A lenda da Caldeira de Pêro Botelho - e a sua verdadeira história!
Para se falar sobre esta lenda da Caldeira de Pêro Botelho talvez valha a pena começar com uma pequena história mais pessoal. Há alguns anos atrás - que isto do Covid tocou a todos - tínhamos uma espécie de jogo que passava por tentar relembrar diversos títulos associados a figuras e espaços religiosos. Por exemplo, se uma primeira pessoa dissesse "Jesus", a segunda continuaria com "Emanuel", outra diria "o Cordeiro de Deus", "o filho de Maria", "o Messias", assim por diante, e a primeira pessoa a não conseguir acrescentar um novo título perdia o jogo. Claro que isto implicava algum estudo (e podia assustar um pouco quem não nos conheça...), e ao longo dessas tentativas de jogo acabou por se ir encontrando alguns títulos um tanto ou quanto desconhecidos.
Que a "Caldeira de Pêro Botelho" era uma espécie de metáfora para o Inferno é relativamente fácil de compreender, dada em particular a forma como esse espaço religioso é representado na cultura ocidental, mas porquê dar esse nome ao Diabo? Seria o de uma daquelas infindáveis transformações que lhe são atribuídas na cultura portuguesa? Na altura nada conseguimos concluir, e então o tema foi ficando de lado, até que há algumas semanas nos foi perguntado algo sobre a misteriosa estátua da Ilha do Corvo, também no arquipélago dos Açores, o que nos levou a este outro local.
Segundo a tradição local, em outros tempos viveu numa ilha dos Açores um homem muito malvado de nome Pêro Botelho. Essa sua história não parece ter preservado relatos das suas malvadezas, mas informa que em dada altura ele estava a recolher lama numa das caldeiras da ilha e caiu acidentalmente para o seu interior, onde os seus gritos puderam continuar a ser ouvidos durante muito tempo... e diz até a mesma lenda que ainda hoje ele pode ser ouvido no local, soltando agora roncos demoníacos que ora lhe podem ser atribuídos a ele, ou a um dos muitos demónios seus companheiros nesse outro mundo.
Agora, esta é uma lenda relativamente simples, mas algo nos cheirava a esturro nela - porquê mencionar, em todas as versões que fomos lendo, a maldade deste homem, quando depois ela não tinha qualquer qualquer papel real na própria trama? Em plena curiosidade, decidimos procurar um pouco mais sobre este Pêro ou Pedro Botelho. Fomos saltando de livro em livro até chegarmos à Fastigínia de Tomé Pinheiro de Veiga, datada de 1605, que parece ser a mais antiga referência a este episódio, e em que é revelado que existiu, de facto, um homem chamado Pedro Botelho e que foi ele que deu origem ao provérbio "caldeira de Pêro Botelho". E como aconteceu isso? Segundo esta fonte literária, em dada altura ele quis entregar esta ilha portuguesa aos Franceses, e como castigo por essa traição foi depois cozido vivo numa caldeira... o que aconteceu na Ilha da Madeira, provavelmente no ano de 1566, e não na Ilha Graciosa dos Açores, como hoje nos fazem crer!
Isto é muitíssimo interessante porque mostra aquela grande razão pela qual escrever estes artigos nunca cessa de nos fascinar. Se é comum dizer-se que todas as lendas têm um fundo de verdade, o episódio referente a esta caldeira de Pêro Botelho teve, aparentemente, lugar num determinado local, foi posteriormente associado a outro, mas para que tal fosse conseguido surgiu a necessidade de "censurar" parte da história, fazendo do vilão uma pessoa muito má, mas omitindo as verdadeiras razões dessa sua maldade. Se elas tivessem sido reveladas, como fizemos acima, acabariam por trair que esta até pode ser hoje uma lenda açoreana mas teve, na verdade, a sua verdadeira génese no que parece ser um episódio histórico - e bem real - que aconteceu entre madeirenses!