, desconhecendo a verdade dos factos, decidiu acusá-la de violação. E então, Agnodice foi julgada no Aerópago, sendo isentada de qualquer crime quando revelou o seu verdadeiro sexo... mas depois, visto que também era crime uma mulher exercer as artes médicas, sugeriu-se que ela deveria ser condenada à morte pelo que tinha feito, algo que só acabou por não acontecer devido às muitas pressões das mulheres que ela tinha auxiliado ao longo dos anos.

 

Esta história, tal como a contámos aqui, é mais ou menos o que nos chegou até hoje relativamente a Agnodice de Atenas. Assemelha-se a uma espécie de romance fictício, relembrando outras histórias, como a da tardia Papisa Joana, em que uma mulher se disfarça de homem para ter acesso uma profissão exclusiva do sexo masculino. Desconhecemos até que ponto esse tipo de relatos tem alguma historicidade - até há um filme que goza um pouco com o tema, apresentando subtilmente a ideia de um mosteiro em que todos os monges eram mulheres disfarçadas... - mas, a ter sido verdade, esta história apresenta-nos provavelmente uma das mais antigas médicas da sociedade ocidental. Foi-o?

O grande problema em responder positivamente a essa questão passa pelo facto da fonte mais antiga que nos chegou sobre ela ser do primeiro século da nossa era. Portanto, durante pelo menos 300 anos ninguém preservou estes factos? Como seria possível? Pode acontecer, e aconteceu até em diversos casos mitológicos (e.g. o mito de Troilo), mas se se tratou de uma figura tão importante como a sua história faz crer... parece estranho que tenha sido esquecida por tanto tempo. E, como tal, parece-nos mais seguro falar de Agnodice de Atenas como uma figura mítica ou lendária, em vez de uma com uma existência real bem atestada e indisputável.

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07 de Janeiro, 2025

Cinco perguntas a... #4- "Heaven's Gate"

O nome Heaven’s Gate não é muito conhecido nas culturas de língua portuguesa, mas merece ser apresentado por cá em virtude de um conjunto de coincidências.

Há uns meses, em busca de livros culturalmente significativos, deparámo-nos com uma versão online de um de título How and When "Heaven's Gate" (The Door to the Physical Kingdom Level Above Human) May Be Entered. Ele aparece sempre associado a um grupo religioso do mesmo nome, mas a existência da obra suscitou-nos uma grande questão – se, por definição, possíveis cultos – designação que intérpretes externos ao grupo utilizam aqui – tendem a existir num clima de enorme secretismo, a abertura desta religião a qualquer leitor intrigou-nos ao ponto de lermos o seu livro. Ele contém uma colecção de materiais produzidos pelo grupo até ao ano de 1997, que vão desde a história de como “Ti” e “Do”, os seus fundadores, se conheceram, até relatos na primeira pessoa de alguns dos seus crentes, passando por apresentações das suas crenças, etc. Agora, se aparentemente esta religião cessou a sua actividade em 1997 – até a sua apresentação na Wikipedia em Português usa o passado para a definir, “foi” – o seu site continua activo à presente data. Não existe qualquer verdadeiro proselitismo no mesmo, apresentando-se ele precisamente como estava no ano de 1997. E então, visto que diversas das suas páginas apresentam o seu contacto, decidimos contactá-los. Pretendíamos saber se o grupo mantinha quaisquer actividades, compreender no que eles acreditam na primeira pessoa, sem “falsos rumores”, e então decidimos colocar-lhes cinco questões, que foram gentis o suficiente para nos tentar responder:

O logotipo do grupo Heaven's Gate - utilizado aqui com permissão exclusiva para este artigo!

(Imagem utilizada com autorização, exclusivamente para este artigo)

1- Para os leitores que não estejam familiarizados com o Heaven’s Gate, podem explicar, em termos simples, os vossos ensinamentos centrais?

Existe um nível real e físico acima do humano neste planeta. Chamamos-lhe o “Próximo Nível” para simplificar. Ele existe em todo o universo e contém indivíduos reais e físicos, com corpos reais, que viajam em naves reais e físicas. Criaram a Terra e toda a vida nela. O “Próximo Nível” forneceu todo o conhecimento e tecnologia que este planeta utilizou para sobreviver e progredir. Mantêm vários planetas-jardim para colheita no “Próximo Nível.”

 

2- O Heaven’s Gate, como apresentado nos capítulos do vosso livro online, parece combinar elementos da escatologia cristã com ideias sobre vida extraterrestre. Como é que estas duas crenças aparentemente distintas se juntaram para moldar a vossa visão do mundo?

‘A informação do “Próximo Nível” é única e independente. Não tem qualquer ligação às religiões humanas. Aquele que veio do “Próximo Nível” há 2000 anos (conhecido como Jesus) forneceu novas informações para este planeta. Infelizmente, já não tem qualquer semelhança com os ensinamentos de Jesus actualmente. Ti e Do desceram a este planeta nos anos 1970 para actualizar esse testamento para o planeta, mas também foram rejeitados.’ [uma citação do livro]

 

3- Nos países de língua portuguesa, o Heaven’s Gate não é muito conhecido. Como gostariam que os ensinamentos ou o legado do grupo fossem entendidos por quem os encontra pela primeira vez?

