A lenda da Batalha de Clavijo
A lenda da Batalha de Clavijo merece ser mencionada por cá em virtude de se tratar de um confronto guerreiro puramente lendário na cultura ibérica. Isto porque, se em infindáveis outros casos não nos é possível afirmar se um determinado evento tomou mesmo lugar ou não - por exemplo, no contexto nacional, o que aconteceu a Dom Sebastião depois da batalha de Alcácer Quibir? - já em relação a esta batalha todos os autores e estudiosos dos nossos dias admitem que se trata de uma história completamente ficcional.
Lembram-se de quando cá falámos de Guesto Ansures e o chamado "tributo das cem donzelas"? Se nessa altura o herói matou muitos Mouros e salvou seis donzelas, muitas outras continuaram a ser levadas para Córdova, até que o monarca Ramiro I das Astúrias, no século IX, lá decidiu que essa situação tinha de acabar. Juntamente com o seu pequeno exército, ele decidiu combater contra toda esta injustiça, até que se deparou com um enormíssimo número de inimigos na zona de Clavijo. O rei não tinha qualquer forma real de os derrotar a todos, pelo que decidiu tentar descansar uma última noite antes do confronto dessa Batalha de Clavijo. Porém, naquela que ela pensava vir a ser a derradeira escuridão da sua vida, este rei teve um sonho em que lhe apareceu São Tiago* (o tal de Compostela), e o santo prometeu-lhe auxílio na batalha vindoura. Mas, se assim o prometeu, ainda melhor o fez - no dia seguinte o próprio São Tiago, vindo do reino dos céus num cavalo branco e já completamente equipado para a batalha, apareceu no campo de batalha e matou um número enorme de infiéis, ganhando assim até o seu novo título, certamente incrível para um santo, de "Mata-Mouros".
Claro que todo este relato da Batalha de Clavijo é pura ficção, como já dissémos acima, mas há ainda um elemento muito curioso em tudo isto. Se se diz que esta batalha teve lugar no século IX, ela só aparece em fontes escritas por volta do século XIII, e os seus contornos gerais não deixam de lembrar a "nossa" Batalha de Ourique, cuja lenda, muito semelhante à reproduzida acima, só aparece com os seus agora-famosos contornos miraculosos no século XV, e em que São Tiago Mata-Mouros também foi evocado. Em ambos os casos, pelo menos dois séculos passaram entre os supostos eventos reais e a declaração escrita de um intervenção miraculosa nos mesmos.
Nesse seguimento, se sabemos que esta batalha espanhola nunca teve lugar, ou pelo menos não com todos os contornos acima, o que dizer do famoso combate em que interviu o "nosso" Afonso Henriques? Se até sabemos, através das crónicas da época, que teve lugar uma batalha (real) num local com o nome de Ourique, será o famoso milagre nacional uma adaptação de aquele que se cria ter tomado lugar em Clavijo ou, apesar das muitas semelhanças, um acontecimento totalmente independente? Essa resposta, preferimos deixá-la para os leitores...
*- Sobre o nome deste santo, deve ser lido o que já aqui foi escrito na nota final sobre a lenda de Santiago de Compostela.