Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Mitologia em Português

25 de Fevereiro, 2025

"A Ilha dos Animais", um texto medieval

É provável que existam muitos textos com o simples nome de A Ilha dos Animais, mas o tema de hoje prende-se com uma fábula muito curiosa presente na chamada Enciclopédia dos Irmãos da Pureza. A obra, em si própria, trata-se de uma colectânea de textos filosóficos islâmicos compostos no Iraque por volta dos séculos X e XI da nossa era, alguns mais interessantes do que outros, e entre os quais se conta o texto de hoje, uma fábula deliciosa sobre a natureza dos animais e a sua posição societal na cultura islâmica. Visto que parece ser muito pouco conhecida nas culturas portuguesas, decidimos apresentá-la aqui nas suas linhas gerais.

 

Esta história de A Ilha dos Animais conta-nos, portanto, que em outros tempos um grupo de Homens mudou-se para uma ilha misteriosa povoada por animais e Génios*. Inicialmente todos eles coexistiram sem problemas de maior, mas depois os seres humanos lá decidiram começar a utilizar os animais como bem desejavam, tratando-os como se fossem meros escravos, ao ponto de lhes baterem, não lhes darem comida, e outras coisas tristes como essas. E então, incapazes de suportar essas ocorrências por muito mais tempo, os Animais decidiram revoltar-se e levar o seu caso ao rei dos Génios, com vista a provar que não mereciam ser escravos dos Homens.

O que depois se seguem são um conjunto de debates entre os representantes da raça humana e diversas figuras emblemáticas de sete diferentes classes de animais - um chacal, um rouxinol, o rei das abelhas, etc. - cada qual com as suas forças e fraquezas particulares. No seu geral, os Homens apresentam um argumento para a sua superioridade, e depois ele é respondido com sucesso pelos animais. Muito curiosamente, os seres humanos parecem perder cada um desses pequenos debates, demonstrando-se repetidamente uma ausência da sua (suposta) força face aos opositores. E esse padrão vai-se repetindo até à aparição de um argumento muito fulcral.

Perto do final da história de A Ilha dos Animais, um "homem de Meca e de Medina" (provavelmente uma referência a um Islâmico, já que existiam várias outras religiões na ilha) levanta o argumento de que o Homem é superior a todos os outros animais porque Alá lhe prometeu a vida eterna, como pode ser lido no Corão. Os animais levantam a oposição de que essa promessa também tem um lado oposto, que os seres humanos maus também poderiam ser condenados eternamente ao Inferno, enquanto que eles jamais eram punidos pela entidade divina... e então, chega-se, filosoficamente, à ideia de que se os Homens pareciam ser superiores aos outros animais, com essa sua força também vem associada a necessidade de tratarem bem os seus supostos inferiores, sob pena de irem mesmo parar ao reino dos Infernos. Pouco depois, a história conclui que os Animais não são escravos dos Homens, mas ambos existem para venerar o seu criador comum...

 

Filosoficamente, talvez até pudesse ser dito muito mais sobre esta composição d' A Ilha dos Animais, mas de um ponto de vista da trama - que é o mais relevante para estas nossas linhas - o digno de nota é mesmo o facto dos seres humanos serem apresentados num repetido e complexo debate filosófico contra os animais, mas sem que os consigam vencer com a facilidade que seria de supor num contexto aristotélico. E isso torna a obra, e os argumentos que vai apresentando para ambos os lados, particularmente digna de ser lida. Infelizmente, não parece existir em Português, mas existe tanto em tradução como em adaptação inglesa, sendo particularmente digna de nota uma versão de Denys Johnson-Davies que, apesar de cortar alguns capítulos secundários e omitir a riqueza de muitos dos debates, ilustra ricamente os episódios que vão tomando lugar ao longo da história.

 

 

*- Estes Génios, ou Djinns, podem neste contexto ser considerados como uma espécie de entidades semidivinas criadas por Alá e que se encontram num patamar existencial entre os seres humanos e Deus - um capítulo deste texto até parece equipará-los aos Nefilins. Não estão necessariamente associados a uma lâmpada mágica, como na famosa história de Aladino (que apresenta aquele que é, sem dúvida, o Génio mais famoso da nossa cultura ocidental), mas sim alguns poderes mágicos e uma grande sabedoria, podendo ser bons ou maus conforme as suas naturezas individuais.

Gostas de mitos, lendas, livros antigos e muitas curiosidades?
Recebe as nossas publicações futuras por e-mail - é grátis e irás aprender muitas coisas novas!