Podem ver os vídeos e ler o livro que este grupo deixou para a humanidade. O livro, na sua versão física, pode ser actualmente adquirido pelo preço de $70*, já com portes de envio (ou $30 nos EUA).

 

4- Muitas tradições mitológicas e religiosas em todo o mundo apresentam viagens a outro reino ou transformações da alma. Vêem paralelos entre essas histórias universais e os ensinamentos do Heaven’s Gate?

Não. Não seguimos nem acompanhamos mitos.

 

5- No mundo de hoje, com tantas pessoas à procura de significado em tempos de incerteza, que lições ou mensagens do Heaven’s Gate acreditam ser mais relevantes para quem está num caminho espiritual?

Estudem as informações do “Próximo Nível.” É a única coisa importante para a humanidade.

 

O curioso em tudo isto é que apesar de ainda disponibilizarem parte dos materiais que foram criados antes do ano de 1997, não só não existiu a criação de novos conteúdos, como também não parece existir qualquer intenção de convencer a adesão de novos membros, limitando-se eles a uma tarefa que nos descreveram com as seguintes palavras: “Writers have a tendency to draw from false rumors and internet silliness to construct their stories and we have to correct this misinformation.

 

Perguntar se o Heaven’s Gate ainda existe leva-nos então a uma resposta curiosamente ambígua: “sim” e “não.” Embora ainda existam dois crentes dispostos a esclarecer questões históricas sobre as suas crenças, não há qualquer intenção de recrutar novos membros. Parte dos materiais originais permanecem disponíveis para quem quiser conhecê-los, seja através do livro ou dos vídeos, mas não houve a criação de novos conteúdos desde 1997, ano em que – para usar a terminologia do grupo – o seu fundador, Do, e a maioria dos crentes alcançaram o “Próximo Nível.” Essa posição é reiterada na descrição do canal no Vimeo, que enfatiza que os conteúdos aí foram colocados “for those who wish to learn about the group's beliefs” e “The posting of this video does not indicate there is another group to join as there is none.” Em suma, poucos crentes permanecem, mas o grupo religioso, enquanto entidade ativa, já não busca quaisquer novos aderentes.

 

*- Actualmente, o processo para compra do livro físico passa por enviar 70 dólares americanos - 30 nos EUA - para o endereço abaixo, juntamente com uma referência à morada para onde ele deve ser enviado:

Telah
P.O. Box 25098
Scottsdale, AZ
85255
USA

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02 de Janeiro, 2025

As estranhas histórias de "Struwwelpeter"

Começamos este ano de 2025 com um tema que é pouco conhecido em Portugal mas famoso na Alemanha, um livro de 1845 chamado Struwwelpeter. É provável que nunca tenham ouvido esse nome antes, mas algumas ilustrações da obra, como as que apresentamos abaixo, são hoje relativamente conhecidas na cultura popular, inclusive em memes online, aparecendo em muitos casos associadas a frases como "a minha vida é um conto de fadas, mas alemão". Mas então, que tem este livro, da autoria do psiquiatra Heinrich Hoffmann, especialmente digno de nota, ao ponto de lhe termos decidido dedicar estas linhas?

Duas imagens do livro Struwwelpeter

Como aqui contámos nos casos da Cinderela ou da Pequena Sereia, em outros tempos as histórias populares não eram para crianças nem tinham necessariamente de acabar bem. Hoje sim, acabam quase todas bem, muitas vezes com um estranho "e viveram felizes para sempre", mas nem sempre assim foi o caso. Agora, se as histórias preservadas nas linhas escritas por Heinrich Hoffmann não parecem ser muito mais antigas do que o seu autor, elas são dignas de nota por apresentarem exclusivamente crianças a portarem-se mal, num conjunto de 10 tramas em que as consequências dessas más acções são levadas ao extremo.

 

Por exemplo, na imagem acima pode ser vista uma ilustração de uma história em que uma menina, desobedecendo aos seus pais e ignorando os conselhos dos seus gatos, brinca com fósforos, acabando por se queimar mortalmente. A seu lado apresentamos uma outra história, em que um menino que gostava muito de chuchar no polegar, acabou por ficar sem ele. Uma terceira, que optámos por não mostrar, tem como personagem principal um menino que não queria comer a sopa, e então foi emagrecendo, emagrecendo e emagrecendo até morrer. Já Struwwelpeter, o menino que dá nome à colectânea e que é apresentado logo na primeira história, não cuidava de si, e então a gravura inicial da obra apresenta-o com cabelo esgrouviado e unhas enormes.

 

Struwwelpeter é, portanto, uma obra infantil, ainda hoje famosa entre os nativos alemães, que demonstra as consequências do mau comportamento infantil. Algumas das suas 10 histórias são mais interessante do que outras, mas em comum todas elas têm o facto de nos pretenderem comunicar algo como "não te portes mal, olha o que pode acontecer!" Não sabemos até que ponto a estratégia funciona, ou se os meninos alemães deixaram de brincar com fósforos por terem lido as potenciais consequências em textos como os desta obra, mas para os leitores que procurem um livro dito infantil extremamente original, podem encontrá-lo sob este nome!

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