A estranheza do "Julgamento de Páris", e as "Troianas" de Eurípides
O episódio do "Julgamento de Páris" é, indubitavelmente, um dos mais conhecidos mitos gregos, e até já cá foi falado por mais que uma vez (uma referência ao mito pode, por exemplo, ser encontrada aqui), mas nas suas Troianas, Eurípides faz uma consideração muitíssimo interessante a esse mito. Mas já lá vamos, principie-se por uma pequena referência à obra em questão.
A obra Troianas, de Eurípides, fala do último dia em que personagens titulares viveram em Tróia, e é pelos olhos delas que o leitor/espectador tem acesso a muitos dos eventos que aí acabam por ter lugar, como a reunião de Menelau com Helena, os sacrifícios de Astíanax e Políxena, a tomada de Cassandra, etc., sendo esta uma peça que termina com os gregos a deitarem fogo ao (pouco) que resta da cidade de Tróia.
Entre os muitos episódios que a trama da peça aborda conta-se, então, um pequeno debate entre Helena e Hécuba. A primeira reconta o que aconteceu, a razão pela qual abandonou o marido e foi para Tróia, e nessas suas linhas recorda também o famoso episódio em que Páris julga as três deusas. Depois, quando Hécuba pretende refutar os argumentos da esposa de Menelau, usa um argumento interessantíssimo - porque estariam Hera ou Atena a competir num concurso de beleza? Caro leitor, pense nisso por alguns momentos, antes de continuar a ler estas linhas.
Porque necessitaria Hera de beleza? Como Hécuba argumenta, nessa altura, a deusa já era casada com Zeus, o mais importante de todos os deuses; será que, então, estaria ela a procurar alguém melhor, mais forte, que esse seu marido, quando nem poderia existir alguém assim?
Porque necessitaria Atena de beleza? A virgindade perpétua dessa deusa é mais que famosa, e a não ser que andasse a procurar marido (palavras da esposa de Príamo), nenhuma necessidade teria para esse dom.
Em suma, a argumentação de Helena, como se vê na própria peça, acaba por sair gorada, e Menelau, que estava a assistir a esse pequeno debate, acaba por ver os episódios das deusas como uma invenção da esposa, uma forma que esta tinha para se desculpabilizar.
Agora, até que ponto podemos fiar-nos nas palavras de Eurípides? Honestamente, não me recordo de qualquer outro autor - incluíndo os mitógrafos, ou os cristãos - que teça semelhantes oposições a este mito, pelo que o mais provável é que este episódio tenha sido inventado pelo autor, não tanto para difamar os antigos mitos, mas para dar a Helena um argumento muito conhecido, e para permitir a Hécuba vencê-la nesse mesmo campo, fazendo uso de uma jocosa inconsistência no mito.