A lenda da Nau Catrineta (ou Catarineta)
A lenda da Nau Catrineta (ou Catarineta, como é conhecida no Brasil) é um exemplo curioso da forma como as histórias podem ir evoluindo ao longo dos tempos. Não sabemos se se baseia num evento real - Almeida Garrett defendeu que sim, que nasceu de um naufrágio por que um tal Jorge de Albuquerque Mendes passou em 1565 - mas o que é particularmente digno de nota é o facto de, em outros tempos, terem sido encontradas diversas versões em Portugal e no Brasil. Elas começam quase sempre de uma forma semelhante, salvo uma ou outra adição de versos - uma nau anda perdida no mar, quase sem comida, até que em virtude da fome comum dos tripulantes eles decidem matar um deles, escolhido à sorte (não é totalmente claro se pretendiam reduzir o número de tripulantes ou comer o contemplado...). Foi seleccionado "o capitão general", que então pede, possivelmente pela última vez, a um subalterno que tente avistar terra. E ele até o consegue fazer, pelo que esse capitão general lhe oferece uma recompensa. Mas depois, o que acontece nessa sequência final já tende a variar significativamente. Já lá iremos, por agora recorde-se o segmento principal do famoso poema, na versão de Almeida Garrett:
Lá vem a Nau Catrineta,
que tem muito que contar!
Ouvide, agora, senhores,
Uma história de pasmar.Passava mais de ano e dia,
que iam na volta do mar.
Já não tinham que comer,
nem tão pouco que manjar.
Deitaram sola de molho,
para o outro dia jantar;
Mas a sola era tão rija,
que a não puderam tragar.
Deitaram sortes à ventura
qual se havia de matar;
Logo a sorte foi cair
no capitão general."Sobe, sobe, marujinho,
Àquele mastro real,
Vê se vês terras de Espanha,
As praias de Portugal."
"Não vejo terras de Espanha,
nem praias de Portugal.
Vejo sete espadas nuas,
que estão para te matar.""Acima, acima, gajeiro,
acima ao tope real!
Olha se enxergas Espanha,
Areias de Portugal."
"Alvíssaras, capitão,
meu capitão general!
Já vejo terras de Espanha
areias de Portugal.
Mais enxergo três meninas,
debaixo de um laranjal.
Uma sentada a coser,
outra na roca a fiar,
A mais formosa de todas,
está no meio a chorar.""Todas três são minhas filhas,
Oh! quem mas dera abraçar!
A mais formosa de todas
Contigo a hei-de casar."
"A vossa filha não quero,
Que vos custou a criar."
(...)
Se até aqui as diversas versões são relativamente estáveis, salvo a introdução ou omissão de alguns versos secundários, o capitão faz depois diversas ofertas ao seu marujo, que as rejeita sucessivamente. Até que surge à baila a própria nau.
Numa versão, o capitão oferece-a a quem o salvou. A oferta é rejeitada, tal como as que tinham aparecido anteriormente. Assim, face à estranheza da situação - supõe-se que fosse uma excelente nau - o oferecedor pergunta, afinal, que recompensa o seu camarada pretende - Capitão, quero a tua alma,/ para comigo a levar. Naturalmente que esse pedido é rejeitado. Então, o marujo revela-se rapidamente como um demónio, desaparece, o tempo acalma e a nau lá atraca em Portugal.
Mas numa outra, a nau não é oferecida directamente. Após várias ofertas, o capitão lá pergunta que recompensa o seu companheiro pretendia, e recebe a seguinte resposta - Eu quero a Nau Catrineta,/para nela navegar. Também aqui o pedido é rejeitado, mas por uma razão diferente - A Nau Catrineta/é d'el-rei de Portugal,/Mas ou eu não sou quem sou,/Ou el-rei ta há-de dar, ou então Pede-a tu a el-rei, gajeiro,/Que ta não pode negar.
Certamente que existem muitas outras versões de toda esta lenda, mas aqui apenas mencionamos as referidas por Almeida Garrett, que são provavelmente as versões escritas mais antigas que nos chegaram. Nesse sentido, parece que já nessa altura, mediante a região em que toda esta história era contada, as suas linhas gerais eram bastante semelhantes mas o final variava significativamente. A título de exemplo dessas inconstâncias entre versões, numa delas a fome dos navegantes era tal que acaba por ser ilustrada ao ouvinte com estas estranhas palavras, que ainda mais nos sugerem que os navegantes pretendiam comer um feliz contemplado:
Já não tinham que comer,
nem tão pouco que manjar.Já mataram o seu galo,
que tinham para cantar.
Já mataram o seu cão,
que tinham para ladrar.Já não tinham que comer,
nem tão pouco que manjar.
Não se trata de uma qualquer espécie de censura, como quando alguns maluquinhos dos nossos dias desejaram alterar a cantiga do Atirei o Pau ao Gato, mas um puro fruto da transmissão oral de uma mesma trama original. Alguém a criou - uma versão de toda esta lenda diz até que terá sido o próprio Jorge de Albuquerque Mendes - mas à medida que foi passando de boca em boca foi sofrendo as alterações naturais de uma transmissão oral. Ao mesmo tempo, é certo que algumas pessoas mais religiosas poderão ter sentido a necessidade de não incluir o nome do mafarrico em toda a história, o que poderá ter contribuído para a sua omissão nesta aventura... ou, melhor dizendo, talvez não tanto "omissão", mas não-inclusão, pois não sabemos qual dos dois finais se aproxima mais da versão composta pelo autor original. O que sabemos, no entanto, é que toda esta lenda se manteve relativamente popular até aos nossos dias, tanto nas mesas de escola como em adaptações para os nossos dias, como a seguinte, de Fausto Bordalo Dias, que esperamos que gostem de recordar, neste final das linhas de hoje: