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Mitologia em Português

13 de Outubro, 2021

A lenda de Santa Iria

A lenda de Santa Iria é uma digna representante de um conjunto de histórias nacionais de santidade que foram sendo alteradas ao longo dos séculos. Bastará, por exemplo, pegar em duas edições distintas de Flos sanctorum (ou "Flor dos Santos", em tradução portuguesa) cuja publicação esteja significativamente afastada no tempo e depressa poderá ser visto que, aqui e ali, vão surgindo diferenças na história de determinadas figuras. De um modo muito geral, essas alterações foram feitas para remover momentos problemáticos da trama, como aparições demoníacas, milagres um tanto ou quanto mais estranhos e potenciais críticas à Igreja. Assim, se vamos falar da lenda desta santa, decidimos fazê-lo em dois momentos, para que aqui se possa perceber melhor como histórias como estas foram sendo alteradas ao longo dos séculos.

A lenda de Santa Iria

Irene ou Iria de Tomar, a mulher que mais tarde viria a ficar conhecida com o nome de Santa Iria, era uma jovem muito bonita que viveu no tempo dos Romanos. Quando um nobre local, um tal Britaldo, a viu, ficou extremamente apaixonado por ela e decidiu tomá-la para si. Mas ela dedicou a sua virgindade a Deus e, como tal, disse a este nobre que não o poderia amar. Com um coração compreensivo, muito incomum neste tipo de histórias, ele aceitou este "não" e apenas pediu à jovem que não viesse a amar outro homem. Ela, como é natural, aceitou esse pedido e dedicou a sua vida à religião cristã... até que, uns anos mais tarde, surgiu um rumor de que ela tinha traído a sua promessa, e então Britaldo mandou matá-la; um dos seus criados cumpriu este desejo do seu patrão, deitando depois o corpo dela a um rio próximo - o Nabão, Zêzere ou Tejo - até que ele foi recuperado e levado para um igreja.

 

A uma primeira vista, toda esta lenda de Santa Iria, que até pode ser lida em muitos outros sites, não tem nada de errado. Contudo, quem for ler versões mais antigas da história acaba por se deparar com um episódio adicional, relativo ao tal rumor da traição da jovem - ele diz que um tal Remígio, um monge e mestre religioso desta jovem, numa dada altura e por influência directa do Diabo se apaixonou por ela. Incapaz de consumar a sua paixão, ele deu então à sua encarregada uma erva mágica que causava sintomas semelhantes a uma gravidez*. Assim, por razões que não conseguia compreender, a jovem apareceu como que grávida, o que acabou por levar à sua morte.

 

A razão por detrás da remoção deste episódio da lenda de Santa Iria é então evidente - contém a intervenção (física) do Diabo, a presença de uma erva mágica, uma gravidez que não o era, e até uma personagem, o tal Remígio, que de monge e religioso só parecia ter o nome. Assim, removendo da história toda esta ocorrência, ocultando-a por detrás de um rumor muito vago, se conseguiu proteger a futura santa, enquanto que se transformou Britaldo numa figura muito mais malvada e invejosa do que originalmente o era. E assim se compreende como uma história, com a remoção de um só episódio significativo, se torna bastante diferente, como no caso da madrasta da Cinderela, que pela remoção de um prefácio da história se tornou muito malvada...

 

 

*- Sobre esta "erva mágica", ela aparece em vários romances da Idade Média e até se acreditava, nessa altura, que as mulheres mais pobres a tomavam frequentemente, de forma a parecerem grávidas e, como tal, receberem mais esmolas.

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