A lenda de Marco Cúrcio e o Lago Cúrcio
Quem já tiver ido à cidade de Roma provavelmente terá visto, no famoso Fórum Romano, um pequeno local que hoje é conhecido como o Lago Cúrcio. É um local pouco digno de nota, que nada impressiona no panorama em que hoje se insere, e que pode ser definido, de forma tosca, como um buraco circular no chão. Presume-se, pelo próprio nome, que já aí tenha existido um lago, ou que o espaço original tivesse alguma ligação com a Curtia gens, a família Cúrcia, mas não há quaisquer certezas de maior sobre a origem do espaço. Existe, isso sim, é uma famosa lenda associada ao nome de um tal Marco Cúrcio e que tenta explicar as razões por detrás da fama do local. Vamos recordá-la.
Conta-se que numa data que o tempo já há muito fez esquecer surgiu em pleno Fórum Romano um enorme buraco no chão. Os sacerdotes da época foram consultados e surgiu-lhes uma predição oracular segundo a qual esse buraco se fecharia - e o Império Romano iria durar para sempre (!) - se os cidadãos de Roma atirassem para dentro dele aquilo que consideravam mais importante. Foram várias as tentativas para resolver essa espécie de enigma, sempre sem qualquer sucesso, até que um jovem de nome Marco Cúrcio pensou ter compreendido o que se pretendia e, armando-se como que para o derradeiro combate da sua vida, pegou no seu cavalo e saltou para o interior do (outrora enorme) buraco. Isto, como que a afirmar que o mais importante para Roma era a vida dos seus cidadãos. Tão misteriosamente como se abriu, este buraco fechou-se logo em seguida e passou a ser motivo de veneração sob o nome de Lago Cúrcio.
E isto poderá parecer tudo muito bonito, uma lenda como tantas outras do seu tempo, mas não explica o porquê da designação de "lago". Assim, outras tentativas de explicar esse nome dizem, por exemplo, que em outros tempos existiu um pântano no local e um tal Mécio Cúrcio aí ficou preso durante uma batalha. Não sabemos se ele terá morrido no local, mas em caso negativo levanta-se um problema - se os Romanos fossem dar nomes aos seus locais por razões assim tão comuns como esta, cada um dos campos das suas muitas batalhas seria uma enorme selva de designações, o que não pode deixar de parecer absurdo, não é?
Neste sentido, se até existem algumas outras histórias antigas associadas ao espaço deste Lago Cúrcio, a mais significativa de todas elas é, sem qualquer dúvida, mesmo aquela que se associa ao nome de Marco Cúrcio, a que já recordámos acima e de que até mostrámos uma representação. Se não é um mito que os Romanos herdaram dos Gregos, parece seguir um conjunto de ideias sobre a vida e a morte que entram em outros mitos antigos, como o de Cléobis e Bíton. Mas, ao mesmo tempo, a estranha desventura deste herói também pode ser uma alusão vestigial a uma de muitas tradições, entretanto quase esquecidas mas que existiram por todo o mundo, que requeria o sacrifício da vida de um ser humano no local em que se pretendia construir algo. Existem muitas explicações por detrás dessa ideia, mas a conhecida entre os Romanos provavelmente dizia que o sacrificado se tornava uma espécie de espírito protector do lugar, como o eram os Lares.
Porém, a ideia não era apenas Romana. Sabe-se que já os precedia, aparece igualmente em muitas outras culturas pelo globo fora (e.g. o Hitobashira nipónico), e foi-se mantendo ao longo dos séculos, com algumas evidentes adaptações. Basta que se pense, por exemplo, no "nosso" caso de Frei João da Barroca, que encerrado - por opção própria - num local como esse ganhou grande fama, ou que em inícios do século XX ainda se parecia manter a ideia de encerrar coisas de especial valor por baixo do local de construção de edifícios, como recentemente lemos no Sal da História em relação aos Paços do Concelho do Porto... e se não sabemos até que ponto terá existido, em tempos há muito esquecidos, uma verdadeira ligação desses antigos rituais com o Lago Cúrcio ou com a lenda de Marco Cúrcio, a ideia de um sacrifício da vida deste jovem num dos locais mais importantes da cidade de Roma pode, no mínimo dos mínimos, dar razões para se crer nessa possibilidade...